domingo, 12 de março de 2017

Pessoas idiotizadas...

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Apropriação cultural  é racismo?

Em 2015, o estopim foi o penteado com dreadlocks, tradicionalmente associado à cultura negra, usado pelas celebridades americanas Miley Cyrus e Kylie Jenner, ambas brancas. Em 2016, foi um baile de Carnaval, em São Paulo, em homenagem à África. 

Em 2017, foi uma estudante paranaense e branca que disfarçou a queda de cabelos, consequência de um tratamento contra leucemia, com um turbante. A discussão sobre apropriação cultural tornou-se tão recorrente quanto inflamada. 

Quando uma manifestação cultural pode ser considerada própria de um grupo? Quando usar elementos tradicionais de outro grupo é um desrespeito? Quando é uma manifestação de apoio? Quando é um gesto desinteressado, sem conotações políticas? Faz diferença se esse grupo luta por inclusão?

Tahuane Cordeiro, a estudante paranaense que se disse hostilizada no metrô de São Paulo, afirma que o gesto de enrolar um pano na cabeça não tinha nenhuma intenção política. “Estava na estação com o turbante, toda linda, me sentindo diva. Comecei a reparar que mulheres negras, lindas aliás, estavam me olhando torto. 

Veio uma falar comigo e dizer que eu não deveria usar turbante porque eu era branca. Tirei o turbante e falei ‘tá vendo essa careca, isso se chama câncer, então eu uso o que eu quero! Adeus’”, disse, pelo Facebook, em uma mensagem curtida 140 mil vezes. 

Superexposta, Tahuane tornou-se alvo da raiva e da falta de argumentos das redes sociais. “Tô ficando assustada com a quantidade de hater”, disse.

A discussão sobre se apropriação cultural representa racismo tornou-se tão recorrente quanto inflamada.

O pano de fundo do debate sobre apropriação cultural é uma discussão sobre racismo. Para a cantora Leci Brandão, a apropriação é desrespeitosa por se apropriar de símbolos da cultura negra, sem levar junto as mensagens.

“O problema não está na difusão do produto cultural tradicional, mas na eliminação da população negra desse processo.” Para o antropólogo Antonio Risério, o debate no Brasil é mera cópia daquele que ocorre nos Estados Unidos – descabido por supor que, aqui, a divisão entre brancos e negros é profunda como a de lá. 

“Nada do que chegou ao Brasil permaneceu ‘puro’”, afirma. “Esta baboseira de ‘apropriação cultural’ é coisa de quem quer implantar apartheids em nossos trópicos, em vez de se lançar às marés das misturas.”


Incomensurável...

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"Minha mãe esperou 37 dias por uma UTI"

A história da paciente que morreu após passar um mês entubada no pronto-socorro revela escolhas trágicas feitas pelos médicos enquanto governo e Justiça trocam ofícios.

Priscila Machado que esperou 37 dias á espera de uma UTI.

Maria Lucia,que morreu á espera de uma vaga na UTI.

Capítulo 1: Um pedido de socorro; 120 negativas

Um corredor comprido, cercado por paredes que há tempos não recebem pintura, leva à entrada da casa alugada onde, até outubro, vivia a costureira aposentada Maria Lucia Machado, de 62 anos, na Vila Matilde, Zona Leste de São Paulo. Entra-se pela porta da cozinha. Era ali que ela mantinha apertados os laços de uma família cheia de necessidades. 

A sala havia sido transformada em quarto para um irmão desempregado. Para outro, que sofre de esquizofrenia, construiu-se um puxadinho nos fundos. Maria Lucia dividia o quarto original com dois sobrinhos acolhidos desde a infância: Leticia, de 23 anos, e Luan, de 13 – ambos portadores de deficiência intelectual.

À filha única, Priscila Machado Sambrana, de 37 anos, foi destinado o andar de baixo de um beliche ao lado da cama da mãe, que a criou sozinha. Esse arranjo frágil, mas funcional, entrou em colapso às 21 horas do dia 30 de novembro, quando Maria Lucia morreu no Hospital Municipal Dr. Alexandre Zaio, na Vila Nhocuné, a 2 quilômetros dali. 

A perda do ponto de equilíbrio de uma família especial não pode ser atribuída a uma fatalidade. O destino trágico fora antecipado pelos médicos que, semana após semana, assistiram à deterioração da saúde da paciente dentro do hospital. Durante 37 dias, eles tentaram conseguir uma vaga na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) de algum outro hospital da maior capital do país. 

O pedido foi negado mais de 120 vezes por diferentes instituições municipais, estaduais e privadas que prestam serviço ao SUS. A maioria registrou num sistema oficial da prefeitura a mesma resposta peremptória: “sem vaga”. Outras detalharam o infortúnio dos doentes: “O hospital está com superlotação, pacientes internados sem disponibilidade de vagas de UTI. Estamos sem respirador na emergência e impossibilitados de receber novos casos”.

Esses registros, obtidos pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, são a confissão da insuficiência de leitos no Sistema Único de Saúde (SUS) e da fragilidade da gestão pública. Não só isso. A lentidão com que o pedido de socorro feito por Priscila circulou pelos escaninhos da Justiça é um sinal de que os procedimentos adotados pelos magistrados são incompatíveis com as urgências médicas. 

Quando a janela de oportunidade para salvar uma vida é medida em poucos dias ou em algumas horas, as instituições falham. O cidadão se vê transformado em um número mal digerido pela engrenagem burocrática. Um a mais. Por trás da sequência CROSS-SS-1228714-16, o registro de Maria Lucia na Central de Regulação de Vagas, havia uma história.

 Paciente monitorado na disputada UTI Central  do Hospital São Paulo,da UNIFESP (Foto: Ricardo Correa/ÉPOCA)
Paciente monitorado na disputada UTI Central  do Hospital São Paulo,da UNIFESP.

Maria Lucia era hipertensa, diabética e fumante. Em setembro, sofreu um infarto e precisou colocar um stent (prótese para manter as artérias desobstruídas) no Instituto do Coração (InCor). Passou 15 dias internada depois de sofrer uma reação alérgica ao iodo, usado num dos exames. 

Foi liberada, com a condição de continuar o acompanhamento médico. Numa sexta-feira de outubro, ela passou mal em casa enquanto lavava a louça do almoço. Não haveria tempo de cruzar a cidade para chegar ao InCor. A família correu ao pronto-socorro mais próximo. Com grave falta de ar, rosto arroxeado e a pressão arterial nas alturas (20 por 12), Maria Lucia foi acomodada na sala de emergência do Alexandre Zaio. 

Os médicos detectaram também uma pneumonia e a necessidade de agir rápido. Em quatro dias, ela sofreu duas paradas respiratórias. Quando deixou de respirar pela segunda vez, os profissionais decidiram entubá-la. Ali mesmo, na sala de emergência, enquanto não surgia uma vaga na UTI. 

O tubo plástico colocado na boca descia pela traqueia para fazer chegar aos pulmões em sofrimento o oxigênio fornecido por um respirador artificial. Sem o auxílio mecânico, Maria Lucia não resistiria.

A defensora pública Daniela de Albuquerque."É triste perceber que não estamos conseguindo garantir o direito á saúde. 

EMPENHO

A defensora pública Daniela de Albuquerque. “É triste perceber que não estamos conseguindo garantir o direito à saúde”.

Manter pacientes entubados por longos períodos no pronto-socorro é uma daquelas práticas absurdas que, de tão repetidas nos hospitais públicos, parecem normais. Não são. Fora da UTI, o doente que precisa dela não conta com os mesmos equipamentos e insumos. 

Nem com a atenção, 24 horas por dia, de uma equipe multidisciplinar especializada em cuidados de pacientes críticos – aqueles que podem perder a vida a qualquer momento, sobretudo se houver um descuido dos médicos. 

Muito menos com o maior espaço entre os leitos e o ambiente asséptico que as Unidades de Terapia Intensiva são obrigadas a oferecer, de acordo com as exigências das autoridades sanitárias. 

“O risco de erro médico é muito mais elevado quando o profissional atende o paciente fora do ambiente adequado”, diz Mauro Aranha, presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp). 

Um levantamento realizado pela entidade, no final do ano passado, com diretores clínicos de 15 hospitais públicos ou filantrópicos localizados na capital paulista, revelou que pacientes graves esperam, em média, até dois dias por um leito de UTI. “Isso é gravíssimo. Não tem perdão”, afirma Aranha. E estamos falando do estado mais rico do Brasil.

Essa média é bastante conservadora, como demonstra a história de Maria Lucia. Enquanto a saúde dela se deteriorava dia após dia na espera de mais de um mês e os médicos se viam de mãos atadas diante do sofrimento da família, o caso era tratado em arrastadas trocas de ofício entre órgãos públicos. Cumpriam o protocolo para chegar ao típico destino final: o do tudo registrado e do nada resolvido.

Capítulo 2: Uma loteria sem vencedores

Maria Lucia não era a única paciente entubada na emergência do Alexandre Zaio. Dividia o espaço com mais quatro pacientes em situação semelhante. Todos usavam equipamentos de monitoração, enquanto aguardavam uma vaga na terapia intensiva. 

Uma loteria sem vencedores. “Em todo o período em que minha mãe ficou naquela sala, cerca de nove pessoas morreram”, diz Priscila, a filha única. “Todas à espera de UTI.” Sem a perspectiva de conseguir um leito na própria instituição, os médicos inscreveram Maria Lucia no sistema da Central de Regulação de Urgências e Emergências (Crue), da prefeitura. 

Esse órgão centraliza as demandas dos moradores da capital, analisa a gravidade dos casos (de acordo com a breve descrição preenchida pelos profissionais solicitantes) e encaminha os doentes ao hospital capaz de atendê-lo. 

A central funciona 24 horas. Em cada turno, há apenas quatro médicos para regular todos os pedidos de UTI recebidos por computador ou telefone. Eles decidem quem será atendido e onde, numa estressante administração da escassez.

“Aqui está longe de ser o mundo ideal. Ninguém deveria ficar esperando, mas não há vagas para todos”, diz Sandro Garcia Hilário, coordenador de regulação da Secretaria Municipal de Saúde. Ele não trabalhava no órgão quando o caso da aposentada ocorreu, no final da gestão Fernando Haddad (PT-SP). 

“Conseguimos um leito de UTI em cerca de 50% dos pedidos que nos chegam. A outra metade dos pacientes não é transferida, mas isso não significa que todos morrem.” Nesse grupo, há pessoas que saem da fila porque melhoram ou porque o hospital consegue uma vaga internamente. Nem todos têm a mesma sorte. 

“É muito frustrante saber da necessidade do paciente e não conseguir um leito hoje, amanhã, nem depois de amanhã”, diz Mônica Tormena de Campos, coordenadora de regulação inter-hospitalar da Crue.

O registro do primeiro pedido dos médicos de Maria Lucia é de 25 de outubro, o mesmo dia em que ela foi entubada. Os dias se passaram e as negativas dos hospitais se acumularam. Pelos funcionários do Alexandre Zaio, Priscila soube que familiares em desespero costumavam procurar a Justiça. 

Era sua única chance. Faltou várias vezes ao trabalho de estoquista numa empresa de alimentação para conseguir juntar a papelada necessária ao pedido de liminar judicial feito pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Começava ali a cruel cronologia do adeus.

3 de novembro

A primeira providência da defensora pública Fernanda Dutra Pinchiaro foi tentar resolver o problema administrativamente. Ela envia um ofício aos gabinetes dos secretários de Saúde: David Uip, do governo estadual, e Alexandre Padilha, do município. 

Pede a transferência urgente da paciente para uma UTI. Segundo o relatório médico anexado, Maria Lucia apresentava trombose da veia porta, insuficiência cardíaca congestiva e fibrilação arterial. A resposta não chegou.
  
17 de novembro

Em desespero, Priscila volta a pedir socorro jurídico. A defensora pública Daniela Skromov de Albuquerque assume o caso. Na mesma data, entra com um pedido de tutela antecipada na esperança de que o poder público fosse obrigado a enviar Maria Lucia para uma UTI o mais rápido possível. 

No laudo anexado ao documento, o médico Fabio da Silva descreve a gravidade do quadro: “Paciente evolui em sala de emergência sob cuidados intensivos e uso de drogas vasoativas e respira com a auxílio de ventilador mecânico, com difícil desmame. Aguarda vaga de UTI que já foi solicitada previamente via Central de Regulação de Vagas (porém, ainda não disponível)”.

Por um triste engano, Daniela informa no pedido que a paciente fora internada na ala de emergência após sofrer um acidente vascular cerebral (AVC) hemorrágico. Essa é uma doença grave e, muitas vezes, incapacitante. A mesma que matou a ex-primeira-dama Marisa Letícia há poucas semanas. 

Maria Lucia não teve um AVC. Se tivesse sofrido uma hemorragia no cérebro e permanecido no pronto-­socorro durante semanas, dificilmente um leito de UTI seria capaz de mudar sua história. O erro, observado durante a apuração desta reportagem, havia passado despercebido da família e da própria Defensoria Pública. 

Não se sabe se o deslize na descrição do caso teve alguma influência sobre a decisão judicial. Antes que o dia terminasse, a magistrada Alexandra Fuchs de Araujo, da 6a Vara de Fazenda Pública, nega a liminar, sob o argumento de que a concessão do leito nessas condições poderia “gerar dano a terceiro por eventual alteração de fila”. Decide apenas intimar as secretarias de Saúde a prestar esclarecimentos em 48 horas com urgência.

21 de novembro

Quatro dias depois da decisão da juíza, a chefe do cartório do Tribunal de Justiça transmite a ordem para que um oficial intimasse a prefeitura e o governo estadual a prestar esclarecimentos em 48 horas. Não se sabe se a intimação chegou ao destino. A comprovação não está nos autos do processo. Maria Lucia continuou onde sempre esteve, mas cada dia pior.

22 de novembro

Depois de passar semanas entubada em ambiente inadequado, Maria Lucia contrai bactérias multirresistentes, micro-organismos que vencem a maioria dos antibióticos. Uma grave ameaça ao ambiente hospitalar e à saúde pública. Era preciso enviá-la a uma UTI com isolamento – um recurso ainda mais escasso. 

A cada 12 horas, o hospital renovava o pedido à Central de Regulação. Sempre sem sucesso. Maria Lucia foi transferida para um isolamento improvisado: um antigo consultório. Ali ficaria até o fim.

30 de novembro

Inconformada, a defensora pública Daniela faz uma nova manifestação à juíza. Ressalta que a doente aguardava um leito havia mais de um mês, contraíra uma infecção hospitalar e, naquela data, encontrava-se à beira da morte. 

Ressalta que o processo continuava sem nenhuma resposta dos réus, apesar do prazo de 48 horas determinado pela juíza, 13 dias antes. Pede a ela que defira o pedido de liminar com a máxima presteza. E, mais uma vez, se frustra.

“Esse caso é a prova de que não estamos conseguindo garantir o direito à saúde administrativamente, nem judicialmente”, diz Daniela. “É muito triste.” Cada vez mais, a decisão sobre quem deve ocupar as raras vagas de terapia intensiva é tomada por juízes, muitas vezes sem considerar os critérios médicos de priorização. Ganha quem grita mais e com mais insistência. 

O fenômeno torna o aproveitamento dos leitos ainda mais ineficaz quando prioriza os pacientes menos graves. Ou quando obriga o Estado a reservar uma vaga ao doente que menos se beneficiaria dela (um paciente em fase terminal de câncer, por exemplo). Não deveria ser assim quando o que está em disputa é algo de valor inestimável: a própria vida.

A judicialização não é fruto de geração espontânea. É reflexo da carência e da má gestão de leitos na rede pública. Uma portaria do Ministério da Saúde preconiza a existência de um a três leitos de UTI por 10 mil habitantes. 

Os hospitais da rede privada tem 4,14. Enquanto isso, a média geral do SUS é de 0,99. Os dados fazem parte de um levantamento do Conselho Federal de Medicina (CFM), realizado a partir da análise de informações registradas no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), do governo federal. 

A pesquisa revela que o país tem cerca de 41 mil leitos de UTI – metade deles para atender apenas os 25% dos brasileiros que contam com planos de saúde. Brasília é uma das capitais mais carentes desse recurso no sistema público. Com 0,96 leitos para cada 10 mil habitantes, a cidade só não está pior que Macapá (0,57) e Boa Vista (0,94). 

Na quarta pior posição aparece o Rio de Janeiro (1,04). São Paulo (1,58) está distante da média mais elevada do país: Porto Alegre (4,04). Na comparação entre as regiões, o Sul e o Sudeste estão em melhor posição. Ainda que nesses estados o número de leitos seja próximo do recomendável (ou até supere essa marca), há problemas de gestão que impedem o acesso de grande parte dos doentes. 

Frequentemente, uma pessoa que já pode receber alta da terapia intensiva continua ali porque não há lugar para ela na enfermaria. Isso acontece até mesmo nos bons hospitais públicos. Enquanto isso, quem chega não consegue entrar.

“Faltam vagas de UTI no SUS e sobram nos hospitais privados”, diz Mirella Cristine de Oliveira, presidente da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib). A entidade está realizando um novo censo das vagas. 

É uma contrachecagem dos dados registrados pelos próprios hospitais no CNES, o sistema oficial do Ministério da Saúde. Como a remuneração dos leitos de UTI é mais alta que a dos leitos comuns, a Amib resolveu confirmar se os leitos existem e se, de fato, funcionam. É um cuidado necessário para evitar fraudes dos gestores dos hospitais no preenchimento dos dados. 

“Talvez seja mais barato contratar leitos excedentes da rede privada em vez de construir hospital, mas para isso é necessário garantir a qualidade dos dados disponíveis”, diz Mirella. “Precisamos de uma política social sustentável, que seja consistente para sobreviver às mudanças de governo. A situação não pode continuar como está.”

Capítulo 3: Brincando de deus

Quando os recursos são escassos, escolhas trágicas são feitas. A angústia provocada por essa rotina foi descrita pela médica Flavia Machado em um artigo publicado recentemente no The New England Journal of Medicine, uma das revistas médicas mais prestigiadas do mundo. 

Chefe da maior UTI do Hospital São Paulo, a instituição-­escola da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ela descreve a rotina dos intensivistas:

São 7 horas da manhã e, mais uma vez, precisamos decidir quem ocupará um leito na unidade de terapia intensiva depois de uma cirurgia eletiva. Uma avó de 55 anos com câncer de intestino? Um idoso com metástase no fígado? 

Uma jovem que sente dor e precisa de cirurgia numa articulação para continuar a trabalhar e sustentar a família? Deveríamos escolher ou recusar os pacientes que têm câncer? Deveríamos fazer escolhas baseadas na idade? Na qualidade de vida prévia? 

Ou no impacto social, se, por exemplo, o doente tem quatro crianças para criar? Devemos oferecer o leito a quem já o negamos antes? Ou devemos simplesmente deixar de brincar de Deus e conceder a vaga a qualquer pessoa que tenha pedido antes?

Flavia Machado ,na UTI Central do Hospital São Paulo.


SELEÇÃO

Flavia Machado, na UTI Central do Hospital São Paulo.  “Devemos parar de brincar de Deus e dar a vaga a quem pediu primeiro?”

No dia da visita de ÉPOCA, a maioria dos doentes era mantida com algum nível de consciência na UTI de 35 preciosos leitos comandada por Flavia. Estavam lá vítimas de graves traumas provocados por acidentes de trânsito ou pela violência, sobreviventes de infarto, recém-operados que precisavam de monitoramento constante. 

Jovens, velhos, homens e mulheres – 90% deles assistidos apenas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Os doentes que ultrapassaram a porta daquele 6o andar venceram uma triste seleção. Passaram por todos os funis que limitam o acesso da população aos melhores recursos.

“Criamos ferramentas de priorização para tentar reduzir um pouco a injustiça que ocorre”, diz Flavia. No final do ano passado, ela participou da comissão do Conselho Federal de Medicina (CFM) que definiu regras de priorização. A Resolução no 2.156 ampara os médicos, eticamente, em suas escolhas difíceis. 

O documento elenca cinco níveis de prioridade que devem ser respeitados. Em primeiro lugar, devem ser beneficiados os “pacientes que necessitam de intervenções de suporte à vida, com alta probabilidade de recuperação e sem nenhuma limitação de suporte terapêutico”. 

Ou seja: os indivíduos recuperáveis, nos quais se pretende investir com todas as alternativas possíveis de tratamento. Em último lugar, os doentes em fase terminal, sem possibilidade de recuperação. Por mais que existam protocolos médicos de escolha, os desempates sempre serão cruéis. “Todo mundo tem câncer, dois ou três já foram recusados uma vez... Nossa angústia é enorme”, diz Flavia.

O ponto crucial nos critérios do CFM é o conceito de terminalidade. Se um paciente de 32 anos tem câncer terminal, não há por que colocá-lo numa UTI apenas porque ele é jovem. O que deve ser levado em consideração é a capacidade da UTI de restaurar a qualidade de vida que ele tinha antes. 

Um fator que contribui para a escassez e mau uso dos leitos é a dificuldade de aceitar a finitude da vida. “No Brasil, temos uma religiosidade forte que leva as famílias e os médicos a insistir em tentativas fúteis de evitar o curso natural da morte”, diz Flavia. 

Grande parte dos leitos fica ocupada por longo tempo por pessoas sem possibilidade de recuperação. Enquanto isso, um paciente que poderia ser salvo não consegue ser atendido.

O ato de postergar a morte por meio de tratamentos inúteis que apenas prolongam o sofrimento (conhecido como distanásia) é frequente até mesmo nos hospitais públicos que mais sofrem com falta de leitos. 

“Como há uma indefinição legal, não podemos deixar de tratar o doente se a família não estiver de acordo com isso”, diz Flavia. Quando os parentes entendem a situação, os médicos propõem a chamada extubação paliativa. 

O doente é retirado do ventilador mecânico com conforto, sem sentir dor, se a família aceita o fato de que ele vai morrer.

Muitos médicos, no entanto, se sentem inseguros em dar esse passo. A resolução do CFM é uma regra ética, criada com o objetivo de apoiar os médicos em suas decisões difíceis, mas não tem poder legal. 

A família sempre pode questionar a conduta dos profissionais. Enquanto os brasileiros resistem em discutir os dilemas do fim da vida, os pacientes que poderiam ser beneficiados por um leito de UTI perdem sua única chance. 

A cada dia de improviso no pronto-socorro, a probabilidade de um paciente entubado conseguir uma transferência para a UTI de outro hospital diminui. 

“Se passar mais de 48 horas na emergência, um doente nessas condições corre risco elevado de contrair uma bactéria multirresistente e de infectar a UTI inteira, caso seja transferido”, afirma Sandro Garcia Hilário, coordenador da Regulação da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. 

“Muitos hospitais se recusam a aceitar esses pacientes quando tentamos conseguir uma vaga.” É um espiral de desfavorecimentos da qual, poucos escapam.

Alguns dias antes da morte da mãe, Priscila perguntou ao médico se ainda havia o que tentar. Consternado, ele respondeu: “Se fosse a Lucinha que vi chegar a esse hospital, eu ainda estaria otimista”. Maria Lucia já era outra. 

Na última vez em que viu a mãe, Priscila observou as mãos e os pés enfaixados. O inchaço fazia a água minar pelos poros. Em nota, o Hospital Alexandre Zaio afirma que “durante todo o período em que ficou na sala de emergência, a paciente recebeu os mesmos cuidados intensivos que receberia numa UTI, inclusive com acompanhamento multiprofissional”. 

A Secretaria Municipal de Saúde não explica por que Maria Lucia não foi priorizada. Em nota, afirma que “a atual gestão já determinou uma investigação interna do caso para averiguar os fatos e posterior apuração preliminar. No momento, a Pasta não dispõe de elementos para justificar a não transferência da paciente em questão para unidade com mais recursos por tão longo período de tempo”.

Priscila segue sem entender por que a mãe foi ignorada pelos gestores e pela lei. “A juíza estava preocupada em não prejudicar terceiros, mas não pensou que corria o risco de matar minha mãe.” Procurada por ÉPOCA, a juíza Alexandra Fuchs se recusou a dar entrevista. Mandou dizer que a Lei Orgânica da Magistratura a impede de se manifestar a respeito de votos ou sentenças. 

Apesar de ter negado a primeira liminar que beneficiaria Maria Lucia, ela acatou o pedido algumas semanas depois. No dia 1o de dezembro, Alexandra atendeu ao apelo da defensora Daniela e determinou que o estado e a prefeitura custeassem a internação da paciente em hospital particular, caso não conseguissem uma vaga em um hospital público. 

No mesmo dia em que ela assinava a decisão na 6a Vara de Fazenda Pública, no centro de São Paulo, Maria Lucia era enterrada no Cemitério de Vila Formosa, na Zona Leste. Priscila voltou sozinha para a casa que, a partir dali, estaria sob sua responsabilidade. Naquela noite e nas seguintes dormiu na cama da mãe. A ausência de Maria Lucia é o que restou de mais sólido na família.

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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Até a próxima...

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Mais uma etapa superada...