quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Viva a sabedoria...


Textos Filosóficos 61
Tramas do Erotismo
Sexo nunca é assunto neutro, por isso na mitologia de todas as culturas sempre existe um longo capítulo para explicar a atração sexual e as diferentes maneiras de amar. Conheça as muitas histórias sobre a eterna busca do prazer.
Deus criou o homem e a mulher. A partir daí, tudo que esses dois seres querem é ser felizes. De preferência, juntos. É assim há cerca de 2 milhões de anos e, desde o princípio, muitas histórias surgiram para explicar esse sentimento que nos faz querer tanto uma companhia.
O texto africano A Ruptura explica por que o homem e a mulher se procuram. Nele, o único ser vivente na Terra possuía um corpo e dois rostos. Um dia, Deus tropeçou nas estrelas, despencou escada abaixo e caiu em cima da criatura. Ela se partiu em dois - uma metade rolou em direção ao céu, a outra em direção à Terra. Os dois quiseram voltar e se acasalar. Um deles sentiu nascer uma carne no alto das coxas, enquanto o outro cavou o ventre para acolher aquela carne, sua também. O encontro durou pouco. Desde então, homem e mulher se encontram e se afastam. Sofreram uma ruptura e vivem apenas para curá-la.
Sagrado, profano, humano Alguns mais saborosos do que outros, os mitos sobre a sexualidade - os parceiros, seus sexos e a descoberta do encontro - divertem, educam e até cumprem algumas funções. "Ajudam a entender as fontes do desejo e a descobrir o que fazer com ele. As histórias também amenizam os tabus da sexualidade. Pois sexo não é nem profano nem sagrado, mas sim humano", acredita a psicoterapeuta junguiana Lúcia Rosenberg, de São Paulo.
Um dos mitos mais conhecidos vem da Bíblia: é o Gênese. A história de Adão e Eva. E também Lilith. Ops, não se trata de um triângulo amoroso, mas talvez a correção da criação. Na verdade, a primeira mulher foi Lilith, que veio do mesmo barro e na mesma época que Adão. A questão é que ela não aceitava as regras impostas pelo parceiro - como ficar por baixo na relação sexual. Adão não agüentou a insubordinação e falou com Deus. Assim, Lilith foi banida e uma mulher ao gosto do masculino surgiu: Eva. "Pela religião tradicional, Lilith foi feita de um pó errado, fez muitas barbaridades e mereceu ser castigada. Mas, em minha opinião, foi a primeira feminista do mundo", diz, brincando, o escritor e contador de histórias Ilan Brenman, de São Paulo.
Donas do pecado A mulher, aliás, costuma aparecer como a principal transgressora na mitologia. Talvez porque seja papel dela criar, transformar. É o caso de Eva, que mordeu a maçã (veja matéria Mil Faces da Maçã). Ela é culpada por tocar a árvore da sabedoria, proibida por Deus, e provar de seu fruto. "A árvore guardava o segredo de que somos finitos e incompletos. Quando esse segredo é revelado, instala-se a angústia. É isso que acontece quando provamos a plenitude do sexo. No momento do encontro sexual, nos sentimos plenos e tomamos consciência de que para manter essa sensação precisamos do outro. Daí vem o medo da entrega e da futura perda", analisa Lúcia. No mito, a serpente é a voz interna, que diz "vá, experimente". "A felicidade resulta do equilíbrio entre ousadia e limite, que é algo redimensionado o tempo todo. Algumas coisas você pode mais, outras menos...", diz Lúcia.
Atração sexual Outras culturas têm sua versão para o primeiro homem e a primeira mulher, sem definir superioridades. Os gregos falavam do ser humano primordial, que não tem nome e é composto por duas metades, uma masculina e outra feminina.
Essa igualdade também está no conto africano As Folhas Secas. Deus modelou homem e mulher e colocou cada um em uma cabana. Entre elas, traçou um caminho de folhas secas para descobrir qual dos dois filhos seria mais vulnerável à febre amorosa. Um não sabia da existência do outro e mal abriam os olhos. Até que um dia a mulher tocou um sapo e o animal cuspiu-lhe veneno nos olhos. Ela os esfregou de forma que suas pálpebras se abriram e ela pôde ver o caminho de folhas secas que levava a um lugar agradável. Pressentiu a armadilha divina e, à noite, enquanto Deus dormia, molhou as folhas e atravessou a passagem. Encontrou o homem e se encantou por ele. Ele igualmente se apaixonou. Depois de se amarem, combinaram que no dia seguinte ele iria até a casa da mulher. À noite, depois de o sol ter secado as folhas, ele saiu e Deus o ouviu. Riu e pensou: "Até o fim dos tempos, que assim seja. O homem irá à mulher".
A arte e a manha femininas registradas no conto não implicam vantagem ou desvantagem. "Mostram que a mulher, por viver de ciclos (menstruação, gravidez), sabe da espera, da melhor hora para agir. O homem age mais impulsivamente", entende a psicoterapeuta Lúcia Rosenberg.
Fazer a guerra ou fazer amor "Sem moral da história, muitas vezes um mito serve apenas para organizar o caos dos sentidos", diz Ilan Brenman. Talvez por isso a mitologia explore tanto a guerra dos sexos quanto os finais felizes, como nesta lenda árabe...
Havia dois povos. Um guiado pelo profeta Moçailama e outro pela profetisa Chedja. Mas a profecia dizia que o Todo-Poderoso não podia se dividir. Ou inspirava o homem ou a mulher. Sendo assim, os poderes teriam de se enfrentar. A mulher foi ao encontro do rival. Ele aspergiu no ar o aroma de almíscar, rosa, jasmim, laranjeira, jacinto e cravo e mandou chamar Chedja. Com os sentidos atordoados, ela foi beijada e eles fizeram amor. No dia seguinte, ante toda a multidão, ela pronunciou: Moçailama introduziu o céu em meu ventre. Sigam-no como eu mesma o seguirei. "Mais do que quem ganha ou perde, aqui prevalece a lei da 'união faz a força'. Tem a ver com a comunhão", interpreta Lúcia Rosenberg. "O psicanalista suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) dizia que não somos metade de nada. Somos masculino e feminino, e o casamento desses opostos é que nos torna um só em espírito", explica. "Mas fisicamente", acrescenta, "somos incompletos." Para um bom entendedor...
Significados do corpo Muitos mitos nascem para dissolver tabus relacionados aos órgãos genitais, com freqüência tidos como feios, sujos, vis. Precisamos dessas histórias, que lembram que essas partes dão prazer e vida.
No hinduísmo, a vagina (chamada yoni) e o pênis (lingam) são sagrados. Tanto é que o casal espalha pétalas de rosa um sobre o órgão sexual do outro, considerados portas do êxtase sexual. O lingam representa a força presente na origem do Universo e está associado ao deus Shiva. A yoni é símbolo da energia criadora feminina e significa grão. O Universo está representado pela yoni, que rodeia o lingam, numa analogia de que para haver vida é preciso as duas energias em equilíbrio.
Menos sagrada, uma delicada história sobre o surgimento do clitóris vem do Tibete. Conta-se que os homens tinham suas próprias lanças, mas havia outras que viviam livres em campos de chá. Certo dia, uma moça colheu um dos bastões e o acariciou. Ele cresceu e foi brincar debaixo da saia dela, causando prazer de fazer o ventre rir. A moça escondeu a lança, mas sua avó a encontrou e jogou-a na lareira. A moça só teve tempo de salvar um pedaço do bastão e colocá-lo entre as pernas. O pedacinho se colou a ela e proporcionou doces prazeres. Desde então, todas as moças quiseram ornar suas intimidades.
Segundo a antropóloga Betty Mindlin, de São Paulo, é comum na mitologia, especialmente na indígena, partes do corpo serem personagens autônomos, dialogando com seu dono e chamando a atenção para a imensa importância que suas funções têm para a vida.
Sexualidade reverenciada
Para os indianos, um dos quatro objetivos da vida é o kama, ou seja, prazer. O Livro do Prazer, ou Kama Sutra, é inteiramente dedicado à arte de estender esse bem-estar pleno o máximo de tempo possível. "Porque o orgasmo é uma forma de alcançar o maior nível de consciência e uma maneira de libertação", diz o terapeuta Caio Kugelmas, de São Paulo. Com igual reverência, há a interpretação zen-budista para o sexo. "O sentido do zen é permitir que a natureza se expresse por todos os nossos atos, e o sexo é um deles", afirma Philip Toshio Sudo em seu livro Sexo Zen (ed. Sextante). Uma ode ao sexo despreocupado com número de orgasmos ou performances, o livro faz uma ponte entre o corpo, o desejo e o espírito. O caminho da intimidade tem a ver com relaxar a tensão, deixar a técnica de lado, não ter pressa, rir, brincar, beijar, usar a boca para saborear, adormecer e despertar juntos.
Texto: Kátia Stringueto
junho 2004

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