O ESTUDO DA FILOSOFIA
«A Filosofia é (...) a atividade mais natural do homem e o
inquérito filosófico o mais caracteristicamente humano».
Rafael Gambra
Ao longo do estudo da Filosofia, aperceber-se-á que esta
disciplina deverá ser vivida, isto é, deverá ser estudada, e não memorizada ou
«cabulada». A vivência da Filosofia faz-se em contato com os textos dos
filósofos – do professor da disciplina, os textos que integram os manuais e as
obras recomendadas.
Pouco vale memorizar meia dúzia de conceitos para
impressionar o seu interlocutor – professor, amigo, colega ou familiar – para
mostrar que já sabe!
O saber constrói-se passo-a-passo, ouvindo, lendo, refletindo,
experienciando, debatendo, explicando, pondo à prova. Porquanto, para
sedimentar e aprofundar os seus conhecimentos, nesta disciplina, leia os textos
e as obras recomendadas pelo seu professor, indicadas nos manuais ou em outras
obras.
Com efeito, Todo o Homem enquanto homem filosofa.
Mas a coerência conceptual do que esta afirmação implica não
se alcança de modo algum num rápido relance. O pensamento filosófico
sistemático requer estudo. (Karl Jaspers, Iniciação filosófica, Lisboa,
Guimarães & C.ª Editores, 1976).
Como estudar Filosofia?
Como deverá, então, iniciar-se o estudo da Filosofia? Deverá
o aluno estudar as ideias e concepções filosóficas dos grandes filósofos e
considerá-las como suas? Deverá, antes, aprender (memorizar) conceitos e
mostrar que os sabe quando solicitado? Ou, pelo contrário, deverá o iniciado no
estudo desta disciplina tentar compreender e apreender os grandes temas que
preocuparam e preocupam os filósofos, refletindo sobre eles, a fim de lhe
apreender o sentido?
Ao aprendiz de filósofo [ao jovem aprendiz, pretendo eu
dizer, e na minha qualidade de aprendiz mais velho rogo que se não apresse a
adoptar soluções, que não leia obras de uma só escola ou tendência, que
procure conhecer as argumentações de todas, e que queira tomar como primário
escopo a singela façanha de compreender os problemas: de compreendê-los bem, de
compreendê-los a fundo, habituando-se a ver as dificuldades reais que se
deparam nas coisas que se afiguram fáceis ao simplismo e à superficialidade do
que se chama senso-comum [a filosofia é, em não pequena parte, a luta do
bom-senso contra o «senso-comum.
(...) Deverá, pois a iniciação filosófica assumir um carácter
essencialmente crítico, e consistir num debate dos problemas básicos que não
seja dominado pelo intuito dogmático de cerrar as portas às discussões
ulteriores; e um bom professor do lidar filosófico é como um indivíduo que nos
leciona ginástica procedendo ele próprio como um bom ginasta, e obrigando-nos a
nós a fazer ginástica; é quem nos ministra um trabalho crítico, um modelo da
faina de elucidação dos problemas (...). Repito: seja a filosofia para o
aprendiz de filósofo, não uma pilha de conclusões adoptadas, e sim uma atividade
de elucidação dos problemas. É esta atividade o que realmente importa, e não o
aceitar e propagandear conclusões. (…) Pode ser muito útil para a vida prática
o simples conhecimento do enunciado de uns tantos teoremas de matemática:
porém, não há nisso sombra de valor cultural: só possui de facto valor cultural
o perfeito entendimento dos raciocínios que nos dão as provas dos enunciados.
Por isso mesmo, ao lermos um filósofo de genuíno mérito de
dois erros opostos nos cumprirá guardar-nos: o primeiro, o de nos mantermos aí
eternamente passivos e de tudo aceitarmos como se fossem dogmas, de que depois
tentaremos convencer o próximo; o segundo, o de criticarmos demasiado cedo,
antes de chegarmos à compreensão do texto. Para evitar o escolho do segundo
erro, a atitude inicial do aprendiz de filósofo deverá ser receptiva e de todo
humilde. Se achar uma ideia no texto de um Mestre que lhe pareça de fácil refutação,
– conclua (...) que o pensar do autor deverá ser mais fino, mais meandros o,
mais facetado, mais verrumante, do que ao primeiro relance se lhe afigurou: e
que se lhe impõe, portanto uma atenção maior [nada há no mundo de tamanha rúpia
como o tom com que julga refutar um Mestre um pedaço de asno que o não entende;
e o melhor processo, nessa primeira fase, é talvez o de refazermos por
iniciativa nossa, com exemplos familiares da nossa própria experiência, a
doutrina exposta pelo autor que estudamos, até que a tenhamos como coisa nossa,
porque feita de matéria verdadeiramente nossa, e reconstruída pelo nosso
espírito. Quem sabe reproduzir uma teoria genérica, em elocução abstrata, mas
não sabe reconstruí-la com a familiar experiência, não percebe realmente o que
está dizendo. (António Sérgio, in Problemas da Filosofia de Bertrand
Russell, Coimbra, Arménio Amado-Editor, 1974, pp. 7-10).
Em linhas gerais, como poderemos resumir a lição de António
Sérgio? Compare as suas conclusões, se as tirou com os quatro tópicos
seguintes, e discuta-os:
Tema dominante: Conselhos ao aprendiz de filósofo. Igual
à aprendizagem da Filosofia, dizendo que:
A Filosofia é uma atividade crítica:
A Filosofia centra-se na discussão e elucidação de problemas
[não é um conjunto de respostas dadas].
Definição e valor da Filosofia [2.º parágrafo]: Começa
por introduzir uma definição de Filosofia e o valor que ela assume para a
cultura do espírito, explicitando deste modo o sentido e a importância dos
conselhos dados no 1.º parágrafo.
Atitude crítica e atitude natural
A definição de Filosofia, no final do 1.º parágrafo [dada
entre parênteses], estabelece uma diferença entre atitude crítica [Filosofia] e
atitude natural [senso comum].
O significado de dois erros que é preciso evitar [3.º
parágrafo], a saber, o dogmatismo [aceitar tudo como dogmas] e o cepticismo
[rejeitar tudo antes de tentar a sua compreensão].
Conclusão: O ensino da Filosofia não deverá
ser a «pura transmissão de respostas precisas» e a aprendizagem não
deverá ser a pura assimilação daquelas respostas.
Para uma boa aprendizagem da Filosofia, os conselhos dos
filósofos António Sérgio e Karl Jaspers deverão ser considerados. Se seguir
estas orientações, verificará que, ao contrário do que é vulgarmente dito,
a Filosofia não é uma disciplina difícil de estudar.
Todas as disciplinas têm as suas dificuldades próprias, e
nenhuma se aprende se não for estudada. O que dizemos é que a Filosofia não se
memoriza como se faz com um número de telefone, uma fórmula química, um poema
de Camões ou uma receita de culinária. A Filosofia estuda-se refletindo sobre
as ideias, as concepções, os princípios propostos pelos filósofos, pelos
professores, pelas circunstâncias da vida, compreendendo e elucidando o seu
sentido e amplitude.
Por isso, “Deve destruir-se o preconceito, muito difundido,
de que a filosofia é algo de muito difícil pelo facto de ser a atividade
intelectual própria de uma determinada categoria de especialistas ou de
filósofos profissionais e sistemáticos. Por conseguinte, deve começar-se por
demonstrar que todos os homens são «filósofos», definindo-se os limites e as
características desta «filosofia espontânea», própria de «toda a gente», ou
seja, da filosofia contida: a) na própria linguagem, que é um conjunto de
noções e de conceitos determinados e não só de palavras gramaticalmente vazias
de conteúdo; b) no senso comum e no bom senso; c) na religião popular e,
portanto, em todo o sistema de crenças, superstições, opiniões, formas de ver e
de atuar que se incluam no que em geral se chama «folclore.»” (A. Gramsci, Introdução
à Filosofia da Praxis, Lisboa, Edições Antídoto, 1978, p. 8).
Quem são os filósofos?
Todos somos filósofos, diz Gramsci. No entanto, temos que
distinguir o «filósofo» que todos somos que ocasionalmente filosofa
espontaneamente, do filósofo que sabe do ofício, o filósofo intencional, que
concebe uma visão do mundo e da vida, que incessantemente está no encalce da
verdade e na busca de fundamentos para as suas ideias, princípios e concepções.
O filósofo também se distingue do sábio. Este é o que melhor responde
aquele o que mais pergunta [ver texto de Romeu de Melo, a seguir]. Enfim, o
filósofo é aquele profissional que luta contra os preconceitos, o que está
estabelecido, os dogmatismos e cepticismos, o laxismo e o facilitismo, e
procura elucidar, por meio da reflexão, não só aqueles estados de espírito,
como o conhecimento e o ser.
«Talvez possa dizer-se, esquematicamente, que o filósofo é
aquele que mais pergunta, enquanto o sábio é o que mais e melhor sabe
responder. Trata-se de dois perfis, não raramente coincidentes, mas que
demarcam duas posturas ou posições que não devem confundir-se. Nos seus
respectivos limites, o primeiro levar-nos-á ao ponto Ómega e aos confins do
universo, enquanto o segundo nos conduzirá à supermecanização e automatização
da vida e da sociedade.» (Romeu de Melo, In Diário de Notícias, de
26/12/87).
Pelo que está dito, e como observaremos adiante, a Filosofia
não é uma amálgama de teses sem relação, um conjunto de ideias desarticuladas.
A Filosofia é um estado de alma, um produto da inteligência humana. Se a
Filosofia é um estado da alma humana, o filósofo é aquele que se bate contra os
preconceitos, pela autonomia da razão; é aquele que, pela reflexão crítica, esclarece
o seu pensamento e toma posição perante o mundo e a vida, procurando
incessantemente o caminho da verdade.
António Pinela, Apontamentos de Filosofia dos 10.º e
11.º Anos (1990)