O julgamento da
História
"O mais
atrevido e escandaloso esquema de corrupção e de desvio de dinheiro público
flagrado no Brasil", segundo a definição do procurador-geral da República,
Roberto Gurgel, no seu memorial conclusivo, começa a ser julgado hoje pelo STF.
A palavra "história" está um tanto desgastada. Quase tudo, de
casamentos de celebridades a jogos de futebol, é rotineiramente declarado
"histórico". O adjetivo, contudo, deve ser acoplado ao julgamento do
mensalão - e num duplo sentido. A Corte Suprema está julgando os perpetradores
de uma tentativa de supressão da independência do Congresso Nacional e, ao
mesmo tempo, dará um veredicto sobre um tipo especial de corrupção, que almeja
a legitimidade pela invocação da História (com H maiúsculo).
Silvio Pereira, o
"Silvinho Land Rover", então secretário-geral do PT, tornou-se uma
figura icônica do mensalão, pois, ao receber o veículo, conferiu ao episódio
uma simplória inteligibilidade: corruptos geralmente obtêm acesso a "bens
de prazer" e a "bens de prestígio" em troca de sua contribuição
para os esquemas criminosos. No caso, porém, o ícone mais confunde do que
esclarece. "Vivo há 28 anos na mesma casa em São Paulo, me hospedo no
mesmo hotel simples há mais de 20 anos em Brasília, cidade onde trabalho de
segunda a sexta", disse em sua defesa José Genoino, então presidente do PT
e avalista dos supostos empréstimos multimilionários tomados pelo partido.
Genoino quer,
tanto por motivos judiciais quanto políticos, separar sua imagem da de Silvinho
- e não mente quando aborda o tema da honestidade pessoal. Os arquitetos
principais do núcleo partidário do mensalão não operavam um esquema tradicional
de corrupção, destinado a converter recursos públicos em patrimônios privados.
Eles pretendiam enraizar um sistema de poder, produzindo um consenso político
de longo alcance. O episódio deveria ser descrito como um acidente necessário
de percurso na trajetória de consolidação da nova elite política petista.
José Dirceu, o
"chefe da quadrilha", opera atualmente como lobista de grandes interesses
empresariais, não compartilha o estilo de vida monástico de Genoino, mas também
não parece ter auferido vantagens pecuniárias diretas no episódio em
julgamento. O então poderoso chefe da Casa Civil comandou o esquema de
aquisição em massa de parlamentares com o propósito de assegurar a navegação de
Lula nas águas incertas de um Congresso sem maioria governista estável. Dirceu
conduziu a perigosa aventura em nome dos interesses gerais do lulismo - e,
imbuído de um característico sentido de missão histórica, aceitou o papel de
bode expiatório inscrito na narrativa oficial da inocência do próprio
presidente. Há um traço de tragédia em tudo isso: o mensalão surgiu como
"necessidade" apenas porque o neófito Lula rejeitou a receita
política original formulada por Dirceu, que insistira em construir extensa base
governista sustentada sobre uma aliança preferencial entre PT e PMDB.
A corrupção
tradicional envenena lentamente a democracia, impregnando as instituições
públicas com as marcas dos interesses privados. O caráter histórico do episódio
em julgamento deriva de sua natureza distinta: o mensalão perseguia a virtual
eliminação do sistema de contrapesos da democracia, pelo completo emasculamento
do Congresso. A apropriação privada fragmentária de recursos públicos, por mais
desoladora que seja, não se compara à fabricação pecuniária de uma maioria
parlamentar por meio do assalto sistemático ao dinheiro do povo. Os juízes do
STF não estão julgando um caso comum, mas um estratagema golpista devotado a
esvaziar de conteúdo substantivo a democracia brasileira.
No PT,
"Silvinho Land Rover" será, para sempre, um "anjo caído",
mas o tesoureiro Delúbio Soares foi festivamente recebido de volta, enquanto
Genoino frequenta reuniões da direção e Dirceu é aclamado quase como mártir. O
contraste funciona como súmula da interpretação do partido sobre o mensalão. Ao
contrário do dirigente flagrado em prática de corrupção tradicional, os demais
serviam a um desígnio político maior - um fim utópico ao qual todos os meios se
devem subordinar. São, portanto, "heróis do povo brasileiro",
expressão regularmente usada nas ovações da militância petista a Dirceu.
O PT renunciou faz
tempo à utopia socialista. Na visão do "chefe da quadrilha",
predominante no seu partido, o PT é a ferramenta de uma utopia substituta: o
desenvolvimento de um capitalismo nacional autônomo. Segundo tal concepção, o
lulismo figuraria como retomada de um projeto deflagrado por Getúlio Vargas e
interrompido por FHC. Nas condições postas pela globalização, tal projeto
dependeria da mobilização massiva de recursos estatais para o financiamento de
empresas brasileiras capazes de competir nos mercados internacionais. A
constituição de uma nova elite política, estruturada em torno do PT, seria
componente necessário na edificação do capitalismo de Estado brasileiro. Sobre
o pano de fundo do projeto de resgate nacional, o mensalão não passaria de um
expediente de percurso: o atalho circunstancial tomado pelas forças do
progresso fustigadas numa encruzilhada crucial.
A democracia é um
regime essencialmente antiutópico, pois seu alicerce filosófico se encontra no
princípio do pluralismo político: a ideia de que nenhum partido tem a
propriedade da verdade histórica. Na democracia as leis valem para todos -
mesmo para aqueles que, imbuídos de visões, reclamam uma aliança preferencial
com o futuro. O "herói do povo brasileiro" não passa, aos olhos da
lei, do "chefe da quadrilha" consagrada à anulação da independência
do Congresso. Ao julgar o mensalão, o STF está decidindo, no fim das contas,
sobre a pretensão de uma corrente política de subordinar a lei à História - ou
seja, a um projeto ideológico. Há, de fato, algo de histórico no drama que
começa hoje.
* SOCIÓLOGO, DOUTOR EM GEOGRAFIA HUMANA PELA USP. E-MAIL:DEMETRIO.MAGNOLI@UOL.COM.BR
* SOCIÓLOGO, DOUTOR EM GEOGRAFIA HUMANA PELA USP. E-MAIL:DEMETRIO.MAGNOLI@UOL.COM.BR