Tramas
do Erotismo
Sexo nunca é assunto neutro, por isso na
mitologia de todas as culturas sempre existe um longo capítulo para explicar
a atração sexual e as diferentes maneiras de amar. Conheça as muitas
histórias sobre a eterna busca do prazer.
Deus criou o homem e a mulher. A partir
daí, tudo que esses dois seres querem é ser felizes. De preferência, juntos.
É assim há cerca de 2 milhões de anos e, desde o princípio, muitas histórias
surgiram para explicar esse sentimento que nos faz querer tanto uma
companhia.
O texto africano A Ruptura explica por que
o homem e a mulher se procuram. Nele, o único ser vivente na Terra possuía um
corpo e dois rostos. Um dia, Deus tropeçou nas estrelas, despencou escada
abaixo e caiu em cima da criatura. Ela se partiu em dois - uma metade rolou
em direção ao céu, a outra em direção à Terra. Os dois quiseram voltar e se
acasalar. Um deles sentiu nascer uma carne no alto das coxas, enquanto o
outro cavou o ventre para acolher aquela carne, sua também. O encontro durou
pouco. Desde então, homem e mulher se encontram e se afastam. Sofreram uma
ruptura e vivem apenas para curá-la.
Sagrado, profano, humano Alguns mais
saborosos do que outros, os mitos sobre a sexualidade - os parceiros, seus
sexos e a descoberta do encontro - divertem, educam e até cumprem algumas
funções. "Ajudam a entender as fontes do desejo e a descobrir o que
fazer com ele. As histórias também amenizam os tabus da sexualidade. Pois
sexo não é nem profano nem sagrado, mas sim humano", acredita a
psicoterapeuta junguiana Lúcia Rosenberg, de São Paulo.
Um dos mitos mais conhecidos vem da Bíblia:
é o Gênese. A história de Adão e Eva. E também Lilith. Ops, não se trata de
um triângulo amoroso, mas talvez a correção da criação. Na verdade, a
primeira mulher foi Lilith, que veio do mesmo barro e na mesma época que
Adão. A questão é que ela não aceitava as regras impostas pelo parceiro -
como ficar por baixo na relação sexual. Adão não agüentou a insubordinação e
falou com Deus. Assim, Lilith foi banida e uma mulher ao gosto do masculino
surgiu: Eva. "Pela religião tradicional, Lilith foi feita de um pó
errado, fez muitas barbaridades e mereceu ser castigada. Mas, em minha
opinião, foi a primeira feminista do mundo", diz, brincando, o escritor
e contador de histórias Ilan Brenman, de São Paulo.
Donas do pecado A mulher, aliás, costuma
aparecer como a principal transgressora na mitologia. Talvez porque seja
papel dela criar, transformar. É o caso de Eva, que mordeu a maçã (veja
matéria Mil Faces da Maçã). Ela é culpada por tocar a árvore da sabedoria,
proibida por Deus, e provar de seu fruto. "A árvore guardava o segredo
de que somos finitos e incompletos. Quando esse segredo é revelado,
instala-se a angústia. É isso que acontece quando provamos a plenitude do
sexo. No momento do encontro sexual, nos sentimos plenos e tomamos
consciência de que para manter essa sensação precisamos do outro. Daí vem o
medo da entrega e da futura perda", analisa Lúcia. No mito, a serpente é
a voz interna, que diz "vá, experimente". "A felicidade
resulta do equilíbrio entre ousadia e limite, que é algo redimensionado o
tempo todo. Algumas coisas você pode mais, outras menos...", diz Lúcia.
Atração sexual Outras culturas têm sua
versão para o primeiro homem e a primeira mulher, sem definir superioridades.
Os gregos falavam do ser humano primordial, que não tem nome e é composto por
duas metades, uma masculina e outra feminina.
Essa igualdade também está no conto
africano As Folhas Secas. Deus modelou homem e mulher e colocou cada um em
uma cabana. Entre elas, traçou um caminho de folhas secas para descobrir qual
dos dois filhos seria mais vulnerável à febre amorosa. Um não sabia da
existência do outro e mal abriam os olhos. Até que um dia a mulher tocou um
sapo e o animal cuspiu-lhe veneno nos olhos. Ela os esfregou de forma que
suas pálpebras se abriram e ela pôde ver o caminho de folhas secas que levava
a um lugar agradável. Pressentiu a armadilha divina e, à noite, enquanto Deus
dormia, molhou as folhas e atravessou a passagem. Encontrou o homem e se
encantou por ele. Ele igualmente se apaixonou. Depois de se amarem,
combinaram que no dia seguinte ele iria até a casa da mulher. À noite, depois
de o sol ter secado as folhas, ele saiu e Deus o ouviu. Riu e pensou:
"Até o fim dos tempos, que assim seja. O homem irá à mulher".
A arte e a manha femininas registradas no
conto não implicam vantagem ou desvantagem. "Mostram que a mulher, por
viver de ciclos (menstruação, gravidez), sabe da espera, da melhor hora para
agir. O homem age mais impulsivamente", entende a psicoterapeuta Lúcia
Rosenberg.
Fazer a guerra ou fazer amor "Sem
moral da história, muitas vezes um mito serve apenas para organizar o caos
dos sentidos", diz Ilan Brenman. Talvez por isso a mitologia explore
tanto a guerra dos sexos quanto os finais felizes, como nesta lenda árabe...
Havia dois povos. Um guiado pelo profeta
Moçailama e outro pela profetisa Chedja. Mas a profecia dizia que o
Todo-Poderoso não podia se dividir. Ou inspirava o homem ou a mulher. Sendo
assim, os poderes teriam de se enfrentar. A mulher foi ao encontro do rival.
Ele aspergiu no ar o aroma de almíscar, rosa, jasmim, laranjeira, jacinto e
cravo e mandou chamar Chedja. Com os sentidos atordoados, ela foi beijada e
eles fizeram amor. No dia seguinte, ante toda a multidão, ela pronunciou:
Moçailama introduziu o céu em meu ventre. Sigam-no como eu mesma o seguirei.
"Mais do que quem ganha ou perde, aqui prevalece a lei da 'união faz a
força'. Tem a ver com a comunhão", interpreta Lúcia Rosenberg. "O
psicanalista suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) dizia que não somos metade de
nada. Somos masculino e feminino, e o casamento desses opostos é que nos
torna um só em espírito", explica. "Mas fisicamente",
acrescenta, "somos incompletos." Para um bom entendedor...
Significados do corpo Muitos mitos nascem
para dissolver tabus relacionados aos órgãos genitais, com freqüência tidos
como feios, sujos, vis. Precisamos dessas histórias, que lembram que essas
partes dão prazer e vida.
No hinduísmo, a vagina (chamada yoni) e o
pênis (lingam) são sagrados. Tanto é que o casal espalha pétalas de rosa um
sobre o órgão sexual do outro, considerados portas do êxtase sexual. O lingam
representa a força presente na origem do Universo e está associado ao deus
Shiva. A yoni é símbolo da energia criadora feminina e significa grão. O
Universo está representado pela yoni, que rodeia o lingam, numa analogia de
que para haver vida é preciso as duas energias em equilíbrio.
Menos sagrada, uma delicada história sobre
o surgimento do clitóris vem do Tibete. Conta-se que os homens tinham suas
próprias lanças, mas havia outras que viviam livres em campos de chá. Certo
dia, uma moça colheu um dos bastões e o acariciou. Ele cresceu e foi brincar
debaixo da saia dela, causando prazer de fazer o ventre rir. A moça escondeu
a lança, mas sua avó a encontrou e jogou-a na lareira. A moça só teve tempo
de salvar um pedaço do bastão e colocá-lo entre as pernas. O pedacinho se
colou a ela e proporcionou doces prazeres. Desde então, todas as moças
quiseram ornar suas intimidades.
Segundo a antropóloga Betty Mindlin, de São
Paulo, é comum na mitologia, especialmente na indígena, partes do corpo serem
personagens autônomos, dialogando com seu dono e chamando a atenção para a
imensa importância que suas funções têm para a vida.
Sexualidade reverenciada
Para os indianos, um dos quatro objetivos
da vida é o kama, ou seja, prazer. O Livro do Prazer, ou Kama Sutra, é
inteiramente dedicado à arte de estender esse bem-estar pleno o máximo de
tempo possível. "Porque o orgasmo é uma forma de alcançar o maior nível
de consciência e uma maneira de libertação", diz o terapeuta Caio
Kugelmas, de São Paulo. Com igual reverência, há a interpretação zen-budista
para o sexo. "O sentido do zen é permitir que a natureza se expresse por
todos os nossos atos, e o sexo é um deles", afirma Philip Toshio Sudo em
seu livro Sexo Zen (ed. Sextante). Uma ode ao sexo despreocupado com número
de orgasmos ou performances, o livro faz uma ponte entre o corpo, o desejo e
o espírito. O caminho da intimidade tem a ver com relaxar a tensão, deixar a
técnica de lado, não ter pressa, rir, brincar, beijar, usar a boca para
saborear, adormecer e despertar juntos.
Texto: Kátia Stringueto
junho 2004
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