Racismo contra imigrantes no
Brasil é constante, diz pesquisador
Haitianos em São Paulo; 'A
noção de que o Brasil é um país hospitaleiro, onde todos os imigrantes são
bem-vindos, não passa de um mito', disse pesquisador
"A noção de que o Brasil é
um país hospitaleiro, onde todos os estrangeiros e imigrantes são bem-vindos,
não passa de um mito", diz o pesquisador Gustavo Barreto, após analisar
mais de 11 mil edições de jornais e revistas entre 1808 e 2015.
Em tese de doutorado defendida
recentemente na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), ele concluiu que
o racismo na imprensa brasileira contra o imigrante se manteve constante,
apesar dos avanços, e que a aceitação é seletiva, com diferenças entre europeus
e africanos, por exemplo.
Na tese Dois Séculos de
Imigração no Brasil: A Construção da Identidade e do Papel dos Estrangeiros
pela Imprensa entre 1808 e 2015, Barreto analisou a cobertura do tema em
jornais como O Globo, O Estado de S. Paulo, Folha da Manhã (hoje Folha de S.
Paulo), Correio da Manhã, O País e Gazeta do Rio de Janeiro ao longo de 207
anos.
Gustavo Barreto: discriminação
e racismo na imprensa brasileira vêm de séculos
Em entrevista à BBC Brasil, ele
explica como os termos são usados de forma diferente na imprensa. "O
refugiado é sempre negativo, um problema grave a ser discutido. O imigrante é
uma questão a ser avaliada, pode ser algo positivo ou negativo, mas em geral a
visão é de algo problemático. Já o estrangeiro é sempre positivo, inclusive
melhor do que o brasileiro. É alguém com quem podemos aprender", diz.
Barreto incluiu em seus estudos
as hostilidades sofridas em junho por haitianos em um posto de gasolina na
região metropolitana de Porto Alegre. E, recentemente, houve em São Paulo uma
suspeita de ataque xenófobo contra haitianos, que foram baleados com chumbinho
na escadaria de uma igreja.
Barreto também relembrou a
estigmatização sofrida por africanos e haitianos no ano passado, quando uma
pessoa da Guiné foi identificada como suspeita de estar contaminada pelo vírus
ebola, e afirma que o Brasil ainda está longe de promover uma discussão real
sobre a imigração.
"Em geral, os novos
imigrantes estão sempre sendo vistos como problemáticos na sociedade. As
notícias não estão discutindo imigração, problematizando o assunto, e não se vê
discussões de política imigratória ou da legislação. O foco não é a solução ou
discutir o tema, mas a noção de crise", avalia.
Veja os principais trechos da
entrevista:
BBC Brasil – De acordo com sua
pesquisa nos relatos da imprensa brasileira, como o país "pensou" e
"problematizou" seus imigrantes ao longo dos últimos 207 anos?
Gustavo Barreto - Houve
diferentes momentos, mas o que se manteve por muitas décadas foi a intenção de
trazer mão de obra, sempre com uma clara preferência por cristãos, brancos,
europeus e trabalhadores.
Até 1870 ocorrem pequenos
experimentos isolados, com uma média de chegada de 2 mil a 3 mil imigrantes por
ano, e a partir de 1870 começam as grandes levas de imigrantes, com mais de 10
mil por ano, o que ocorre até 1930.
Havia um consenso de que não se
podia contar só com os portugueses para popular o país, e o governo implementou
políticas de subsídios para estrangeiros. Do governo Vargas em diante, o país
passa a selecionar muito mais quem entra, e, décadas depois, passa a prover
mais imigrantes brasileiros para o mundo do que os receber.
Mais recentemente, nos últimos
dez anos, o Brasil voltou a receber muitos imigrantes, sobretudo bolivianos,
haitianos, angolanos, senegaleses, ganenses, portugueses e espanhóis, entre
outros.
Duas coisas foram cruciais ao
longo do tempo: as questões do trabalho e da raça. Em 1891, o governo decretou
que amarelos e negros não poderiam entrar subsidiados pelo Estado. Se
entrassem, o dono da embarcação poderia perder o alvará de funcionamento.
Além disso, na imprensa fica
claro que os "bons" europeus eram os alemães e italianos, enquanto os
provenientes das ilhas dos Açores e Canárias eram "ruins". Durante
uma época as elites e formuladores de políticas públicas promoveram ideias
eugenistas, segundo as quais uma raça era cientificamente superior à outra,
estimulando um embranquecimento da população brasileira.
BBC Brasil – Quanto ao racismo,
é possível identificar avanços? Como tem sido a cobertura da chegada de
imigrantes haitianos e bolivianos ao Brasil, mais recentemente?
Barreto - O racismo era algo
natural e aceitável no século 19, incluindo o destaque às ideias de supremacia
de raças, entre 1870 até o governo Vargas. A partir da Segunda Guerra, os
grupos começam a ser valorizados. Judeus, alemães e italianos no Brasil começam
a recontar sua história, assim como os japoneses, depois de um momento muito difícil.
Após as cartas de direitos humanos, os valores eugenistas já não são mais
declarados, o que é um avanço.
Mais recentemente, o país
passou a receber um número considerável de bolivianos e haitianos. Mas também
chegam portugueses e espanhóis. A imprensa, no entanto, costuma destacar muito
os problemas que os haitianos trazem, e rapidamente começa a ser construída uma
visão de que eles são um problema. Enquanto isso, os imigrantes europeus
recentes são valorizados por sua cultura e contribuição ao Brasil.
Contribuições culturais ou
produtivas dos haitianos e bolivianos, que têm uma riqueza cultural enorme,
dificilmente viram notícia. O racismo atual se dá pelo não dito, pelo que a
imprensa omite. Quando aparecem na mídia estão atrelados a problemas, crises,
marginalizações, ou ligados à ideia de uma invasão.
BBC Brasil - Apesar dos nítidos
avanços no tratamento aos imigrantes na imprensa brasileira, a pesquisa
identificou algum retrocesso na cobertura atual? Algo que chame a atenção?
Barreto - Há reportagens que
promovem um retrocesso inacreditável, sobretudo no que diz respeito à
construção da ideia de que há nacionalidades mais propensas à submissão, e não
ao empreendedorismo.
No passado, após 1850, durante
muitos anos a mídia rejeitou a entrada de chineses no Brasil por meio de um
discurso que os comparava com escravos, sem iniciativa empreendedora como os
europeus. A imprensa dizia que eles não se classificavam para os programas de
imigração subsidiada pelo governo porque isso acarretaria em "escravidão
amarela".
Hoje, guardadas as diferenças,
a imprensa faz algo parecido com os haitianos. De acordo com algumas das
reportagens analisadas, há a ideia de que eles vão ser explorados, abusados. Pedem-se direitos humanos, e divulga-se uma ideia de que eles
vão virar novos escravos. Você vê jornais de São Paulo relacionando diretamente
os haitianos à escravidão. Numa matéria de 2014, diz-se que os brasileiros
estavam escolhendo os imigrantes haitianos pela canela.
BBC Brasil - Na sua visão, a
imprensa brasileira consegue dar conta do tema da imigração, incluindo a
discussão de soluções e políticas imigratórias, ou acaba tratando o assunto de
forma alarmista, valendo-se de estereótipos?
Barreto - A imprensa parece não
se preocupar com a figura do imigrante ou em discutir o tema imigração em toda
sua complexidade. Sobretudo dos anos 2000 em diante, o imigrante aparece nas
páginas dos jornais brasileiros como explorado, submisso ou relacionado a
denúncias de violações de direitos humanos.
Em geral os novos imigrantes
estão sempre sendo vistos como problemáticos na sociedade. As notícias não
estão discutindo imigração, problematizando o assunto, e não se vê discussões
de política imigratória ou da legislação em nenhum momento.
Quando os haitianos chegaram a
São Paulo, há algo nítido na cobertura da imprensa. Vê-se um esforço homérico
para jogar a Prefeitura, os governos dos Estados de São Paulo e do Acre e o
governo federal uns contra os outros. O foco não é a solução ou discussão do
tema, mas a noção de crise.
Quando as quatro instâncias
decidiram se sentar e organizar os problemas que estavam acontecendo, num
encontro nacional sobre refúgio e imigração, a imprensa praticamente ignora,
com pequenas notinhas e um dos grandes jornais nem registra.
Outra coisa que chamou a
atenção foi o episódio do ebola, no ano passado. Quando ocorre a suspeita de
uma pessoa da Guiné contaminada, todos os africanos e haitianos – que são do
Caribe, em outro continente – passam a ser suspeitos e gera-se um grande debate
nacional sobre a proibição da entrada dessas pessoas no país.
Folha da Manã, fevereiro de
1926: "Fechem-se as fronteiras"
BBC Brasil - Suas observações
não contrastam com a ideia tão difundida do Brasil como um país hospitaleiro, e
do brasileiro como um povo acolhedor, famoso no mundo todo pela simpatia e boa
recepção aos estrangeiros?
Barreto - Na verdade entre os
pesquisadores do assunto há a noção do "mito da hospitalidade". Há
uma diferença entre a maneira como nos vendemos para o mundo e a verdadeira
hospitalidade a qualquer estrangeiro ou a democracia racial.
O estudo de como a imigração é
retratada no país entre 1808 e 2015 mostra que a hospitalidade é seletiva, mas
que essa noção sempre foi difundida, em benefício do Brasil. Esta é uma das
minhas principais conclusões na tese, a de que a nossa famosa hospitalidade é
um mito.
A partir de 1870, você vê nos
jornais a palavra "hospitaleiro" sendo usada para algumas situações,
e ao lado os discursos racistas e eugenistas claramente em posição contrária
contra outros grupos de imigrantes. O brasileiro também emigra para diversos
países, e nossa presença tem aumentado lá fora, mas ainda recebemos um número
muito baixo de refugiados, por exemplo. Contribuímos pouco neste sentido.
BBC Brasil - Você citou um
editorial do jornal Folha da Manhã, de 1926, entitulado "Fechem-se as
fronteiras". Esta seria um pouco a noção de que o Brasil enxergou durante
muito tempo a imigração de forma unilateral e seletiva? Ainda vemos este
discurso?
Barreto - Sim, o tema do
editorial de 1926 é justamente a noção de que o país já teria recebido todos os
imigrantes necessários. Já chegaram todos que nós queremos, após a vinda em
massa de alemães e italianos, foi cumprida a função da imigração no Brasil. Já
ocupamos e populamos o país, e agora as fronteiras devem ser fechadas e quem
entrar deverá ser muito bem selecionado.
Hoje em dia a posição continua,
mas travestida por outro argumento. A imprensa trabalha com o mito de que somos
um país pobre, em desenvolvimento, e não temos condições de receber mais
ninguém. Vamos receber somente os melhores e mais úteis. São evidências no
discurso da imprensa e na visão da sociedade brasileira que contrastam
diretamente com a ideia do "Brasil hospitaleiro, onde todos são
bem-vindos".
No contexto atual, de crise
econômica e política, há que se observar atentamente a maneira como o imigrante
será retratado na imprensa, por ele ser um excelente bode expiatório para os
problemas. Não tem grande chance de defesa, não está integrado ao país, é o
outro, o diferente, que traz dificuldades.
Desemprego, inflação e crise
tendem a tornar a visão dos imigrantes ainda mais negativa.
http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/08/150819_racismo_imigrantes_jp_rm?post_id=10203702688922414_10203702689042417#_=_
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