As vidas que o PNE poderia mudar
Talita, Maria, Carlos e Renato ajudam a entender a que
se destinam os royalties e o Plano Nacional de Educação
O filho de 1 ano e meio brinca com paus e pedras no
quintal e Talita Cristina da Silva, 20 anos, o segue com o próximo bebê já na
barriga. “Não pode ir aí”, “Solta isso” e “Cuidado” são algumas das frases que
mais diz o dia todo, consciente de que não é a melhor rotina nem para ele nem
para ela própria. “Queria que ele fosse para a creche para aprender mais
coisas, brincar e eu também poder ir atrás de melhorar de vida”, diz.
Talita e os filhos são exemplos da demanda por
educação que o Brasil não conseguiu atender até agora. Por trás da destinação
dos royalties para o setor e da consequente aprovação do Plano Nacional de
Educação (PNE) com 10% do PIB para a área estão milhões de pessoas como ela que
dependem de mais investimento para conseguir o direito ao ensino de qualidade.
O projeto está há dois anos e meio em tramitação no
Congresso Nacional e prevê 20 metas que devem ser cumpridas até 2020. Desde a
última semana, também inclui uma emenda que destina 100% dos royalties do
petróleo para a educação, estratégia do governo para que seja cumprido.
Talita e o filho passam os dias longe da escola:
A jovem de Ferraz de Vasconcelos, na Grande São Paulo,
aguarda há nove meses vaga para o filho em uma das poucas creches da cidade. No
meio da espera, descobriu que o segundo filho está a caminho e logo precisará
de duas vagas. “Se não tem vaga nem para o primeiro, imagina agora”, lamenta.
Enquanto a meta 1 do PNE é atender 50% das crianças de até 3 anos, a cidade
onde vive tem apenas 178 vagas públicas e 2,2 mil nomes na lista de espera. Um
retrato de algo que se repete em todo o Brasil, onde há 1,6 milhão de vagas
públicas para mais de 10 milhões de crianças na faixa etária.
Por causa disso, Talita deve engrossar o déficit
relacionado às metas 11 e 12 , de ampliar a população entre 18 e 24 anos com
curso técnico e superior. “Eu era boa aluna, mas quanto mais o tempo passa mais
difícil acho de voltar para a escola. Agora já estou pensando em fazer bico
quando os meninos estiverem maiorzinhos.”
Morador da mesma cidade, Carlos Vinicius Costa Santos,
14 anos, é mais otimista quanto ao próprio futuro que personifica outros pontos
ambicionados no projeto do PNE. Caçula em uma família de cinco irmãos
sustentados pela avó diarista, ele é o único que não abandou a escola ou perdeu
anos de estudo até o momento. “Acho que meus irmãos pararam por desinteresse
mesmo. Eu pretendo ser advogado”, diz .
Carlos fala da desistência dos irmãos mais velhos:
Se apenas concluir o último ano do ensino fundamental
já vai ajudar a cumprir a meta 2 , de universalização do ensino fundamental na
idade correta, algo que seus irmãos e outros 539 mil brasileiros não fizeram
segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE, de
2011. A irmã, Taiane, de 16 anos, chegou a concluir com atraso o fundamental e
agora se divide entre a busca por emprego e o ensino médio noturno.
Ela dá pistas do que levou ao desinteresse dos irmãos.
“O Carlos ainda estuda de dia e em uma escola que quase não falta professor. O
colégio (ensino médio) é mais complicado, falta tudo, aula mesmo é raro e tem
muita influência ruim”, resume. Ainda assim, ela voltou para a escola ao menos
enquanto não encontra trabalho. Melhorar o ensino médio e mantê-la como aluna é
a meta 3 do PNE, de atender 85% dos adolescentes de 15 a 17 anos. Atualmente,
só 80% estudam – o que significa que 2 milhões de jovens nessa idade estão fora
da escola.
O futuro da família se relaciona ainda com a meta 8 ,
de elevar a escolaridade média da população de 18 a 29 anos para os 25% mais
pobres e igualar a situação de negros e brancos até 2020. No último Censo, de
2010, apenas um em cada cinco negros acima de 20 anos continuava estudando.
Professores
Renato Babolim Ribeiro, 26 anos, representa outros
protagonistas da Educação que aguardam aprovação do PNE para conseguir direitos
mínimos: os professores. Formado em Pedagogia em 2011, ele vive em condições
precárias com holerites que variam de R$ 51 a R$ 1.200 conforme a época do ano.
“Ao contrário das empregadas domésticas, que finalmente conseguiram seus
direitos trabalhistas, metade de nós professores ainda seguimos sem 13º, férias
e qualquer garantia”, comenta desolado.
Renato expõe a situação de professores por falta de
concurso:
Em todo o Brasil, embora faltem professores
diariamente em sala de aula, apenas metade dos que atuam nas redes públicas tem
cargo efetivo, a meta 18 é elevar para 90% os concursados. Isso mudaria a vida
de Renato que hoje é professor auxiliar na rede estadual paulista contratado a
cada fim do primeiro bimestre do ano e dispensado às vésperas das férias, em
dezembro. Às vezes, ainda dá aulas como substituto, mas nunca tem certeza se
terá trabalho ou renda. “São 25 mil professores nessas condições e não tem
concurso para PEB 1 (que atende 1º ao 5º ano, na rede estadual de São Paulo)
desde 2005. Tenho colega que chega a passar fome em casa alguns meses”, afirma.
Também fazem parte dos objetivos do PNE equiparar a
renda dos professores a dos demais profissionais de nível superior ( Meta 17) e
garantir em um ano formação continuada nas áreas de atuação, incluindo
pós-graduações gratuitas ( Meta 15 ). “Se eu pudesse, já estava cursando pós,
mas falta renda e todos os programas oficiais de ajuda são voltados para o
concursado, como se o governo não soubesse a nossa situação”, afirma Renato.
Dizem respeito à especialização alguns dos objetivos
mais difíceis de alcançar até o fim da vigência do plano, em 2020. Ainda entre
os professores, a meta 16 é que 80% dos que atuam na educação básica tenham
pós-graduação. Atualmente, o censo escolar apura a escolaridade dos mestres
apenas até o nível superior. Mesmo aí já há uma defasagem quase impeditiva: 20%
dos atuais professores sequer concluíram curso superior. Em uma pesquisa
amostral do Instituto Paulo Montenegro, apenas um quinto havia concluído também
pós-graduação. “Infelizmente a gente ainda tem que brigar por coisas mais
básicas”, comenta Renato.
A aposentada Maria Pereira Silva, de 57 anos,
representa outra enorme demanda por mais investimento em educação por algo
ainda mais rudimentar: saber ler e escrever. Ela faz parte dos 12,9 milhões de
brasileiros analfabetos com mais de 15 anos – 8,6% de todos nós. Se a meta 9 do
PNE for cumprida, em 2020 a alfabetização seria universalizada.
A baiana que vive há 40 anos em São Paulo sonha com
esse momento desde a infância. Quando completou 7 anos adiou os estudos pela
primeira vez para trabalhar seguindo uma sina de filha mais velha. “Eu era remo
de família”, explica. Aos 9 anos, o pai morreu e ela se viu cuidando das irmãs
mais novas. Aos 18 anos veio para São Paulo em busca de oportunidade de
trabalho e passou duas décadas como empregada doméstica e o restante como
diarista.
Maria fala de suas tentativas de estudar:
“O tempo que sobrava eu dedicava ao meu filho, esse
sim estudou. Até faculdade fez”, conta. Maria se matriculou em alguns cursos de
jovens e adultos no meio do caminho, mas desistiu por conta das salas cheias e
da falta de entrosamento com os colegas mais novos. “O barulho me incomodava.
Acho que sala para adulto é diferente de adolescente, a gente precisa de mais
atenção e calma”, avalia. Sem conhecer o PNE, ela também pede que as aulas
incluam disciplinas que a ajudem a obter renda, exatamente como a meta 10 , que
estabelece que uma em cada quatro vagas para adultos seja integrada a educação
profissional. “Se eu soubesse um lugar que desse curso de escrita e costura
junto, eu correria atrás.”
O PNE traça ainda objetivos para a população
deficiente, para aumentar o número de mestres e doutores na educação superior,
melhorar o resultado das redes nas avaliações e estimular a gestão democrática
nas escolas ( veja todas as metas aqui ). A meta mais discutida da lei, no
entanto, é a 20, que trata das fontes de financiamento para garantir que a lei
signifique de fato mudanças nas vidas de Talita, Carlos, Renato, Maria, os
milhões de pessoas que eles representam e, por consequência, da população toda.
http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/2013-06-04/as-vidas-que-o-pne-poderia-mudar.html