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O desespero humano. Desespero virtual e
desespero real
O
desespero será uma vantagem ou uma imperfeição? Uma coisa e outra em pura
dialética. A só considerarmos a ideia abstrata, sem pensar num caso
determinado, deveríamos julgá-lo uma enorme vantagem. Sofrer um mal destes
coloca-nos acima do animal, progresso que nos distingue muito mais do que o
caminhar de pé, sinal da nossa verticalidade infinita ou da nossa
espiritualidade sublime. A superioridade do homem sobre o animal está pois em
ser suscetível de desesperar, a do cristão sobre o homem natural, em sê-lo
com consciência, assim como a sua beatitude está em poder curar-se.
Assim há uma infinita vantagem em poder desesperar, e, contudo, o desespero
não só é a pior das misérias, como a nossa perdição. Habitualmente a relação
do possível com o real apresenta-se de outro modo, porque, se é uma vantagem,
por exemplo, poder-se ser o que se deseja, maior ainda é sê-lo, isto é: a
passagem do possível ao real é um progresso, uma ascensão.
Com o desespero, pelo contrário, há uma queda do virtual ao real, e a margem
infinita do virtual sobre o real dá a medida da queda. Não desesperar é pois
elevar-se. Mas a nossa definição é ainda equívoca. A negação, aqui, não se
assemelha ao não ser manco, não ser cego, etc... Pois que, se não desesperar
equivale à absurda ausência de desespero, o progresso, nesse caso, será o
desespero. Não estar desesperado deve significar a destruição da
possibilidade de o estar: para que um homem não o esteja verdadeiramente, é
preciso que a cada instante aniquile em si a sua possibilidade. Habitualmente,
é outra a relação do virtual com o real. É verdade os filósofos dizerem que o
real é o virtual destruído; sem grande exatidão contudo, pois que é o virtual
plenamente realizado, o virtual agindo. Aqui, pelo contrário, o real (não
estar desesperado), por conseqüência uma negação, é o virtual impotente e
destruído; ordinariamente o real confirma o possível, aqui nega-o.
O desespero é a discordância interna duma síntese cuja relação diz respeito a
si própria. Mas a síntese não é a discordância, é apenas a sua possibilidade,
ou então implica-a. De contrário não haveria sombra de desespero, e
desesperar não seria mais do que uma característica humana, inerente à nossa
natureza, ou seja, que o desespero não existiria, sendo apenas um acidente
para o homem, um sofrimento como uma doença em que se soçobrasse, ou, como a
morte, nosso comum destino. O desespero está portanto em nós; mas se não
fôssemos uma síntese, não poderíamos desesperar, e tampouco o poderíamos se
esta não tivesse recebido de Deus, ao nascer, a sua firmeza.
De onde vem então o desespero? Da relação que a síntese estabelece consigo
próprio, pois Deus, fazendo que o homem fosse esta relação, como que o deixa
escapar da sua mão, de modo que a relação depende de si própria. Esta relação
é própria, o eu, e nela jaz a responsabilidade da qual depende todo o
desespero, desde que existe; da qual ele depende a despeito dos discursos e
do engenho dos desesperados em enganarem-se e enganar os outros,
considerando-o como uma infelicidade ? como no caso da vertigem que o
desespero, se bem de natureza diferente, evoca sob mais que um ponto de
vista, a vertigem estando para a alma com o desespero para o espírito e
abundando em analogias com ele.
Soren Aabye Kierkegaard. O desespero Humano. Traduções de Carlo Grifo, Maria
José Marinho, Adolfo Casais Monteiro. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984,
(Os Pensadores)
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