Estado
e religião: A convivência nem sempre fácil entre o poder político e o
espiritual
É célebre a passagem do Novo Testamento, em
que Jesus, questionado se os judeus deveriam pagar impostos a César, respondeu
com a frase: "Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus".
A frase tornou-se um lema da separação entre o mundo espiritual e o mundo das
coisas materiais, entre a separação que deve haver entre o Estado e a Religião.
Ao longo da História, diferentes experiências nasceram da relação entre Estado
e confissões religiosas, e acabaram por comprovar que a independência entre
essas duas forças sociais oferece benefícios aos cidadãos que almejam viver em
liberdade.
Teocracias
Teocracias são regimes em que o poder
político é exercido, em nome de uma autoridade divina, por homens que se
declaram seus representantes na Terra, quando não uma encarnação da própria
divindade. O exemplo mais próximo de nós - talvez o único existente nos dias
atuais - é o Vaticano.
Seu governante, o papa, ocupa, ao mesmo
tempo, o cargo de administrador temporal do território incrustado na cidade de
Roma, na Itália, e, também, o de sumo sacerdote de uma das principais
confissões religiosas do mundo, o Catolicismo, escolhido para o cargo por um
colégio de cardeais que se acredita, para tanto, inspirado por Deus.
Mas há outros exemplos de teocracias. No
Japão, até o fim da Segunda Guerra Mundial, o imperador era considerado
descendente direto dos deuses que criaram a Terra. O Tibete, hoje ocupado pela
China, antes vivia sob a direção de um dalai-lama (supremo sacerdote e guia
espiritual do budismo tibetano). E se caminharmos rumo ao passado mais
distante, basta lembrar do Egito, onde o faraó era, ele mesmo, um deus,
descendente direto do deus Hórus.
Estados
confessionais
Neste início de século 21, no entanto, se
desejamos refletir sobre as relações entre religião e Estado, devemos nos
referir ao Estados confessionais, países em que uma única confissão religiosa é
reconhecida oficialmente pelo Estado, recebendo, em certos casos, os
privilégios decorrentes dessa condição.
Contudo, há, entre esses Estados, grandes diferenças.
O Catolicismo, na Argentina, ainda que seja a religião oficial do país, não
possui qualquer privilégio. O Protestantismo Luterano é a religião oficial da
Dinamarca, mas sua influência na sociedade dinamarquesa não se assemelha nem um
pouco ao poder exercido, por exemplo, pelo Islaminsmo no Irã, onde, depois da
revolução que depôs o xá Reza Pahlevi, em 1979, os aiatolás (altos dignitários
na hierarquia religiosa islamítica) tomaram o poder, criando um Estado no qual
a religião prepondera sobre a política. Alguns estudiosos, inclusive, chegam a
classificar o Irã como uma teocracia.
Os países islâmicos, aliás, são exemplos
contemporâneos de como a religião pode se confundir com a política. Desde seu
início, quando fundado pelo profeta Maomé, o Islamismo, à medida que se
expandiu pelo Oriente Médio, Extremo Oriente e Norte da África, chegando à
Europa, instituiu uma cultura na qual as lideranças políticas e religiosas se
concentram em um único governo. Assim, a religião islâmica é indissociável das
estruturas políticas, sociais e econômicas desses países, não importando se
falamos do Egito, onde há relativa democracia, ou da Arábia Saudita, uma
monarquia absolutista.
Estado
laico
No Brasil, como em inúmeros outros países,
dizemos que o Estado é laico, ou seja, uma forma de governo independente de
qualquer confissão religiosa. Mas, na época da monarquia, o imperador tinha o
poder de nomear religiosos para os cargos eclesiásticos mais importantes e
aprovar, ou não, documentos papais, a fim de que fossem seguidos pelos
católicos do país. O Estado laico, no entanto, prevaleceu após a Proclamação da
República.
As bases do Estado laico podem ser
encontradas no Renascimento, quando começou a ocorrer uma gradual separação
entre, de um lado, o pensamento político, a filosofia e a arte, e, de outro, as
questões religiosas. Lentamente, graças à recuperação dos valores da
Antiguidade clássica, o homem se voltou à livre busca das verdades, mediante o
exame crítico e o debate independente, recusando a predominância ou a
autoridade de uma verdade revelada por Deus e que se colocasse como absoluta e
definitiva.
Essa maneira de pensar e agir - que pode ser
chamada de laicismo ou secularismo - deu origem a Estados laicos, onde as
instituições públicas e a sociedade civil mantêm independência em relação às
diretrizes e aos dogmas religiosos - e onde não se aceita, ao menos
teoricamente, a ingerência direta de qualquer organização religiosa nos
assuntos de Estado.
Isso não quer dizer, entretanto, que as
democracias modernas sejam Estados ateus, onde as religiões são proibidas. Ao
contrário, esses países concedem a todas as confissões religiosas, sem
quaisquer distinções, igual liberdade, permitindo que elas exerçam livremente
sua influência cultural e, portanto, política.
Autonomia
Assim, o Estado laico não é um Estado
irreligioso ou anti-religioso - nesses países, a relação entre o temporal e o
espiritual, entre a lei e a fé, não é uma relação de contraposição, mas, sim,
de autonomia recíproca entre duas linhas distintas da atividade e do pensamento
humanos.
Não por outro motivo o Supremo Tribunal
Federal (STF) brasileiro, ao convocar as audiências sobre questões éticas e
religiosas, quis ouvir a opinião não só dos católicos, mas também dos
espíritas, dos cristãos de diferentes observâncias, dos budistas e de todas as
confissões religiosas que desejassem se manifestar.
Agindo assim, o Estado leigo protege a
autonomia, a liberdade do poder civil, sem aceitar qualquer controle religioso,
mas garantindo que todas as religiões possam se expressar livremente.
Privilegiar
a liberdade
O filósofo e monge franciscano Guilherme de
Ockham, no século 14, talvez tenha sido o primeiro a defender a importância de
separarmos a fé e o pensamento livre. "As asserções principalmente filosóficas,
que não concernem à teologia [ciência que se ocupa de Deus, de sua natureza e
seus atributos e de suas relações com o homem e com o universo], não devem ser
condenadas ou proibidas por ninguém, já que, em relação a elas, cada um deve
ser livre para dizer o que deseja", afirma Ockham.
Essas ideias foram sintetizadas, no século
17, por outro filósofo, John Locke, que as retirou da esfera das reflexões
filosóficas individuais, expandindo-as à própria organização do Estado. Locke
afirma que "o Estado nada pode em matéria puramente espiritual, e a Igreja
nada pode em matéria temporal".
Essa busca de uma harmonização entre forças
que, num primeiro momento, podem parecer incompatíveis - o pensamento liberal e
a doutrina religiosa (no caso de Locke, a doutrina cristã) - tem marcado, desde
então, o processo de desenvolvimento das democracias ocidentais.
Convivência
No transcorrer dos últimos séculos, religião
e Estado procuram encontrar uma fórmula que privilegie, acima de tudo, a
liberdade humana - sem a qual não há nem verdadeira busca religiosa nem Estado
verdadeiramente livre. E a própria Igreja Católica reconhece a necessidade
dessa independência, em um dos documentos que compõem as resoluções do Concílio
Vaticano 2º, a Constituição Pastoral Gaudium et Spes (sobre a Igreja no mundo
atual): "No domínio próprio de cada uma, comunidade política e Igreja são
independentes e autônomas".
Ao sair da esfera de influência direta das
religiões, o Estado tornou-se laico - e o laicismo não só impregnou a evolução
das sociedades democráticas, mas se transformou também em um método de
convivência, no qual filosofias e religiões, se não deixam de pretender possuir
a verdade absoluta, também não transformam suas respectivas maneiras de pensar
em atitudes que violentam a ordem jurídica ou afrontam a liberdade individual.
E, de fato, esse é o ideal: no que se refere
tanto às confissões religiosas como aos governantes, que eles procurem defender
seus pontos de vista e exercer sua influência dentro dos limites estabelecidos
pela lei, agindo sempre com tolerância.
Religiões
seculares
Isso não quer dizer, no entanto, que a
separação entre religião e Estado seja uma concepção política inquestionável,
seguida por todos os países. Se, nos dias de hoje, há Estados que vivem
intrinsecamente ligados à religião, como os do mundo islâmico, a história
também nos mostra que, às vezes, os Estados podem transformar partidos
políticos ou ideologias em verdadeiras religiões.
Essa sacralização de uma ideologia ou de um
partido é sempre marcada pela intolerância violenta - e chega ao extermínio
físico dos adversários e dos dissidentes. Os regimes totalitaristas de
influência fascista, nazista ou marxista são exemplos dessas religiões
seculares, nas quais - como em muitos países islâmicos - as políticas mais
repressoras são colocadas em prática.
Esses Estados, apoiando-se em uma confissão
religiosa ou em uma ideologia qualquer (que são transformadas em verdadeiros
dogmas), instauram a censura e destroem a autonomia das esferas filosóficas,
artísticas, espirituais e políticas da sociedade - aniquilando assim o direito
à liberdade.