O homem que
inventou Cristo.
O mundo cristão não seria o mesmo sem a
mensagem que São Paulo transmitiu ao Império Romano. Para conquistar fiéis,
ele fez concessões que desagradaram aos discípulos de Jesus - e ainda
despertam acirradas discussões entre pensadores e religiosos. Afinal, Paulo
espalhou ou deturpou a palavra de Cristo?
Por Yuri Vasconcelos Ilustrações de Rogério
Nunes
Estamos no ano 34 da era cristã.
Passaram-se poucos anos desde a crucificação de Jesus. Sua mensagem
espalhou-se rapidamente por toda a Palestina e seus discípulos eram
implacavelmente perseguidos, principalmente pelos judeus. Os seguidores de
Jesus são acusados de heresia e traição à Lei de Moisés. Em Jerusalém, um
jovem judeu chamado Saulo faz verdadeiras atrocidades com os cristãos.
Persegue-os furiosamente, invade suas casas e os manda para prisão. Informado
de que, a cada dia, cresce a comunidade cristã em Damasco, na Síria, pede e
obtém do Sinédrio, o Supremo Tribunal da comunidade judaica de Jerusalém,
cartas de recomendação aos rabinos daquela cidade, autorizando-os a caçar os
hereges cristãos. Acompanhado de alguns homens, percorre a cavalo os cerca de
200 quilômetros até Damasco. Depois de sete dias de viagem, sob um sol
escaldante, consegue finalmente avistar as muralhas da cidade. Mas, de
repente, uma forte luz vinda do céu incide sobre ele e assusta seu cavalo,
que o joga no chão. Naquele instante, o jovem judeu ouve uma voz que diz:
"Saulo, Saulo, por que me persegues?"
Atônito, ele indaga: "Quem és,
Senhor?" A voz responde: "Jesus, a quem tu persegues. Mas
levanta-te, entra na cidade e te dirão o que deves fazer".
O séquito de Saulo permanece mudo de
espanto, sem entender de onde vem aquela voz. Saulo, por sua vez, ergue-se do
chão, mas não consegue enxergar nada. Em Damasco, permanece três dias e três
noites em jejum, refletindo sobre o estranho acontecimento, até ser visitado
por Ananias, um discípulo de Cristo, que lhe diz: "Saulo, meu irmão, o
Senhor me enviou. O mesmo que te apareceu no caminho por onde vinhas. É para
que recuperes a vista e fiques repleto do Espírito Santo". Nesse exato
momento, duas escamas caem dos olhos de Saulo, que volta a ver. Em seguida,
ele é batizado. Convertido, Saulo de Tarso tornou-se aquele que talvez tenha
sido o mais importante difusor da palavra de Jesus: São Paulo.
O episódio acima, narrado em detalhes no
livro Atos dos Apóstolos, do Novo Testamento, teria marcado radicalmente a
vida de Paulo. Não é possível provar que ele tenha de fato acontecido. Os
textos bíblicos são as únicas fontes disponíveis para se reconstituir a
história do santo - acreditar neles é uma questão de fé. Tenha ocorrido de
forma tão espetacular ou não, a conversão de Paulo mudou para sempre os rumos
da religião cristã. Para muitos teólogos, Paulo foi um personagem fundamental
nos primeiros anos do cristianismo. Seu trabalho de evangelização foi, em
grande parte, responsável pelo caráter universal da doutrina cristã e sua
mensagem, expressa em cartas enviadas às comunidades que fundava, ainda hoje
é considerada o alicerce da jurisprudência, da moral e da filosofia modernas
do Ocidente. Enquanto a maioria dos apóstolos que conviveram com Jesus
restringiram sua pregação à Palestina, Paulo levou a palavra de Cristo para
lugares distantes, como a Grécia e Roma. Sua importância na construção da
Igreja primitiva é tão grande que muitos estudiosos atribuem a ele o título
de pai do cristianismo.
"Paulo desempenhou um papel maior na
evangelização dos primeiros cristãos", diz o biblista Jerome
Murphy-O'Connor, professor da Escola Bíblica e Arqueológica de Jerusalém e um
dos maiores estudiosos do santo. O historiador André Chevitarese, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), especialista em cristianismo e judaísmo
antigos, concorda: "O cristianismo, tal como existe hoje, deve muito a
Paulo. Se não fosse o apóstolo, ele provavelmente não teria passado de mais
uma seita judaica". Isso não quer dizer que o trabalho dos 12 apóstolos
tenha sido irrelevante, mas eles pregaram numa região, a Palestina, que viria
a ser devastada pelos romanos entre os anos 66 e 70. "Sem dúvida, Paulo
foi o apóstolo que teve maior repercussão com o passar dos séculos", afirma
o teólogo Pedro Lima Vasconcellos, professor do Departamento de Teologia e
Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo.
O termo apóstolo, no sentido de evangelizador, é freqüentemente usado para se
referir a São Paulo. Não há evidências históricas, entretanto, de que ele
tenha conhecido Jesus Cristo.
A influência de Paulo é indiscutível. Mas,
para uma corrente de historiadores e teólogos, ele deturpou os ensinamentos
de Jesus Cristo - a ponto de a mensagem cristã que sobreviveu ao longo dos
séculos ter origem não em Cristo, mas em Paulo. Esses pensadores julgam ser
mais correto dizer que o que existe hoje é um "paulinismo", não um
cristianismo. "As cartas de São Paulo são uma fraude nos ensinamentos de
Cristo. São comentários pessoais à parte da experiência pessoal de
Cristo", afirmou o líder pacifista indiano Mahatma Ghandi, em 1928.
Opinião semelhante tem o prêmio Nobel da Paz de 1952, o alemão Albert
Schweitzer, que declarou: "Paulo nos mostra com que completa indiferença
a vida terrena de Jesus foi tomada".
As principais críticas da corrente
antipaulina concentram-se em pontos polêmicos das cartas do apóstolo. Nelas,
entre outras coisas, Paulo defende a obediência dos cristãos ao opressivo
Império Romano, bem como o pagamento de impostos, faz apologia da escravidão,
legitima a submissão feminina e esboça uma doutrina da salvação distinta
daquela que, segundo teólogos antipaulinos, teria sido defendida por Jesus.
"A mentira que foi Paulo tem durado tanto tempo à base da violência. Sua
conversão foi uma farsa", afirma Fernando Travi, fundador e líder da
Igreja Essênia Brasileira. Os essênios eram uma das correntes do judaísmo há
2 mil anos, convertidos na primeira hora ao cristianismo. "Ele criou uma
religião híbrida. A prova disso é o mundo que nos cerca. Um mundo cheio de
guerra, de sofrimentos e de desespero."
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