Uma viagem com crianças ou falta muito?
Elas adoram repetir essa pergunta, fazem besteira, reclamam, celebram, mas é bom demais
Meias...protetor solar...bóia de braço...antialérgico! Sabia que eu tinha esquecido alguma coisa, o antialérgico, digo, depois da retrospectiva mental torturante que insisto em fazer depois de empacotar tudo às pressas.
Pra quê, quer saber meu marido, para uma família de alérgicos ué, emendo, mas deixa pra lá. Ninguém vai precisar. Cruzamos o túnel e a filha caçula pergunta se falta muito. Faz dez minutos saímos de casa. Cacá, não começa, diz o pai. Carol, ainda estamos no Rio, diz a filha mais velha, cheia de experiência do alto de seus oito anos. Bem, é o dobro da irmã, realmente faz alguma diferença.
Estamos combinados que não vamos nos irritar quando elas começarem a brigar, certo?, sussurro para meu marido. Elas andam muito implicantes. Implicam uma com a outra o dia todo. Princípio dos Zangados Anônimos comigo, me responde ele, bem-humorado, citando a recém-criada irmandade da qual só ele faz parte. O requisito desse grupo de apoio de um homem só é a vontade de parar de se irritar com bobagem.
Para ficar mais elaborado, propomos apenas quatro passos básicos.
1) Admitimos que somos impacientes com a teimosia infantil
2) Acreditamos que dentro de nós há força suficiente para nos devolver toda a paciência necessária
3) Admitimos nossas falhas
4) Depois de um destemido inventário moral de nós mesmos, concluímos que, em nome do amor, tudo pode ser dito sempre da melhor maneira, que não no modo zangado.
“Já estamos na estrada?“
“Não“, respondo, com o Sambódromo do nosso lado esquerdo da janela.
Gente, o que tá acontecendo aí atrás?, pergunto, me virando pela direita porque acordei com um torcicolo daqueles, ombros tensos, músculos doendo. Ela pegou meu brinquedo! Para de pegar o brinquedo dela. Mas é meu! Gente, olha a bobeira.
A discussão inútil segue, vira gritaria. Uma puxa o cabelo da outra. Bronca. Silêncio.
Olha as nuvens, olha, vocês estão perdendo, tento desviar o foco.
“Dois golfinhos!“ - uma diz que viu.
“Um hipopótamos de cabeça pra baixo!“
“Aquela parece uma boca gigante!“
“Um coelho falando!“
“Nuvem com som nunca vi!“
O jogo de criatividade e imaginação segue até o estresse seguinte.
“Para de olhar pra mi-nha-nu-vem!!!“
“A nuvem não pode ser sua!“
A briga quase recomeça. Entro na brincadeira com uma tática diversionista de novo.
“Vejam aquela! Igualzinho a um avião!!!“
“Mãe, aquilo é um avião!“
“Ah, bem que eu achei perfeita demais“
“Mamãe...“
“E agora, falta muito?“
Já foi pior. Teve viagem em que elas não só perguntaram o tempo todo se faltava muito, como brigaram a maior parte do tempo.
“Estrada!“, o pai anuncia.
Ouço vivas do banco de trás.
“Bota a música de viagem!“, pede Lelê.
A trilha sonora que elas pedem é America, de Simon & Garfunkel. “Laughing on the bus, playing games with the faces“, o rádio toca, o embromation infantil corre solto e quem ri no carro é a gente.
“Eu quero fazer xixi!".
Não tem acostamento, não tem lugar pra parar. Estamos numa via rápida e eu explico. Aguenta aí, mas quem disse que ela quer aguentar. Tira os ombros do cinto da cadeirinha, mando botar, o pai manda botar, a irmã entrega. Ela continua sem. Viro pro lado que o torcicolo deixa. FILHA...E filha reclama, a outra diz que tá ficando chato.
Shuffle no ipod. Músicas aleatórias. Entra um samba. Vai passar!, de Chico Buarque. Nos empolgamos na cantoria e caprichamos no refrão.
Ai que vida boa, ô Lelê!
Ai que vida boa, ô Cacá!!!
Elas se olham surpreendidas. É assim? Mais ou menos. E tentam acompanhar.
Hora de parar para o xixi e um croquete.
“Quero um cróqueti!“
“Não é cróqueti, é cro-qué-te!“
Levo a mais nova comigo para o banheiro. Escuto a faxineira comentar com uma cliente a porcaria que estava lá, urina na tampa, sinais de menstruação pelo chão, incrível como as pessoas são porcas. Falta de delicadeza, cuidado com o outro. Buscamos a última cabine, parecia limpa, chão molhado. Seco a tampa da privada, preparo a capinha de plástico. A menina resolve apoiar o brinquedinho em cima da papeleira. Pego o negócio e boto na minha bolsa.
“Não tira dali!“ - ela protesta.
“É pra guardar melhor, filha, aí pode cair no chão, é pior. Não mexe na minha bolsa, espera aí“.
Enquanto eu forro a privada, ela não espera e mexe na minha bolsa e tudo (eu disse,tudo) cai no chão. Não num chão qualquer. No chão de um banheiro público. No chão de um banheiro público de beira de estrada. Quase em câmera lenta, acompanho meus pertences baterem na beira da privada e caírem no chão como uma bola na trave. Dois foram parar na água, meu rinosoro e o tal brinquedinho. Ela chora por causa do brinquedinho. Eu brigo. Eu brigo de novo, e aí ela chora por causa da briga.
“Eu não acredito no que você fez, Carol, eu não acredito“, digo, alto, a irritação e o nojo me tirando do sério.
“Olha o que você fez!“.
Do lado de lá da porta, a faxineira me consola.
“Deixa, senhora, que eu limpo!.
“Não é de limpar, tudo meu caiu no chão“.
“Eu pego“.
“Tem coisa dentro da privada“.
Examino rápido o chão. Está molhado. Essa água, que será isso, meu Deus?
“Nem sei o que faço. Olha isso!“, digo para Carolina, buscando entre os troços espalhados o que eu poderia descartar de cara.
Do canto da cabine apertada, ela me olha quieta, calcinha abaixada.
“Você precisa parar com essa mania de fazer exatamente o contrário do que a gente pede. Pode ser periogoso um dia! Não dá“, digo, secando como posso as coisas e enfiando tudo na minha bolsa de volta. Nojo.
Pego emprestada uma luva com a faxineira, e jogo fora o rinosoro e o brinquedinho.
“Me dá!“, ela pede, e chora.
“Claro que não. Já era. Uma caixa de papelão que molhou toda com a água da privada. Nem pensar“.
“Mas tinha coisa dentro“
“Agora já era“.
“Vai crescer e fazer menos besteira“, diz a faxineira, mãe de seis, dois gêmeos.
“Eu sei, eu sei, mas isso de fazer o oposto do que a gente diz tá passando um pouco da conta, se a senhora me entende“, respondo, sabendo que ela deve estar me achando o fim, a impaciente.
“Criança, criança é assim. E ela é bebê, quando crescer...“
“Eu não sou um bebê!“, reclama Carol, entrando na conversa sobre ela.
Findo o processo no banheiro, voltamos para comer o croquete. Eu ainda chateada. Ela calada. Conto o que aconteceu pro meu marido.
“Ela tem que parar com isso. Um dia pode ser perigoso“.
Não, nós não ensaiamos essa frase. Letícia, a mais velha, tenta mudar o clima.
“Gente, vamos sorrir? Estamos de férias!“
Esboço um sorriso porque ela tem razão e, além do mais, sem combinar, ela também está me repetindo. A menina exibe um astral ótimo. Parece a mais paciente de todos hoje. Quer ver o mapa, as cidades que vamos cruzar, saber quanto falta e onde estamos o tempo todo. Vou aderir aos Zangados Anônimos, aviso ao meu marido. A gente ri. Bem-vinda. Pelo menos minha bolsa não estava cheia, penso, já bancando a Poliana.
Os croquetes chegam, elas querem experimentar catchup.
“Eu posso?“, pergunta Letícia, intolerante a lactose.
“E eu?“, diz a cópia.
“Sim, podem, mas não assim, Carol! Isso não é mel“, digo, tirando da boca da criança a bisnaguinha de catchup.
“Porcaria, filha“.
A mesa tem um dispositivo para chamar o garçom. Elas querem apertar o tempo todo e inventam necessidades.
“Agora eu quero água“.
“Posso pedir outro cróqueti?“
“Croquete“.
Voltamos para o carro e a viagem segue. Paisagem verde, mas não tem vacas, reclama a mais velha. O pai explica: não estamos na temporada de vacas.
“Falta muito?
“Sim“
“Onde estamos?“
“Na estrada!“
“Mãe...“
Alguém está enjoada. Alguém pede música. Alguém não quer mais ouvir música. Alguém continua com o pescoço doendo.
“Falta muito?“
Aponto para a mais alta montanha da serra azul e distante no horizonte.
“Tá vendo aquele pico lá?“
A filha interessada em tudo arregala os olhos.
“Falta muito pra chegar lá, não é?“
Ela sacode a cabeça, um tanto decepcionada.
“Mas nós não vamos pra lá“.
“Ah que susto...“
Viajar é ótimo, com a família, sempre uma aventura. Eu não sei se vou descansar. Não é o melhor termo quando se está acompanhada de gente pequena repleta de energia. Mas quem está preocupado com isso?
Meus olhos ganham um brilho diferente, o branco fica mais branco e tudo vai ficando mais leve.
Nosso destino se aproxima, e vivas explodem do banco de trás. Vamos espairecer, esse é o verbo. Enquanto escrevo esta coluna, elas tentam chamar minha atenção de toda maneira. A criança menor rasgou o saquinho de pistache. Ouvi vários deles se espalharem pelo chão do hotel. Ela me olha com um sorriso que só mostra a arcada inferior sabendo que fez besteira, mais uma das muitas do dia e das que ainda vai fazer. Rápida, ela se prontificou a catar.
Não vou me irritar, mesmo se ela jogar tudo dentro da privada de novo. Temos uma série de cenas previsíveis pela frente e outras tantas surpreendentes por essa estrada. O caminho é longo. Ao lado delas, tudo é possível, até ficar respondendo à mesma pergunta sem parar. E isso é bom. Muita gratidão por ter esses três perto de mim.
http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/isabel-clemente/noticia/2014/01/uma-bviagem-com-criancasb-ou-falta-muito.html