Os fatos se impõem à CPI
Em toda
parte, investigações legislativas tem um quê de espetáculo, quanto mais não
seja pela carga dramática que costuma envolver o interrogatório de autoridades
e outras figuras poderosas sob suspeição - a exemplo dos hearings no Congresso
dos Estados Unidos e das inquiries no Parlamento britânico. Mas em nenhum país
onde os membros de comissões do gênero conservem a noção do decoro no exercício
do seu papel se admitiriam as cenas de programa de auditório que pontuaram nos
últimos dias os depoimentos na CPI do Cachoeira dos governadores Marconi
Perillo, do PSDB de Goiás, e Agnelo Queiroz, do PT do Distrito Federal (DF).
O
primeiro instalou na sala dos trabalhos uma claque amestrada para aplaudir o
que seriam as suas respostas mais contundentes. No caso do segundo, foi pior.
Quando ele pôs à disposição da comissão os seus sigilos fiscal, bancário e de
comunicações, e ao término da oitiva, ganhou palmas e louvações de uma dezena
dos 32 integrantes do colegiado incumbido de questioná-lo - e a outros políticos
- sobre suas ligações com o esquema do contraventor Carlos Augusto Ramos. Os
exaltados eram petistas e companheiros de viagem. Uma senadora do PC do B do
Amazonas, Vanessa Grazziotin, chegou a se dizer segura de que os jornalistas
presentes "se não estão aplaudindo fisicamente, estão aplaudindo
internamente".
Certa
vez, também no Congresso Nacional, repórteres já o fizeram, externamente. Em 16
de janeiro de 1985, um dia depois de ser eleito presidente da República ainda
pelo sistema indireto, Tancredo Neves deu a sua entrevista inaugural no
plenário da Câmara. Em dado momento, perguntado sobre o que pretendia fazer com
a dívida externa do País, respondeu que não a pagaria "com o sangue dos
brasileiros" - e foi patrioticamente aplaudido por quase todos os
jornalistas presentes. Na edição seguinte do Jornal
do Brasil, o então decano dos colunistas políticos brasileiros,
Carlos Castelo Branco, se declarou estarrecido com a manifestação dos colegas.
Agora, ao que se saiba, nenhum político de projeção repreendeu os seus pares
pela conduta imprópria.
O
silêncio é deplorável por reforçar na opinião pública a percepção de que a CPI
não passa de mais um jogo político entre o PSDB e o PT, fadado a terminar
empatado sem gols, com o PMDB no meio deles, concentrado em proteger o
governador fluminense Sérgio Cabral, amigo do peito de Fernando Cavendish, dono
da agora oficialmente inidônea construtora Delta. Ainda bem que os fatos têm
vida própria. Imaginada pelo ex-presidente Lula para desviar as atenções do
julgamento próximo do mensalão e para se vingar de Perillo, por ter ele
revelado que o advertira para o escândalo em curso à época, a comissão
conseguiu, de tropeço em tropeço, encher pelo menos a metade do seu copo.
A
maioria governista não teve como evitar a quebra dos sigilos da Delta em escala
nacional, demandada pela oposição, apesar dos temores de que a devassa possa
respingar no Planalto, por ter a empreiteira abocanhado a parte do leão dos
contratos do PAC, entre outros. Já a esperta iniciativa do petista Agnelo de
abrir os seus dados forçou o tucano Perillo a recuar da anunciada decisão de
não fazê-lo. A CPI terá, portanto, uma farta travessa de informações de pessoas
físicas e jurídicas para mastigar. Se o fizer com seriedade, poderá a partir
daí rever com outros olhos a transcrição das 30 mil horas de conversas entre
Cachoeira, sua gente e seus parceiros na política e nos negócios.
Mesmo
que a Justiça declare, como quer a defesa do bicheiro, que o seu teor não seja
aceito como prova nos tribunais, por vício de origem, as palavras gravadas têm
existência objetiva e devem formar juízos no tribunal político do Congresso. O
polêmico parecer em favor de Cachoeira do desembargador Tourinho Neto, relator
da matéria no Tribunal Regional Federal do DF, será votado na semana que vem
por seus dois colegas de turma. Um voto que acompanhe o do relator e o bicheiro
estará livre. Por fim, os inquéritos pedidos pelo procurador-geral da
República, Roberto Gurgel, contra Perillo e Agnelo por suas conexões com o
grupo de Cachoeira garantem que o escândalo continuará em chapa quente. Algumas
verdades inconvenientes sairão disso tudo.