quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Viva a sabedoria...


O ESTUDO DA FILOSOFIA
«A Filosofia é (...) a atividade mais natural do homem e o inquérito filosófico o mais caracteristicamente humano».
Rafael Gambra
Ao longo do estudo da Filosofia, aperceber-se-á que esta disciplina deverá ser vivida, isto é, deverá ser estudada, e não memorizada ou «cabulada». A vivência da Filosofia faz-se em contato com os textos dos filósofos – do professor da disciplina, os textos que integram os manuais e as obras recomendadas.

Pouco vale memorizar meia dúzia de conceitos para impressionar o seu interlocutor – professor, amigo, colega ou familiar – para mostrar que já sabe!

O saber constrói-se passo-a-passo, ouvindo, lendo, refletindo, experienciando, debatendo, explicando, pondo à prova. Porquanto, para sedimentar e aprofundar os seus conhecimentos, nesta disciplina, leia os textos e as obras recomendadas pelo seu professor, indicadas nos manuais ou em outras obras.

Com efeito, Todo o Homem enquanto homem filosofa.
Mas a coerência conceptual do que esta afirmação implica não se alcança de modo algum num rápido relance. O pensamento filosófico sistemático requer estudo. (Karl Jaspers, Iniciação filosófica, Lisboa, Guimarães & C.ª Editores, 1976).

Como estudar Filosofia?
Como deverá, então, iniciar-se o estudo da Filosofia? Deverá o aluno estudar as ideias e concepções filosóficas dos grandes fi­lósofos e considerá-las como suas? Deverá, antes, aprender (memorizar) concei­tos e mostrar que os sabe quando solicitado? Ou, pelo contrário, deverá o iniciado no estudo desta disciplina tentar compreender e apreender os grandes temas que preocuparam e preocupam os filósofos, refletindo sobre eles, a fim de lhe apreender o sentido?

Ao aprendiz de filósofo [ao jovem aprendiz, pretendo eu dizer, e na mi­nha qualidade de aprendiz mais velho rogo que se não apresse a adoptar solu­ções, que não leia obras de uma só escola ou tendência, que procure conhecer as argumentações de todas, e que queira tomar como primário escopo a singela façanha de compreender os problemas: de compreendê-los bem, de compreendê-los a fundo, habituando-se a ver as dificuldades reais que se deparam nas coisas que se afiguram fáceis ao simplismo e à superficialidade do que se chama senso-comum [a filosofia é, em não pequena parte, a luta do bom-senso contra o «senso-comum.

(...) Deverá, pois a iniciação filosófica assumir um carácter essencialmente crítico, e consistir num debate dos problemas básicos que não seja dominado pelo intuito dogmático de cerrar as portas às discussões ulteriores; e um bom professor do lidar filosófico é como um indivíduo que nos leciona ginástica procedendo ele próprio como um bom ginasta, e obrigando-nos a nós a fazer ginástica; é quem nos ministra um trabalho crítico, um modelo da faina de elucidação dos problemas (...). Repito: seja a filosofia para o aprendiz de filósofo, não uma pilha de conclusões adop­tadas, e sim uma atividade de elucidação dos problemas. É esta atividade o que realmente importa, e não o aceitar e propagandear conclusões. (…) Pode ser muito útil para a vida prática o simples co­nhecimento do enunciado de uns tantos teoremas de matemática: porém, não há nisso sombra de valor cultural: só possui de facto valor cultural o perfeito en­tendimento dos raciocínios que nos dão as provas dos enunciados.

Por isso mesmo, ao lermos um filósofo de genuíno mérito de dois erros opostos nos cumprirá guardar-nos: o primeiro, o de nos mantermos aí eterna­mente passivos e de tudo aceitarmos como se fossem dogmas, de que depois tentaremos convencer o próximo; o segundo, o de criticarmos demasiado cedo, antes de chegarmos à compreensão do texto. Para evitar o escolho do segundo erro, a atitude inicial do aprendiz de filósofo deverá ser receptiva e de todo humilde. Se achar uma ideia no texto de um Mestre que lhe pareça de fácil refu­tação, – conclua (...) que o pensar do autor deverá ser mais fino, mais meandros o, mais facetado, mais verrumante, do que ao primeiro relance se lhe afigu­rou: e que se lhe impõe, portanto uma atenção maior [nada há no mundo de ta­manha rúpia como o tom com que julga refutar um Mestre um pedaço de asno que o não entende; e o melhor processo, nessa primeira fase, é talvez o de refa­zermos por iniciativa nossa, com exemplos familiares da nossa própria expe­riência, a doutrina exposta pelo autor que estudamos, até que a tenhamos como coisa nossa, porque feita de matéria verdadeiramente nossa, e reconstruída pelo nosso espírito. Quem sabe reproduzir uma teoria genérica, em elocução abs­trata, mas não sabe reconstruí-la com a familiar experiência, não percebe real­mente o que está dizendo. (António Sérgio, in Problemas da Filosofia de Bertrand Russell, Coimbra, Arménio Amado-Editor, 1974, pp. 7-10).
Em linhas gerais, como poderemos resumir a lição de António Sérgio? Compare as suas conclusões, se as tirou com os quatro tópicos seguintes, e discuta-os:
Tema dominante: Conselhos ao aprendiz de filósofo. Igual à aprendizagem da Filosofia, dizendo que:
A Filosofia é uma atividade crítica:
A Filosofia centra-se na discussão e elucidação de problemas [não é um conjunto de respostas dadas].
Definição e valor da Filosofia [2.º parágrafo]: Começa por introduzir uma definição de Filosofia e o valor que ela assume para a cultura do espírito, explicitando deste modo o sentido e a importância dos conselhos dados no 1.º parágrafo.
Atitude crítica e atitude natural
A definição de Filosofia, no final do 1.º parágrafo [dada entre parênteses], estabelece uma diferença entre atitude crítica [Filosofia] e atitude natural [senso comum].
O significado de dois erros que é preciso evitar [3.º parágrafo], a saber, o dogmatismo [aceitar tudo como dogmas] e o cepticismo [rejeitar tudo antes de tentar a sua compreensão]. 

Conclusão: O ensino da Filosofia não deverá ser a «pura transmissão de respostas precisas» e a aprendizagem não deverá ser a pura assimilação daquelas respostas.

Para uma boa aprendizagem da Filosofia, os conselhos dos filósofos António Sérgio e Karl Jaspers deverão ser considerados. Se seguir estas orientações, verificará que, ao contrário do que é vulgarmente dito, a Filosofia não é uma disciplina difícil de estudar.

Todas as disciplinas têm as suas dificuldades próprias, e nenhuma se aprende se não for estudada. O que dizemos é que a Filosofia não se memoriza como se faz com um número de telefone, uma fórmula química, um poema de Camões ou uma receita de culinária. A Filosofia estuda-se refletindo sobre as ideias, as concepções, os princípios propostos pelos filósofos, pelos professores, pelas circunstâncias da vida, compreendendo e elucidando o seu sentido e amplitude.

Por isso, “Deve destruir-se o preconceito, muito difundido, de que a filosofia é algo de muito difícil pelo facto de ser a atividade intelectual própria de uma deter­minada categoria de especialistas ou de filósofos profissionais e sistemáticos. Por conseguinte, deve começar-se por demonstrar que todos os homens são «filósofos», definindo-se os limites e as características desta «filosofia espontâ­nea», própria de «toda a gente», ou seja, da filosofia contida: a) na própria lin­guagem, que é um conjunto de noções e de conceitos determinados e não só de palavras gramaticalmente vazias de conteúdo; b) no senso comum e no bom senso; c) na religião popular e, portanto, em todo o sistema de crenças, superstições, opiniões, formas de ver e de atuar que se incluam no que em geral se chama «folclore.»” (A. Gramsci, Introdução à Filosofia da Praxis, Lisboa, Edições Antídoto, 1978, p. 8).

Quem são os filósofos?

Todos somos filósofos, diz Gramsci. No entanto, temos que distinguir o «filósofo» que todos somos que ocasionalmente filosofa espontaneamente, do filósofo que sabe do ofício, o filósofo intencional, que concebe uma visão do mundo e da vida, que incessantemente está no encalce da verdade e na busca de fundamentos para as suas ideias, princípios e concepções.

O filósofo também se distingue do sábio. Este é o que melhor responde aquele o que mais pergunta [ver texto de Romeu de Melo, a seguir]. Enfim, o filósofo é aquele profissional que luta contra os preconceitos, o que está estabelecido, os dogmatismos e cepticismos, o laxismo e o facilitismo, e procura elucidar, por meio da reflexão, não só aqueles estados de espírito, como o conhecimento e o ser.

«Talvez possa dizer-se, esquematicamente, que o filósofo é aquele que mais pergunta, enquanto o sábio é o que mais e melhor sabe responder. Trata-se de dois perfis, não raramente coincidentes, mas que demarcam duas posturas ou posições que não devem confundir-se. Nos seus respectivos limites, o pri­meiro levar-nos-á ao ponto Ómega e aos confins do universo, enquanto o segun­do nos conduzirá à supermecanização e automatização da vida e da sociedade.» (Romeu de Melo, In Diário de Notícias, de 26/12/87).

Pelo que está dito, e como observaremos adiante, a Filosofia não é uma amálgama de teses sem relação, um conjunto de ideias desarticuladas. A Filosofia é um estado de alma, um produto da inteligência humana. Se a Filosofia é um estado da alma humana, o filósofo é aquele que se bate contra os preconceitos, pela autonomia da razão; é aquele que, pela reflexão crítica, esclarece o seu pensamento e toma posição perante o mundo e a vida, procurando incessantemente o caminho da verdade.

António Pinela, Apontamentos de Filosofia dos 10.º e 11.º Anos       (1990)

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