“Não é o gênio, nem a glória, nem o amor que medem a elevação da alma: é a bondade.” (Henri Lacordaire)
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Ser de esquerda ou de direita hoje
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Depois
do tempo em que Abril floriu, quase toda a gente se dizia de
esquerda. Por convicção, por oportunismo ou, simplesmente, porque estava na
moda o ideal de esquerda. Contudo, os modismos passam e a realidade
sobressai com a sedimentação do tempo.
Nos
idos de 1974/75, ninguém ousava afirmar «eu sou de direita», isso era
arriscado. Nem aqueles que hoje orgulhosamente se assumem como tal tinham a
coragem de o dizer. Era perigoso para quem o afirmasse. Ser de direita
significava ser fascista, reaccionário, capitalista ou lacaio do capitalismo,
dizia-se. Com efeito, ser de direita era estar contra a classe operária, o
proletariado, ou negar a sua própria classe. E eis que toda a gente, ou
quase, vestia os adornos do operário, figura mitificada na época, que era
considerado, muitas vezes sem saber porquê, como progressista, defensor do
povo... E então, era ver alguns daqueles que hoje se assume pomposamente de
direita, vestir os tais adornos, símbolos da esquerda da época, tais como:
cabelo comprido, barba crescida e desgrenhada, palavrão pronto na boca, etc.,
etc.
Os
tempos mudam, os símbolos políticos também. No entanto, ainda temos
referências sérias quer de direita quer de esquerda. Que referências? A marca
de mulheres e de homens que sempre afirmaram as suas convicções
político-sociais, que não balançaram conforme as oportunidades, que
mantiveram, embora evoluindo – que o tempo a isso obriga – nos princípios que
enformam as suas convicções.
Aprendemos
que ser de esquerda é defender o interesse do geral, é ser solidário, é estar
ao lado daqueles que menos podem, é lutar contra as desigualdades entre
pessoas e povos, é eliminar a repressão e a opressão, é defender a liberdade
e criar as condições para a existência de um mundo mais justo e solidário.
E
ser de direita? Seria menos complicado dizer que é o contrário do que
dissemos no parágrafo anterior. Mas não. Hoje, está na moda a afirmação de
direita. Veja-se como alguns políticos, hoje em moda, se afirmam
orgulhosamente de direita. E mais, repare-se como, quando se dizem de
direita, estão a afirmar que a esquerda é uma peste, é o mal. Aliás, os
direitistas são hábeis maniqueístas. Ou seja, os homens e mulheres que se
afirmam de direita, especialmente a direita radical, tal como certa esquerda
em 1975, tem dificuldade em reconhecer e aceitar a outra parte. E então,
quando falam dos princípios de esquerda fazem-no com desdém.
Que
valores defende a direita, hoje? Analise-se os seus discursos, que lá está
tudo: a Pátria, o trabalho, a autoridade, o respeito pelos superiores valores
do Estado, o dinheiro, o beija-mão, a reverência e o endeusamento, de entre
outras ideias similares.
Toda
a gente defende a Pátria, mas quando se fala tanto em patriotismo, que se
esconde? O trabalho é a única fonte de riqueza, mas o seu a seu dono. Porque
para que alguns sejam muito ricos, muitos estão muito pobres. A direita tem
dificuldade em redistribuir a mais valia. Autoridade sim, mas sem
autoritarismos. A direita faz apelos constantes à autoridade do Estado,
querendo com isso indicar a sua autoridade. A autoridade que defendem é a
autoridade imposta, não a conquistada pelo exemplo. Com efeito, a direita
fala como se estivesse acima da maralha. Todo o patriota respeita o Estado,
que somos todos nós, mas será que o Estado que a direita propala respeita o
cidadão comum? Toda a gente precisa de dinheiro. Sem esse nobre metal a nossa
vida é um inferno. Mas certa direita só vê euros, sonha com eles, quer
controlá-los e deixar no mealheiro umas migalhas, uns cêntimos para o Zé
encontrado pela direita em Coimbra, aquando da campanha eleitoral para as
legislativas de 2002, lembra-se? A direita folclórica gosta muito do
beija-mão, gosta que lhe tirem o chapéu, gosta da reverência e do
endeusamento. Pois que faça bom proveito.
Como
apontamento final, direi que neste mundo da globalização, onde tudo é tão
rápido e fluído, onde a generosidade não abunda, onde a concorrência não olha
a meios, onde se procura aniquilar o outro e impor a vontade própria, é
difícil apreender claramente onde está o traço que separa o homem de esquerda
do homem de direita. E porquê? Porque vemos homens de esquerda com práticas
que habitualmente são atribuídas à direita, e homens de direita com atitudes
normalmente atribuídas à esquerda. O exemplo depende da oportunidade. É tal a
miscelânea de comportamentos humanos neste início de século, que o que
devemos relevar são as boas práticas, acções e atitudes de todos os homens e
mulheres, e repudiar o contrário, para que a pessoa humana possa contribuir
para um mundo mais fraterno, generoso, solidário e livre, como quis Abril que
o Zeca Afonso cantou. (António Pinela, Reflexões, Março de 2003).
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