"Minha mãe esperou 37 dias por uma UTI"
A história da paciente que
morreu após passar um mês entubada no pronto-socorro revela escolhas trágicas
feitas pelos médicos enquanto governo e Justiça trocam ofícios.
Priscila Machado que esperou
37 dias á espera de uma UTI.
Maria Lucia,que morreu á
espera de uma vaga na UTI.
Capítulo 1: Um pedido de socorro; 120 negativas
Um corredor comprido,
cercado por paredes que há tempos não recebem pintura, leva à entrada da casa
alugada onde, até outubro, vivia a costureira aposentada Maria Lucia Machado,
de 62 anos, na Vila Matilde, Zona Leste de São Paulo. Entra-se pela porta da
cozinha. Era ali que ela mantinha apertados os laços de uma família cheia de
necessidades.
A sala havia sido transformada em quarto para um irmão
desempregado. Para outro, que sofre de esquizofrenia, construiu-se um puxadinho
nos fundos. Maria Lucia dividia o quarto original com dois sobrinhos acolhidos
desde a infância: Leticia, de 23 anos, e Luan, de 13 – ambos portadores de
deficiência intelectual.
À filha única, Priscila
Machado Sambrana, de 37 anos, foi destinado o andar de baixo de um beliche ao
lado da cama da mãe, que a criou sozinha. Esse arranjo frágil, mas funcional,
entrou em colapso às 21 horas do dia 30 de novembro, quando Maria Lucia morreu
no Hospital Municipal Dr. Alexandre Zaio, na Vila Nhocuné, a 2 quilômetros
dali.
A perda do ponto de equilíbrio de uma família especial não pode ser
atribuída a uma fatalidade. O destino trágico fora antecipado pelos médicos
que, semana após semana, assistiram à deterioração da saúde da paciente dentro
do hospital. Durante 37 dias, eles tentaram conseguir uma vaga na Unidade de
Terapia Intensiva (UTI) de algum outro hospital da maior capital do país.
O
pedido foi negado mais de 120 vezes por diferentes instituições municipais,
estaduais e privadas que prestam serviço ao SUS. A maioria registrou num
sistema oficial da prefeitura a mesma resposta peremptória: “sem vaga”. Outras
detalharam o infortúnio dos doentes: “O hospital está com superlotação,
pacientes internados sem disponibilidade de vagas de UTI. Estamos sem
respirador na emergência e impossibilitados de receber novos casos”.
Esses registros, obtidos
pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, são a confissão da
insuficiência de leitos no Sistema Único de Saúde (SUS) e da fragilidade da
gestão pública. Não só isso. A lentidão com que o pedido de socorro feito por
Priscila circulou pelos escaninhos da Justiça é um sinal de que os procedimentos
adotados pelos magistrados são incompatíveis com as urgências médicas.
Quando a
janela de oportunidade para salvar uma vida é medida em poucos dias ou em
algumas horas, as instituições falham. O cidadão se vê transformado em um
número mal digerido pela engrenagem burocrática. Um a mais. Por trás da
sequência CROSS-SS-1228714-16, o registro de Maria Lucia na Central de
Regulação de Vagas, havia uma história.
Paciente monitorado na disputada
UTI Central do Hospital São Paulo,da
UNIFESP.
Maria Lucia era hipertensa,
diabética e fumante. Em setembro, sofreu um infarto e precisou colocar um stent
(prótese para manter as artérias desobstruídas) no Instituto do Coração
(InCor). Passou 15 dias internada depois de sofrer uma reação alérgica ao iodo,
usado num dos exames.
Foi liberada, com a condição de continuar o
acompanhamento médico. Numa sexta-feira de outubro, ela passou mal em casa
enquanto lavava a louça do almoço. Não haveria tempo de cruzar a cidade para
chegar ao InCor. A família correu ao pronto-socorro mais próximo. Com grave
falta de ar, rosto arroxeado e a pressão arterial nas alturas (20 por 12),
Maria Lucia foi acomodada na sala de emergência do Alexandre Zaio.
Os médicos
detectaram também uma pneumonia e a necessidade de agir rápido. Em quatro dias,
ela sofreu duas paradas respiratórias. Quando deixou de respirar pela segunda
vez, os profissionais decidiram entubá-la. Ali mesmo, na sala de emergência,
enquanto não surgia uma vaga na UTI.
O tubo plástico colocado na boca descia
pela traqueia para fazer chegar aos pulmões em sofrimento o oxigênio fornecido
por um respirador artificial. Sem o auxílio mecânico, Maria Lucia não
resistiria.
A defensora pública Daniela
de Albuquerque."É triste perceber que não estamos conseguindo garantir
o direito á saúde.
EMPENHO
A defensora pública Daniela
de Albuquerque. “É triste perceber que não estamos conseguindo garantir o
direito à saúde”.
Manter pacientes entubados
por longos períodos no pronto-socorro é uma daquelas práticas absurdas que, de
tão repetidas nos hospitais públicos, parecem normais. Não são. Fora da UTI, o
doente que precisa dela não conta com os mesmos equipamentos e insumos.
Nem com
a atenção, 24 horas por dia, de uma equipe multidisciplinar especializada em
cuidados de pacientes críticos – aqueles que podem perder a vida a qualquer
momento, sobretudo se houver um descuido dos médicos.
Muito menos com o maior
espaço entre os leitos e o ambiente asséptico que as Unidades de Terapia
Intensiva são obrigadas a oferecer, de acordo com as exigências das autoridades
sanitárias.
“O risco de erro médico é muito mais elevado quando o profissional
atende o paciente fora do ambiente adequado”, diz Mauro Aranha, presidente do
Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp).
Um levantamento
realizado pela entidade, no final do ano passado, com diretores clínicos de 15
hospitais públicos ou filantrópicos localizados na capital paulista, revelou
que pacientes graves esperam, em média, até dois dias por um leito de UTI.
“Isso é gravíssimo. Não tem perdão”, afirma Aranha. E estamos falando do estado
mais rico do Brasil.
Essa média é bastante
conservadora, como demonstra a história de Maria Lucia. Enquanto a saúde dela
se deteriorava dia após dia na espera de mais de um mês e os médicos se viam de
mãos atadas diante do sofrimento da família, o caso era tratado em arrastadas
trocas de ofício entre órgãos públicos. Cumpriam o protocolo para chegar ao
típico destino final: o do tudo registrado e do nada resolvido.
Capítulo 2: Uma loteria sem vencedores
Maria Lucia não era a única
paciente entubada na emergência do Alexandre Zaio. Dividia o espaço com mais
quatro pacientes em situação semelhante. Todos usavam equipamentos de
monitoração, enquanto aguardavam uma vaga na terapia intensiva.
Uma loteria sem
vencedores. “Em todo o período em que minha mãe ficou naquela sala, cerca de
nove pessoas morreram”, diz Priscila, a filha única. “Todas à espera de UTI.”
Sem a perspectiva de conseguir um leito na própria instituição, os médicos
inscreveram Maria Lucia no sistema da Central de Regulação de Urgências e
Emergências (Crue), da prefeitura.
Esse órgão centraliza as demandas dos
moradores da capital, analisa a gravidade dos casos (de acordo com a breve
descrição preenchida pelos profissionais solicitantes) e encaminha os doentes
ao hospital capaz de atendê-lo.
A central funciona 24 horas. Em cada turno, há
apenas quatro médicos para regular todos os pedidos de UTI recebidos por
computador ou telefone. Eles decidem quem será atendido e onde, numa estressante
administração da escassez.
“Aqui está longe de ser o
mundo ideal. Ninguém deveria ficar esperando, mas não há vagas para todos”, diz
Sandro Garcia Hilário, coordenador de regulação da Secretaria Municipal de
Saúde. Ele não trabalhava no órgão quando o caso da aposentada ocorreu, no
final da gestão Fernando Haddad (PT-SP).
“Conseguimos um leito de UTI em cerca
de 50% dos pedidos que nos chegam. A outra metade dos pacientes não é
transferida, mas isso não significa que todos morrem.” Nesse grupo, há pessoas
que saem da fila porque melhoram ou porque o hospital consegue uma vaga
internamente. Nem todos têm a mesma sorte.
“É muito frustrante saber da
necessidade do paciente e não conseguir um leito hoje, amanhã, nem depois de
amanhã”, diz Mônica Tormena de Campos, coordenadora de regulação
inter-hospitalar da Crue.
O registro do primeiro
pedido dos médicos de Maria Lucia é de 25 de outubro, o mesmo dia em que ela
foi entubada. Os dias se passaram e as negativas dos hospitais se acumularam.
Pelos funcionários do Alexandre Zaio, Priscila soube que familiares em
desespero costumavam procurar a Justiça.
Era sua única chance. Faltou várias
vezes ao trabalho de estoquista numa empresa de alimentação para conseguir
juntar a papelada necessária ao pedido de liminar judicial feito pela
Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Começava ali a cruel cronologia do
adeus.
3 de novembro
A primeira providência da
defensora pública Fernanda Dutra Pinchiaro foi tentar resolver o problema
administrativamente. Ela envia um ofício aos gabinetes dos secretários de
Saúde: David Uip, do governo estadual, e Alexandre Padilha, do município.
Pede
a transferência urgente da paciente para uma UTI. Segundo o relatório médico
anexado, Maria Lucia apresentava trombose da veia porta, insuficiência cardíaca
congestiva e fibrilação arterial. A resposta não chegou.
17 de novembro
Em desespero, Priscila volta
a pedir socorro jurídico. A defensora pública Daniela Skromov de Albuquerque
assume o caso. Na mesma data, entra com um pedido de tutela antecipada na
esperança de que o poder público fosse obrigado a enviar Maria Lucia para uma
UTI o mais rápido possível.
No laudo anexado ao documento, o médico Fabio da
Silva descreve a gravidade do quadro: “Paciente evolui em sala de emergência sob
cuidados intensivos e uso de drogas vasoativas e respira com a auxílio de
ventilador mecânico, com difícil desmame. Aguarda vaga de UTI que já foi
solicitada previamente via Central de Regulação de Vagas (porém, ainda não
disponível)”.
Por um triste engano,
Daniela informa no pedido que a paciente fora internada na ala de emergência
após sofrer um acidente vascular cerebral (AVC) hemorrágico. Essa é uma doença
grave e, muitas vezes, incapacitante. A mesma que matou a ex-primeira-dama
Marisa Letícia há poucas semanas.
Maria Lucia não teve um AVC. Se tivesse
sofrido uma hemorragia no cérebro e permanecido no pronto-socorro durante
semanas, dificilmente um leito de UTI seria capaz de mudar sua história. O
erro, observado durante a apuração desta reportagem, havia passado despercebido
da família e da própria Defensoria Pública.
Não se sabe se o deslize na
descrição do caso teve alguma influência sobre a decisão judicial. Antes que o
dia terminasse, a magistrada Alexandra Fuchs de Araujo, da 6a Vara de Fazenda
Pública, nega a liminar, sob o argumento de que a concessão do leito nessas
condições poderia “gerar dano a terceiro por eventual alteração de fila”.
Decide apenas intimar as secretarias de Saúde a prestar esclarecimentos em 48
horas com urgência.
21 de novembro
Quatro dias depois da
decisão da juíza, a chefe do cartório do Tribunal de Justiça transmite a ordem
para que um oficial intimasse a prefeitura e o governo estadual a prestar
esclarecimentos em 48 horas. Não se sabe se a intimação chegou ao destino. A
comprovação não está nos autos do processo. Maria Lucia continuou onde sempre
esteve, mas cada dia pior.
22 de novembro
Depois de passar semanas
entubada em ambiente inadequado, Maria Lucia contrai bactérias
multirresistentes, micro-organismos que vencem a maioria dos antibióticos. Uma
grave ameaça ao ambiente hospitalar e à saúde pública. Era preciso enviá-la a
uma UTI com isolamento – um recurso ainda mais escasso.
A cada 12 horas, o
hospital renovava o pedido à Central de Regulação. Sempre sem sucesso. Maria
Lucia foi transferida para um isolamento improvisado: um antigo consultório.
Ali ficaria até o fim.
30 de novembro
Inconformada, a defensora
pública Daniela faz uma nova manifestação à juíza. Ressalta que a doente
aguardava um leito havia mais de um mês, contraíra uma infecção hospitalar e,
naquela data, encontrava-se à beira da morte.
Ressalta que o processo
continuava sem nenhuma resposta dos réus, apesar do prazo de 48 horas
determinado pela juíza, 13 dias antes. Pede a ela que defira o pedido de
liminar com a máxima presteza. E, mais uma vez, se frustra.
“Esse caso é a prova de que
não estamos conseguindo garantir o direito à saúde administrativamente, nem
judicialmente”, diz Daniela. “É muito triste.” Cada vez mais, a decisão sobre
quem deve ocupar as raras vagas de terapia intensiva é tomada por juízes, muitas
vezes sem considerar os critérios médicos de priorização. Ganha quem grita mais
e com mais insistência.
O fenômeno torna o aproveitamento dos leitos ainda mais
ineficaz quando prioriza os pacientes menos graves. Ou quando obriga o Estado a
reservar uma vaga ao doente que menos se beneficiaria dela (um paciente em fase
terminal de câncer, por exemplo). Não deveria ser assim quando o que está em
disputa é algo de valor inestimável: a própria vida.
A judicialização não é fruto
de geração espontânea. É reflexo da carência e da má gestão de leitos na rede
pública. Uma portaria do Ministério da Saúde preconiza a existência de um a
três leitos de UTI por 10 mil habitantes.
Os hospitais da rede privada tem
4,14. Enquanto isso, a média geral do SUS é de 0,99. Os dados fazem parte de um
levantamento do Conselho Federal de Medicina (CFM), realizado a partir da
análise de informações registradas no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de
Saúde (CNES), do governo federal.
A pesquisa revela que o país tem cerca de 41
mil leitos de UTI – metade deles para atender apenas os 25% dos brasileiros que
contam com planos de saúde. Brasília é uma das capitais mais carentes desse
recurso no sistema público. Com 0,96 leitos para cada 10 mil habitantes, a
cidade só não está pior que Macapá (0,57) e Boa Vista (0,94).
Na quarta pior
posição aparece o Rio de Janeiro (1,04). São Paulo (1,58) está distante da
média mais elevada do país: Porto Alegre (4,04). Na comparação entre as
regiões, o Sul e o Sudeste estão em melhor posição. Ainda que nesses estados o
número de leitos seja próximo do recomendável (ou até supere essa marca), há
problemas de gestão que impedem o acesso de grande parte dos doentes.
Frequentemente, uma pessoa que já pode receber alta da terapia intensiva
continua ali porque não há lugar para ela na enfermaria. Isso acontece até
mesmo nos bons hospitais públicos. Enquanto isso, quem chega não consegue
entrar.
“Faltam vagas de UTI no SUS
e sobram nos hospitais privados”, diz Mirella Cristine de Oliveira, presidente da
Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib). A entidade está realizando
um novo censo das vagas.
É uma contrachecagem dos dados registrados pelos
próprios hospitais no CNES, o sistema oficial do Ministério da Saúde. Como a
remuneração dos leitos de UTI é mais alta que a dos leitos comuns, a Amib
resolveu confirmar se os leitos existem e se, de fato, funcionam. É um cuidado
necessário para evitar fraudes dos gestores dos hospitais no preenchimento dos
dados.
“Talvez seja mais barato contratar leitos excedentes da rede privada em
vez de construir hospital, mas para isso é necessário garantir a qualidade dos
dados disponíveis”, diz Mirella. “Precisamos de uma política social
sustentável, que seja consistente para sobreviver às mudanças de governo. A situação
não pode continuar como está.”
Capítulo 3: Brincando de deus
Quando os recursos são
escassos, escolhas trágicas são feitas. A angústia provocada por essa rotina
foi descrita pela médica Flavia Machado em um artigo publicado recentemente no
The New England Journal of Medicine, uma das revistas médicas mais prestigiadas
do mundo.
Chefe da maior UTI do Hospital São Paulo, a instituição-escola da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ela descreve a rotina dos
intensivistas:
São 7 horas da manhã e, mais
uma vez, precisamos decidir quem ocupará um leito na unidade de terapia
intensiva depois de uma cirurgia eletiva. Uma avó de 55 anos com câncer de
intestino? Um idoso com metástase no fígado?
Uma jovem que sente dor e precisa
de cirurgia numa articulação para continuar a trabalhar e sustentar a família?
Deveríamos escolher ou recusar os pacientes que têm câncer? Deveríamos fazer
escolhas baseadas na idade? Na qualidade de vida prévia?
Ou no impacto social,
se, por exemplo, o doente tem quatro crianças para criar? Devemos oferecer o
leito a quem já o negamos antes? Ou devemos simplesmente deixar de brincar de
Deus e conceder a vaga a qualquer pessoa que tenha pedido antes?
Flavia Machado ,na UTI
Central do Hospital São Paulo.
SELEÇÃO
Flavia Machado, na UTI
Central do Hospital São Paulo. “Devemos
parar de brincar de Deus e dar a vaga a quem pediu primeiro?”
No dia da visita de ÉPOCA, a
maioria dos doentes era mantida com algum nível de consciência na UTI de 35
preciosos leitos comandada por Flavia. Estavam lá vítimas de graves traumas
provocados por acidentes de trânsito ou pela violência, sobreviventes de
infarto, recém-operados que precisavam de monitoramento constante.
Jovens,
velhos, homens e mulheres – 90% deles assistidos apenas pelo Sistema Único de
Saúde (SUS). Os doentes que ultrapassaram a porta daquele 6o andar venceram uma
triste seleção. Passaram por todos os funis que limitam o acesso da população
aos melhores recursos.
“Criamos ferramentas de
priorização para tentar reduzir um pouco a injustiça que ocorre”, diz Flavia.
No final do ano passado, ela participou da comissão do Conselho Federal de
Medicina (CFM) que definiu regras de priorização. A Resolução no 2.156 ampara
os médicos, eticamente, em suas escolhas difíceis.
O documento elenca cinco
níveis de prioridade que devem ser respeitados. Em primeiro lugar, devem ser
beneficiados os “pacientes que necessitam de intervenções de suporte à vida,
com alta probabilidade de recuperação e sem nenhuma limitação de suporte
terapêutico”.
Ou seja: os indivíduos recuperáveis, nos quais se pretende
investir com todas as alternativas possíveis de tratamento. Em último lugar, os
doentes em fase terminal, sem possibilidade de recuperação. Por mais que
existam protocolos médicos de escolha, os desempates sempre serão cruéis. “Todo
mundo tem câncer, dois ou três já foram recusados uma vez... Nossa angústia é
enorme”, diz Flavia.
O ponto crucial nos
critérios do CFM é o conceito de terminalidade. Se um paciente de 32 anos tem
câncer terminal, não há por que colocá-lo numa UTI apenas porque ele é jovem. O
que deve ser levado em consideração é a capacidade da UTI de restaurar a
qualidade de vida que ele tinha antes.
Um fator que contribui para a escassez e
mau uso dos leitos é a dificuldade de aceitar a finitude da vida. “No Brasil,
temos uma religiosidade forte que leva as famílias e os médicos a insistir em
tentativas fúteis de evitar o curso natural da morte”, diz Flavia.
Grande parte
dos leitos fica ocupada por longo tempo por pessoas sem possibilidade de
recuperação. Enquanto isso, um paciente que poderia ser salvo não consegue ser
atendido.
O ato de postergar a morte
por meio de tratamentos inúteis que apenas prolongam o sofrimento (conhecido como
distanásia) é frequente até mesmo nos hospitais públicos que mais sofrem com
falta de leitos.
“Como há uma indefinição legal, não podemos deixar de tratar o
doente se a família não estiver de acordo com isso”, diz Flavia. Quando os
parentes entendem a situação, os médicos propõem a chamada extubação paliativa.
O doente é retirado do ventilador mecânico com conforto, sem sentir dor, se a
família aceita o fato de que ele vai morrer.
Muitos médicos, no entanto,
se sentem inseguros em dar esse passo. A resolução do CFM é uma regra ética,
criada com o objetivo de apoiar os médicos em suas decisões difíceis, mas não
tem poder legal.
A família sempre pode questionar a conduta dos profissionais.
Enquanto os brasileiros resistem em discutir os dilemas do fim da vida, os
pacientes que poderiam ser beneficiados por um leito de UTI perdem sua única
chance.
A cada dia de improviso no
pronto-socorro, a probabilidade de um paciente entubado conseguir uma
transferência para a UTI de outro hospital diminui.
“Se passar mais de 48 horas
na emergência, um doente nessas condições corre risco elevado de contrair uma
bactéria multirresistente e de infectar a UTI inteira, caso seja transferido”,
afirma Sandro Garcia Hilário, coordenador da Regulação da Secretaria Municipal
de Saúde de São Paulo.
“Muitos hospitais se recusam a aceitar esses pacientes
quando tentamos conseguir uma vaga.” É um espiral de desfavorecimentos da qual,
poucos escapam.
Alguns dias antes da morte
da mãe, Priscila perguntou ao médico se ainda havia o que tentar. Consternado,
ele respondeu: “Se fosse a Lucinha que vi chegar a esse hospital, eu ainda
estaria otimista”. Maria Lucia já era outra.
Na última vez em que viu a mãe,
Priscila observou as mãos e os pés enfaixados. O inchaço fazia a água minar pelos
poros. Em nota, o Hospital Alexandre Zaio afirma que “durante todo o período em
que ficou na sala de emergência, a paciente recebeu os mesmos cuidados
intensivos que receberia numa UTI, inclusive com acompanhamento
multiprofissional”.
A Secretaria Municipal de Saúde não explica por que Maria
Lucia não foi priorizada. Em nota, afirma que “a atual gestão já determinou uma
investigação interna do caso para averiguar os fatos e posterior apuração
preliminar. No momento, a Pasta não dispõe de elementos para justificar a não
transferência da paciente em questão para unidade com mais recursos por tão
longo período de tempo”.
Priscila segue sem entender
por que a mãe foi ignorada pelos gestores e pela lei. “A juíza estava
preocupada em não prejudicar terceiros, mas não pensou que corria o risco de
matar minha mãe.” Procurada por ÉPOCA, a juíza Alexandra Fuchs se recusou a dar
entrevista. Mandou dizer que a Lei Orgânica da Magistratura a impede de se
manifestar a respeito de votos ou sentenças.
Apesar de ter negado a primeira
liminar que beneficiaria Maria Lucia, ela acatou o pedido algumas semanas
depois. No dia 1o de dezembro, Alexandra atendeu ao apelo da defensora Daniela
e determinou que o estado e a prefeitura custeassem a internação da paciente em
hospital particular, caso não conseguissem uma vaga em um hospital público.
No
mesmo dia em que ela assinava a decisão na 6a Vara de Fazenda Pública, no
centro de São Paulo, Maria Lucia era enterrada no Cemitério de Vila Formosa, na
Zona Leste. Priscila voltou sozinha para a casa que, a partir dali, estaria sob
sua responsabilidade. Naquela noite e nas seguintes dormiu na cama da mãe. A
ausência de Maria Lucia é o que restou de mais sólido na família.