Tratado da Correção do
Intelecto, de Spinoza
Onde
existe o maior engano é quando acontece que algumas coisas que se oferecem
na imaginação estejam também no intelecto, isto é, sejam concebidas clara e distintamente; então, enquanto não se separa do confuso o distinto, a certeza, ou seja, a idéia verdadeira se mistura com as não distintas. Por exemplo, alguns estóicos por acaso ouviram o nome da alma e também que é imortal, as quais coisas imaginavam apenas confusamente; imaginavam também e ao mesmo tempo inteligiam que os corpos sutilíssimos penetravam todos os mais e por nenhum outro eram penetrados. Como imaginassem tudo isso junto, acompanhado da certeza deste axioma, logo se convenciam de que a mente é esses corpos sutilíssimos e aqueles corpos sutilíssimos não se dividem, etc. Também disso, porém, nos livramos, enquanto nos esforçamos por examinar todas as nossas percepções conforme a norma de uma existente idéia verdadeira, precavendo? nos, como dissemos no começo, do que temos pelo ouvido ou pela experiência vaga. Acresce que tal engano provém de que concebem as coisas de um modo excessivamente abstrato, pois é bastante claro por si que aquilo que concebo em seu verdadeiro objeto não posso aplicar a outra coisa. Nasce, por último, também de que não inteligem os primeiros elementos de toda a Natureza; donde, procedendo sem ordem e confundindo a Natureza com as coisas abstratas, embora sejam verdadeiros axiomas, a si mesmos se confundem e pervertem a ordem da Natureza. Nós, contudo, se procedermos o menos abstratamente possível e começarmos, logo que possamos, pelos primeiros elementos, isto é, pela fonte e origem da Natureza, de nenhum modo devemos temer esse engano. |
Trecho de O Olho e o
Espírito, de Merleau-Ponty
Entretanto,
Descartes não seria Descartes se houvesse pensado eliminar o enigma da visão.
Não há visão sem pensamentos. Mas não basta pensar em ver: a visão é um
pensamento condicionado; nasce por ocasião daquilo que sucede no corpo, é
excitada a pensar por ele. Não escolhe nem ser ou não ser, nem pensar isto ou
aquilo. Deve trazer em seu coração esse peso, essa dependência que não podem
advir-lhe por uma intromissão de fora. Tais acontecimentos do corpo são
instituídos pela natureza para nos darem a ver isto ou aquilo. O pensamento
da visão funciona segundo um programa e uma lei que ele não se deu; não está
de posse de suas próprias premissas; não é pensamento todo presente, todo
atual, todo atual; há em seu centro um mistério de passividade. É, portanto,
esta a situação: tudo o que se diz e se pensa da visão faz dela um
pensamento. Quando, por exemplo se quer compreender como é que vemos a
situação dos objetos, não há outro recurso senão supor a alma, que sabe onde
estão as partes de seu corpo capaz de "transferir daí sua atenção"
a todos os pontos do espaço que estão no prolongamento dos membros.
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