A Nova
História Cultural: Origens, Conceitos e Críticas
O historiador britânico Peter Burke, um dos
mais importantes representantes da Nova História Cultural.
A denominada história cultural é uma das
práticas historiográficas mais comuns e difundidas nos dias de hoje. Mas,
apesar de seu sucesso, seus conceitos e sua história não possuem uniformidade
entre os historiadores. Procuraremos neste ensaio analisar as diferenças e as
semelhanças nas suas interpretações.
O termo nova história cultural foi difundido
a partir dos anos 1980, mas entre alguns autores que analisaram a sua
definição, ela possui dois eixos de identificação: os que defendem que está
ligada diretamente, como herdeira e ao mesmo tempo questionadora, de uma
história cultural que tem raízes desde o século XVIII; em segundo, aqueles que
acreditam que este “movimento” possui raízes mais recentes, vinculadas
objetivamente na tradição historiográfica francesa, conhecida como história das
mentalidades, surgida após os anos 1960. Examinaremos cada uma em detalhes. Em
seguida, concederemos um panorama sintético dos debates conceituais envolvendo
a disciplina, e por último, algumas críticas teóricas e metodológicas efetuadas
tanto pelos opositores como pelos adeptos da nova história cultural.
As
origens
No final dos anos 1980, o historiador
britânico Peter Burke realizou uma conferência no Brasil, onde procurava
determinar os mais recentes paradigmas da historiografia, especialmente os
advindos da França e relacionados aos Annales. Sob o epíteto de “a nova
história”, caracterizou esta tendência como algo situado entre a história total
e a estrutural.
Esse movimento seria basicamente ocasionado
por uma crise geral dos paradigmas, especialmente concentrados em algumas
críticas: a política pensada além das instituições e a história pensada além da
política; uma preocupação maior com as estruturas do que com a narrativa dos
acontecimentos; deslocamento do interesse pela vida e obra dos grandes homens e
grandes datas para as pessoas e acontecimentos comuns; a necessidade de se ir
além dos documentos escritos e registros oficiais; a história não seria
objetiva, mas sujeita a referenciais sociais e culturais de um período. [1]
Tentando determinar como e de que maneira
surgiu essa nova história, Burke retorna ao início dos Annales, com Bloch e
Febvre e sua oposição aos rankenianos, para em seguida ir ainda mais para trás,
chegando a Jacob Burckhardt e aos acadêmicos do século XVIII que pensavam a
história muito além da política, considerando as maneiras de pensar de uma
sociedade, o chamado “espírito da época”.
Na realidade, Burke estava sendo influenciado
naquele momento pela obra de Jacques Le Goff, que publicou uma coletânea em
1978 com o nome de A Nova História. Para Le Goff essa denominação remetia
essencialmente a uma continuidade da historiografia francesa, onde os analistas
ocupavam uma posição central, em pelo menos três gerações de pesquisadores
oferecendo novas perspectivas metodológicas, temáticas e problematizadoras –
toda forma de história nova seria uma tentativa de história total, sendo a mais
fecunda das perspectivas a longa duração. [2]
Posteriormente, em 1991, o texto de Burke foi
modificado para servir de introdução ao livro A escrita da História, publicado
três anos depois de sua palestra inicial. Nele, as recentes tendências
investigativas recebiam influências de outras partes, como Inglaterra e Estados
Unidos e questões como a do relativismo cultural, a micro-história e o
construtivismo apontavam direcionamentos muito além da tradição francesa.
Um pouco antes da publicação do livro de
Burke, em 1989, a historiadora norte-americana Lynn Hunt realizou uma coletânea
utilizando o termo que definiria e popularizaria esta tendência historiográfica
em ascensão: a nova história cultural. Segundo Hunt, além da terceira e quarta
geração dos Annales, o interesse pelas práticas simbólicas foi também
enfatizado por autores marxistas, antropólogos, críticos literários (narrativa
e linguagem) e filósofos (análise do discurso), todos apontando que as relações
econômicas e sociais são campos de produções culturais. Também os documentos
não seriam simples reflexos transparentes do passado, mas ações simbólicas com
significados diferentes conforme os autores e suas estratégias. Era o início da
supremacia dos estudos culturais na historiografia. [3]
Em outro texto publicado em 1997, novamente
procurando definir as origens da história cultural, Peter Burke se distancia
muito mais de uma ligação direta e única com a historiografia francesa.
Tentando se desvincular de uma perspectiva linear e de continuidade, ele
recorre aos antecedentes dos motivos culturais na Europa, ainda com os
humanistas do Renascimento, estudando a língua e a literatura, até chegar à
história da música e das artes durante o Setecentos. [4] Durante o século XIX,
surge o que ele denomina de história cultural clássica, especialmente na
Alemanha, onde se percebe um interesse das elites pela cultura – aqui como
sinônimo de arte, filosofia e literatura. Com relação aos historiadores da
primeira metade do século XX, aponta algumas deficiências em comum: ignoram a
sociedade e a economia; seu postulado de unidade cultural é injustificado; a ideia
de tradição é muito tradicional e fixa e o conceito de cultura é equiparado com
o produzido pela elite. [5]
Essas ideias seriam aprofundadas e
organizadas em uma concepção mais esquemática, no livro O que é história
cultural? Publicado em 2004. Aqui Peter Burke concebe quatro fases para esse
movimento historiográfico: a fase clássica, durante os Oitocentos; a história social
da arte na década de 1930; a história da cultura popular nos anos 1960; e
finalmente, a nova história cultural posterior aos anos 1970. Entre todos os
antecessores, dois mereceram maior atenção com seus clássicos: Jacob Burckhardt
(A cultura do renascimento na Itália, 1860) e Johan Huizinga (O outono da Idade
Média, 1919), mas também a obra de Aby Warburg e Ernest Gombrich, ambos
trabalhando com a noção de esquemas ou fórmulas culturais de origem
psicológica, que foram fundamentais para as gerações seguintes. Mas a maior
influência acadêmica que Burke aponta para o surgimento da história cultural
praticada durante a década de 1970 e 1980, teria vindo das confluências com os
estudos de antropologia, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. [6]
Com uma perspectiva mais restrita ao âmbito
francês, um estudo de Ronaldo Vainfas e outro de Roger Chartier, vinculam
diretamente o surgimento da nova história cultural como resposta e continuidade
à história das mentalidades. Esse movimento recusaria o conceito de
mentalidades, o considerando muito fluido, ambíguo e pouco preciso, sem
articulações entre o psicológico e o social. Mas não negam o mental, nem os
vínculos com a antropologia e a longa duração: “É lícito afirmar, portanto, que
a história cultural é, neste sentido, outro nome para aquilo que, nos anos
1970, era chamado de história das mentalidades”.[7] Outros dois elementos vão
caracterizar a nova história cultural: a preocupação com o resgate do popular e
a busca pelo coletivo (estratificações e conflitos). Mas, reafirmando seu
caráter plural e a multiplicidade de enfoques, Ronaldo Vainfas apresenta ao
menos três vertentes atuais: 1. A praticada por Carlo Ginzburg, com suas noções
de cultura popular e circularidade cultural; 2. A história cultural de Roger
Chartier e os conceitos de representação e apropriação; 3. A produzida por
Edward Thompson e seus estudos sobre movimentos sociais e cotidianos das
classes populares. [8]
Seguindo esta mesma perspectiva de que a nova
história cultural foi criada em torno da oposição dos conceitos da história das
mentalidades, Roger Chartier questiona o posicionamento de Lynn Hunt de 1989 –
de que este movimento historiográfico seria unificado e coerente. Para
Chartier, a diversidade dos objetos de investigação, das perspectivas
metodológicas e os conceitos teóricos apresentam, pelo contrário, um movimento
totalmente sem unidade de abordagem, mas construído em torno de um intercâmbio
de debates, especialmente recusando a redução da história a uma só dimensão e o
primado político-social na historiografia. [9]
A mais recente reconstituição histórica
também é originada de um francês, mas ao contrário de Roger Chartier e Ronaldo
Vainfas, percebe o movimento concomitantemente em torno de dois eixos de
estudos culturais, um anglo-saxão e outro francês. O estudo de Pascal Ory
entende a prática de história cultural, no caso francês, situada à margem da
denominada história das mentalidades, vinculando o movimento a partir do artigo
teórico de Georges Duby, Histoire culturelle, originalmente de 1969, mas
republicado na coletânea Por une histoire culturelle (1997).
Emblemático, o texto de Duby conclama para um
inventário do fenômeno cultural, seus símbolos e signos, vocabulários, gestos
rituais, enfim, da relação entre os mecanismos mentais e sua articulação em um
imaginário de base histórica. [10] Mas apesar de sua importância, o texto de
Duby foi pouco conhecido e comentado, num período em que os debates sobre a
estrutura eram centrais na historiografia francesa. Foi somente a partir dos
anos 1980 que as perspectivas antropológicas e culturalistas teriam penetrado
de forma incisiva na academia da França. [11] Na tradição anglo-saxônica, os
estudos deste tema teriam se iniciado com a contrapartida britânica do artigo
de Duby, Em busca da história cultural, de Ernest Gombrich, publicado em 1969,
seguido de diversas obras de Natalie Zemon Davis, Peter Burke e Robert Darnton.
[12]
Os
conceitos
Sendo originadas de diferentes heranças e
tradições, a nova história cultural vem privilegiando objetos, domínios e
métodos bem diferentes, sendo difícil realizar um levantamento completo. Assim,
identificaremos algumas questões comuns, lembrando que as abordagens são diversas.
[13]
A – A
representação e o imaginário.
São as matrizes que geram as práticas sociais
e os comportamentos, que dão coesão e explicação para a realidade. Geram
identidade tanto para o indivíduo quanto para o grupo e são portadoras do
simbólico, que é construído social e historicamente – portanto, a “realidade do
passado só chega ao historiador por meio de representações”. [14] Para
Chartier, o conceito de representação permite articular três modalidades da
relação com o mundo social: a delimitação e classificação das múltiplas
configurações intelectuais; as práticas de reconhecimento de uma identidade
social; as formas institucionalizadas que marcam a existência de um grupo. [15]
Assim, não existem práticas ou estruturas que não sejam produzidas pelas
representações. [16] Todo tipo de narrativa pode ser lida culturalmente, além
das formas, sendo que o leitor pode participar da construção de seu sentido,
originando a historicidade dos textos. [17]
Para a historiadora Sandra Pesavento, isso
acabou englobando até mesmo as narrativas do passado como sendo representações,
sendo a história cultural “uma representação que resgata representações, que se
incumbe de construir uma representação sobre o já representado”. E a partir
daí, passou-se a empregar um novo conceito, o de imaginário, que seriam as ideias
e representações de uma determinada época, criadas para dar sentido ao mundo.
Com isso, pesquisadores como Jacques Le Goff e Cornelius Castoriadis pensam que
todo o campo da experiência humana pode ser abarcado pelo imaginário. [18]
Mas, o historiador britânico Peter Burke, ao
contrário de Sandra Pesavento, percebe que houve um movimento contrário –
primeiro ocorreram as teorizações do imaginário social, para em seguida
passar-se às ideias de representação e construtivismo na nova história
cultural. Inicialmente os estudos de imaginário tiveram dois trabalhos
paradigmáticos na historiografia francesa, a obra As três ordens ou o
imaginário do feudalismo (1978), de Georges Duby, e O nascimento do purgatório
(1981), de Jacques Le Goff. Estes trabalhos pensavam como as representações
tiveram o poder de modificar a realidade, não sendo simples reflexos da
estrutura social. Para Burke, com o tempo, os conceitos de imaginário e
representação tornaram-se limitados, e os historiadores culturais passaram a
pensar que toda a realidade era produzida por meio de representações – portanto
uma influência das ideias construtivistas, comuns na filosofia e crítica literária,
atrelada também a outros conceitos pós-modernos, como o relativismo e o
subjetivismo. É a construção social da realidade, não existindo praticamente o
indivíduo e o mundo real fora das representações. [19]
B – A
cultura popular.
Tradicionalmente, os historiadores trataram a
cultura popular como um sistema simbólico coerente e autônomo, enquanto outros,
dependentes de um sistema de dominação e desigualdade social, compreenderam a
cultura popular a partir de suas dependências em face à cultura dos dominados.
No primeiro caso, a cultura popular é pensada como independente, e no segundo,
totalmente definida pela sua distância em relação aos dominantes. Assim, Carlo
Ginzburg definiu seu conceito de cultura popular tanto pela oposição à cultura
letrada, mas ao mesmo tempo, pela relação que mantém com a cultura dominante,
filtrada pelos seus próprios interesses e valores. [20]
Para Roger Chartier, houve uma recusa nestes
esquemas categóricos. O poder dos modelos culturais dominantes não anularia a
recepção dos dominados, sendo que na distância das normas e dogmas, existem as
resistências e apropriações, campo próprio das tradições partilhadas. [21]
Chartier rejeita o modelo ginzburgiano de dicotomia da cultura popular/cultura
erudita, adotando uma visão mais abrangente e não homogênea de cultura. [22]
Alguns antropólogos aceitam que as culturas populares não são totalmente
dependentes, nem completamente autônomas, nem simples imitações ou totalmente
criativas.
Como qualquer cultura, elas não são
homogêneas e são construídas em uma situação de dominação, por serem grupos
sociais subalternos. [23] Adotando certa influência de Chartier, mas percebendo
que é impossível abandonar o modelo binário de popular e erudito (sem eles
seria difícil analisar as interações), Peter Burke recomenda o emprego sem
muita rigidez, colocando os dois termos em uma estrutura mais ampla. [24]
C – Os
discursos e a linguagem.
No mundo contemporâneo, existem duas crises
relacionadas entre si e que influenciaram muitos dos debates da nova história
cultural: a da modernidade e a crise da História. A primeira é referente às
problemáticas elaboradas após os anos 1960 à cultura moderna, à visão
racionalista de origem oitocentista sobre a História e as raízes iluministas sobre
o conhecimento da realidade. A crise da História seria relacionada tanto ao seu
objeto quanto as suas formas tradicionais de conhecimento e método.
Em ambas houve as críticas sobre o
conhecimento “real” (objetivo) da natureza. Quanto ao linguistic turn (giro ou
virada linguística), situado também após os anos 1960, seria o encontro de
diversas correntes teóricas que tinham como pressuposto comum, a filosofia da
linguagem: Hayden White, Michel Foucault, Michel de Certeau, Ankersmit, Paul
Veyne, entre outros, tendo essencialmente a ideia de que “nada existe fora do
texto ou da linguagem”. [25] A maior influência metodológica destas assertivas
foi de que as fontes passaram a ser vistas não mais como textos inocentes e
totalmente transparentes, sendo escritas com diferentes estratégias e finalidades.
[26]
Contra esse uso incontrolado do referencial
de texto, alguns historiadores culturais conclamaram que a experiência não pode
ser reduzida à ordem do discurso. Natureza e realidade estão imbricadas a toda
experiência narrativa, sendo que “o que está fora do texto, está também dentro
dele” e o combate da noção de prova histórica como sendo positivista seria um
ponto de vista totalmente ingênuo dos pós-modernistas.
Os dados empíricos devem ser investigados em
sua interação com a narrativa. [27] E nem sempre as estratégias dos discursos
são totalmente parecidas com os processos práticos, pois as linguagens
disponíveis são mais limitadas que os recursos que os indivíduos e os grupos
sociais possuem. Na prática histórica dos dias de hoje, exige-se a compreensão
conjunta de como os discursos constroem as relações de dominação, e como eles
mesmos são dependentes de interesses contrários, separando o poder de
legitimação das representações que asseguram a submissão. [28]
D – As
práticas culturais.
Para os novos historiadores culturais, as
relações econômicas, sociais e mentais são campos de práticas e produções culturais.
[29] As práticas envolvem todo o espaço da experiência vivida e a cultura
permite ao indivíduo pensar essa experiência, ou seja, criar as formulações da
vivência. Todo simbolismo é fator de identidade, e toda cultura é cultura de um
grupo: “a história é, ao mesmo tempo e indissociavelmente, social e
cultural”.[30] Assim, o estudo das práticas tornou-se um dos paradigmas da nova
história. Ao invés de se estudar apenas as instituições, as correntes
filosóficas, teológicas, as teorias, parte-se para a história da experiência
humana em todos os seus sentidos. Dentre todos os campos investigados, a
prática religiosa é uma das que mais vem preocupando os especialistas em
história das religiões, por exemplo. Mas entre as formas mais populares da
história das práticas, certamente é a história da leitura, passando por
pesquisadores como Carlo Ginzburg, Michel de Certeau e principalmente, Roger
Chartier. [31]
Imbricada a este campo, são os estudos da
vida cotidiana, sendo a encruzilhada de abordagens recentes da sociologia e da
filosofia. Ambas tem como ponto em comum o mundo da experiência humana, sendo
os comportamentos e valores aceitos como centrais em uma sociedade. Atualmente
os historiadores tentam abordar as regras latentes da vida cotidiana, indo de
encontro tanto da história social quanto à cultural. O cotidiano inclui ações,
atitudes, hábitos e rituais. O desafio maior aos pesquisadores é tentar
determinar as relações entre as estruturas do cotidiano com as mudanças e os
grandes acontecimentos:[32] “o cotidiano só tem valor histórico e científico no
interior de uma análise de sistemas históricos que contribuam para explicar seu
funcionamento (...) fórmula vazia que a cada época serve para preencher um
conteúdo diferente”.[33]
As
críticas
As maiores críticas externas à prática da
nova história cultural vieram inicialmente, de autores vinculados a um
referencial marxista, como Ciro Flamarion Cardoso. Inicialmente, ele considera
que os usos dos conceitos de cultura são polissêmicos demais e muitas vezes,
totalmente opostos. Mas também as aplicações da metodologia antropológica
seriam diferenciadas, conforme o autor. A principal ideia que Cardoso mantém
sobre a história cultural, especialmente a francesa, é de seu radicalismo: que
o conhecimento humano não passaria de um conjunto de ideias e representações,
sem base material, econômica e social. Cardoso não nega o valor e a importância
das produções simbólicas, mas considera que elas são criadas a partir de
respostas sociais e materiais a eventos de ordem histórica e não podem fazer
parte de uma natureza humana (que é irreal e idealizada) e desprovida de
dimensão histórica. [34]
Apesar de se concentrar bibliograficamente na
tradição francesa, como em Roger Chartier, o historiador Ciro Cardoso muitas
vezes generalizou o movimento da nova história cultural como derivado
diretamente do pós-modernismo. Um e outro seriam indissociáveis, especialmente
nas questões de relativismo, subjetividade e construtivismo. [35] Na realidade,
o autor acaba omitindo os referenciais de outros importantes expoentes, como o
britânico Peter Burke e o italiano Carlo Ginzburg, este último radicalmente
oposto ao não realismo epistemológico contemporâneo e à virada linguística.
Outro historiador brasileiro, Ronaldo
Vainfas, percebeu com mais sutileza a pluralidade desta prática
historiográfica, mas do mesmo modo que Cardoso elaborou críticas teóricas para
a vertente francesa. O referencial de representação de Roger Chartier faz com
que o social só tenha sentido dentro das práticas culturais, nos símbolos de
construção da realidade, enfim, o que Vainfas denomina de ‘tirania do
cultural”.[36] Os excessos do conceito de representação também foi percebido
por outro historiador, Pierre Vilar, que considera válido ao historiador
recuperar os diferentes sentidos sociais que as simbolizações ocupam nos mais
variados espaços temporais. [37]
Quanto às críticas internas, elas vieram logo
em meados dos anos 1980. Lynn Hunt enfatizou a falta de teorias unificadas e
programas objetivos. [38] Peter Burke neste período, enumerou pelo menos quatro
campos de problemas. Primeiro, com as definições, ocasionadas por campos
inéditos aos historiadores, como em relação à cultura popular: quem é o povo?
Quais são suas fronteiras ou divisões? Com relação às fontes, como superar as
limitações das fontes escritas e oficiais? Os dois últimos problemas seriam a falta
de explicações e sínteses, devido à fragmentação disciplinar que a história se
encontrava nesta época. [39] Seis anos depois, em 1997, Burke reforçava as
críticas para os exageros da teoria das representações e do construtivismo: “A
invenção jamais está livre de coerções”. O problema essencial para os
historiadores, segundo ele, seria “revelar uma unidade subjacente sem negar a
diversidade do passado”. Mas ao mesmo tempo, evitar cair em uma excessiva
simplificação – a de que as culturas são homogêneas, sem diferenças ou
conflitos.[40]
Um dos mais completos balanços internos do
movimento, porém, foi publicado por Burke em 2004. Entre os vários pontos de
discussão, ele alega que a ideia de construção cultural, apesar de ter sido uma
saudável reação contra o determinismo social e econômico, em alguns casos foi
muito excessiva. Outros pontos já haviam sido detectados antes, mas agora
haviam se tornado mais claros, entre eles a falta de definição de cultura e dos
métodos a serem seguidos, além do perigo de fragmentação. Apesar das conquistas
do construtivismo cultural, seria necessária uma história social da cultura:
“Pode ter muito bem ter chegado o tempo de ir além da virada cultural (...). A
NHC pode estar chegando ao fim de seu ciclo”. [41]
No Brasil, alguns historiadores diretamente
envolvidos neste movimento historiográfico, como Sandra Jatahy Pesavento,
apresentam nítidas contradições. De um lado, defende o conceito de que história
é uma forma de ficção controlada – influenciada objetivamente por Hayden White
e a virada linguística – mas em questões metodológicas, nega qualquer tentativa
de apagar as fronteiras entre história e literatura ou mesmo de que é
impossível o distanciamento entre o pesquisador e seu objeto, como apregoa o
subjetivismo pós-modernista. Ao mesmo tempo, defende o caráter científico da
disciplina, o que é inviável dentro deste contexto de “sensibilidade do
indivíduo”. [42]
Concordando com vários posicionamentos de
Ciro Cardoso, o historiador Ronaldo Vainfas reitera que a história pós-modernista
exagerou, criando uma justificativa contrária ao determinismo da estrutura,
porém, também radical, a de “teorias voluntaristas da consciência”, incapazes
de fornecer generalizações consistentes. [43] Os embates dos paradigmas
continuam, e mais do que nunca, podemos afirmar que a prática da nova história
cultural vem apresentando inovações, contribuições extremamente importantes
para a historiografia, mas que não são uníssonas, unindo pesquisadores díspares
e de influências variadas.
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* Pós-Doutor em História Medieval pela USP,
professor da UFMA. Coordenador do NEVE, Núcleo de Estudos Vikings e
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[1] BURKE, Peter. Abertura: a nova história,
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[2] LE GOFF, Jacques. A história nova. SP:
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[3] HUNT, Lynn. História, cultura e texto. A
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[4] BURKE, Peter. Origens da história
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[5] BURKE, Peter. Unidade e variedade na
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[6] BURKE, Peter. O que é história cultural?
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[7] VAINFAS, Ronaldo. História das
mentalidades e história cultural. In: VAINFAS, Ronaldo & CARDOSO, Ciro
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[8] VAINFAS, Ronaldo. História das
mentalidades e história cultural. In: VAINFAS, Ronaldo & CARDOSO, Ciro
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[9] CHARTIER, Roger. A nova história cultural
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29-44.
[10] DUBY, Georges. A história cultural. In:
RIOUX, Jean-Pierre & SIRINELLI, Jean-François (orgs.). Para uma história
cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 405.
[11] ORY, Pascal. A história cultural tem uma
história. Revista de História Regional 15, 2010, p. 14. Mas o texto de Ory
omite um importante colóquio promovido em 1977 em Tihany, Objetos e métodos da
história da cultura, no qual o próprio Georges Duby apresentou um texto, que
foi republicado numa coletânea de 1988. Cf. DUBY, Georges. Problemas e métodos
em história cultural. Idade Média, idade dos homens: do amor e outros ensaios.
SP: Cia das Letras, 1989, p. 214.
[12] ORY, Pascal. A história cultural tem uma
história. Revista de História Regional 15, 2010, p. 15-28.
[13] O historiador José Barros diferencia
noção de conceito, e afirma que muitas palavras utilizadas pela história
cultural ainda são noções que estão sendo elaboradas, mas preferimos conservar
o termo conceito pelo amplo uso deste na bibliografia especializada. BARROS,
José D´Assunção. A história cultural francesa – caminhos de investigação.
Fênix: revista de história e estudos culturais 2(4), 2005, p. 13.
[14] PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e
história cultural. SP: Autêntica, 2008, p. 42.
[15] VAINFAS, Ronaldo. História das
mentalidades e história cultural. In: VAINFAS, Ronaldo & CARDOSO, Ciro
Flamarion (org). Domínios da história. SP: Campus, 2011, p. 143.
[16] CHARTIER, Roger. O mundo como
representação. Estudos avançados 11(5), 1991, p. 177.
[17] CHARTIER, Roger. A nova história
cultural existe? In: PESSAVENTO, Sandra. História e linguagens. RJ: 7Letras,
2006, p. 35.
[18] PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e
história cultural. SP: Autêntica, 2008, p. 43-45. “Nenhuma sociedade vive fora
do imaginário e que é uma falsa questão separar os dois mundos, o do real e o
do imaginário (...) o imaginário é capaz de substituir-se ao real concreto,
como um seu outro lado, talvez ainda mais real, pois é por ele e nele que as pessoas
conduzem a sua existência”. PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e história
cultural. SP: Autêntica, 2008, p. 47; 48. “O imaginário não é, como se poderia
pensar, um mundo à parte da realidade histórica, uma espécie de nuvens
carregadas de imagens e representações que pairam sobre nossas cabeças, mas não
fazem parte de nosso mundo e de nossas vidas”. PAIVA, Eduardo França. História
e imagens. SP: Autêntica, 2006, p. 26.
[19] BURKE, Peter. O que é história cultural?
RJ: Zahar, 2008, p. 84-116.
[20] VAINFAS, Ronaldo. História das
mentalidades e história cultural. In: VAINFAS, Ronaldo & CARDOSO, Ciro
Flamarion (org). Domínios da história. SP: Campus, 2011, p. 140-141.
[21] CHARTIER, Roger. A nova história
cultural existe? In: PESSAVENTO, Sandra. História e linguagens. RJ: 7Letras,
2006, p. 37-38.
[22] VAINFAS, Ronaldo. História das
mentalidades e história cultural. In: VAINFAS, Ronaldo & CARDOSO, Ciro
Flamarion (org). Domínios da história. SP: Campus, 2011, p. 144.
[23] CUCHE, Denys. A noção de cultura nas
ciências sociais. SP: Edusc, 2002, p. 148-149.
[24] BURKE, Peter. O que é história cultural?
RJ: Zahar, 2008, p. 42.
[25] FALCON, Francisco. História cultural.
RJ: Campus, 2002, p. 7-31.
[26] HUNT, Lynn. História, cultura e texto. A
nova história cultural. SP: Martins Fontes, 2006, p. 18.
[27] GINZBURG, Carlo. Relações de força:
história, retórica, prova. SP: Cia das Letras, 2002, p. 60, 74, 114.
[28] CHARTIER, Roger. A nova história
cultural existe? In: PESSAVENTO, Sandra. História e linguagens. RJ: 7Letras,
2006, p. 39-40.
[29] HUNT, Lynn. História, cultura e texto. A
nova história cultural. SP: Martins Fontes, 2006, p. 9.
[30] PROST, Antoine. Social e cultural
indissociavelmente. In: RIOUX, Jean-Pierre & SIRINELLI, Jean-François
(org). Para uma história cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 134-137.
[31] BURKE, Peter. O que é história cultural?
RJ: Zahar, 2008, p. 78-84.
[32] BURKE, Peter. Abertura: a nova história,
seu passado e seu futuro. In: A escrita da história: novas perspectivas. SP:
Unesp, 1992, p. 23-24.
[33] PRIORE, Mary Del. História do cotidiano
e da vida privada. In: VAINFAS, Ronaldo & CARDOSO, Ciro Flamarion (orgs).
Domínios da história. SP: Campus, 2011, p. 249.
[34] CARDOSO, Ciro Flamarion. Um historiador
fala de teoria e metodologia. SP: Edusc, 2005, p. 55-72, 162, 282.
[35] “A Nova História Cultural, em qualquer
de suas variantes – que, no entanto, apresentam diferenças consideráveis entre
si -, entra com frequencia em contradição consigo mesma na sua própria prática
historiográfica” CARDOSO, Ciro Flamarion. Um historiador fala de teoria e
metodologia. SP: Edusc, 2005, p. 160.
[36] VAINFAS, Ronaldo. História das
mentalidades e história cultural. In: VAINFAS, Ronaldo & CARDOSO, Ciro
Flamarion (org). Domínios da história. SP: Campus, 2011, p. 144.
[37] RIBEIRO JÚNIOR, Florisbaldo Paulo.
Representação e narrativa: usos e abusos. Em tempo de histórias 8, 2004, p.
8-9.
[38] HUNT, Lynn. História, cultura e texto. A
nova história cultural. SP: Martins Fontes, 2006, p. 12-13.
[39] BURKE, Peter. Abertura: a nova história,
seu passado e seu futuro. In: A escrita da história: novas perspectivas. SP:
Unesp, 1992, p. 19-37.
[40] BURKE, Peter. Unidade e variedade na
história cultural. Variedades de história cultural. SP: Civilização Brasileira,
2006, p. 251-267.
[41] BURKE, Peter. O que é história cultural?
RJ: Zahar, 2008, p. 147, 162.
[42] PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e
história cultural. SP: Autêntica, 2008, p. 71, 81, 93, 118.
[43] VAINFAS, Ronaldo. Caminhos e descaminhos
da história. In: VAINFAS, Ronaldo & CARDOSO, Ciro Flamarion (org). Domínios
da história. SP: Campus, 2011, p. 344.
Fonte:
Revista de História.