Pesquisador
identifica influência do teatro na obra de Machado de Assis
Para autor, a presença da peça de Shakespeare é
fundamental na obra do bruxo do Cosme Velho
Antes de ser romancista (e de se transformar em um
dos maiores nomes da literatura em língua portuguesa), Machado de Assis
(1839-1908) desejava ser dramaturgo. Ainda jovem, chegou a escrever sete peças,
mas foi o veredicto do jornalista Quintino Bocaiuva quem o convenceu a adotar a
ficção: "Bocaiuva lhe disse que suas peças eram mais para serem lidas que
encenadas, pois eram mais cheias de ideias que de dramas", observa o
escritor e pesquisador José Luiz Passos, autor de Romance com Pessoas, obra que
ganha nova versão, agora pela Alfaguara, e que se consolida como uma das
principais análises contemporâneas sobre a escrita machadiana.
Passos mostra como, em seus romances e contos,
Machado utilizou o julgamento moral como um detalhe decisivo na construção dos
personagens, tornando-os únicos naquele momento da literatura brasileira
(segunda metade do século 19). É nesse ponto que entra a paixão pelo teatro - e
mais decisivamente as peças de Shakespeare - como modelo para sua
"sondagem da vida interior e do engano moral".
Vencedor do Prêmio Portugal Telecom do ano passado
com o romance O Sonâmbulo Amador, o pernambucano José Luiz Passos constata que
Machado tinha grande interesse pela vida interior dos personagens. "É a
pedra de toque da sua literatura. E essa vida é formada pelos valores morais
que o sujeito tem dele próprio."
O pesquisador passou longos meses na Academia
Brasileira de Letras, folheando os livros que pertenceram à biblioteca de
Machado. "Levantei a marginália dele, ou seja, o que anotou, sublinhou,
tentando descobrir o que lhe interessava e como isso teria influenciado sua
ficção", conta Passos, que notou Shakespeare como uma referência
constante.
"Talvez, com exceção da Bíblia, ele seja o autor
individualmente mais citado por Machado: há cerca de 230 referências diretas a
quase 20 peças do bardo - desde 1858, quando publica seu primeiro poema,
Ofélia, referência a Hamlet, até 1908, quando cita Shakespeare em Memorial de
Aires, algumas vezes com ironia, como quando compara o drama de Romeu e Julieta
com o de Cibélia."
Passos notou ainda que, nos momentos centrais dos
romances machadianos, em que o protagonista se avalia, ou entra em crise,
Shakespeare é invocado. "Com isso, tentei criar uma relação entre a
fascinação pelo bardo com a mecânica de criação dos próprios personagens."
Em sua pesquisa sobre a importância de Shakespeare
na obra de Machado de Assis, José Luiz Passos fez importantes descobertas.
Percebeu, por exemplo, que o autor brasileiro se refere a Otelo ao menos 30
vezes em sua obra. "Ele tenta reescrever Otelo em vários contos, flerta
com isso em Ressurreição, no qual cita Iago, até atingir o auge em Dom
Casmurro", observa ele, lembrando de uma obra clássica dos anos 1960, O
Otelo Brasileiro de Machado de Assis (Ateliê), em que a americana Helen
Caldwell traça um perfeito paralelo entre Otelo e Dom Casmurro, a ponto de se
fazer pensar que Capitu, assim como Desdêmona, é inocente na traição.
Em seu livro Romance com Pessoas, cuja primeira
edição saiu em 2007, José Luiz Passos torna precisa ainda a afirmação de
Machado ser o grande nome da literatura brasileira no final do século 19, época
dominada por escritores românticos, como José de Alencar, e naturalistas, como
Aluízio de Azevedo. "Entre esses, Machado cria o que digo ser uma terceira
via."
Na época, aponta o pesquisador, havia dois modelos
que dominavam o mundo da ficção. Um era o de Alencar, marcado por relações
arquetípicas e valores ideais, como a virtude, a pureza, a vilania. "Os
personagens eram marcados por valores absolutos, que determinavam traços de
personalidade ou qualidades associados a valores sociais", conta.
"Havia também a fórmula naturalista, em que os personagens são resultantes
de determinações muito maiores, e incontroláveis, de origem climática, racial,
etc."
E eis que Machado cria uma terceira via para o romance,
uma outra maneira de observar, em que predomina uma descrição mais robusta do
universo interior dos personagens, oferecendo-lhes uma psicologia plenamente
individualizada.
"E como Machado faz isso? Optando por uma
espécie de anacronismo deliberado e buscando na literatura do Renascimento
(Cervantes, Shakespeare, Dante e Camões) determinadas maneiras de falar sobre
valores humanos que pertencem à vida moral, ao mergulho do eu, ao terreno da
dúvida, à avaliação do indivíduo, e à capacidade de fingir", analisa.
"Com isso, adensa os personagens fazendo com
que tenham uma relação complexa com o tempo, ou seja, que eles percebam que
mudaram entre o começo e o fim da história."
Gênio ou crápula. Exemplos não faltam. Em Iaiá
Garcia, a protagonista se educa observando as outras pessoas dissimularem.
"Ela começa como uma adolescente ingênua e chata e termina como uma mulher
segura e informada pela desconfiança. Já Brás Cubas reconta a própria história
de uma forma que, se o leitor confiar, descobre um gênio, mas, se desconfiar,
encontra um crápula. O que esses personagens diferem dos alencarianos e
naturalistas é um dinamismo moral, uma invenção machadiana para as letras
brasileiras. Ele cria uma variante fundamental para a narrativa nacional que
vai resultar no realismo psicológico."
Na conversa que teve com o Estado, Passos revelou
particular interesse pelas obras finais de Machado, Esaú e Jacó (1905) e,
sobretudo, Memorial de Aires (1908). "Eles espantam o leitor, pois não têm
a pirotecnia verbal e conceitual de Brás Cubas, nem o pathos trágico de Dom
Casmurro, ou mesmo aquela alegria humana e às vezes farsesca de Quincas Borba.
São romances muito sutis, pertencentes à fase simbolista de Machado."
Futuro. Um dos planos do pesquisador é escrever
sobre a relação de Machado com Henry James, sobretudo nas semelhanças entre
Memorial de Aires e Os Embaixadores. "Aires é um personagem dentro do
romance, pois se trata de um diário, mas a visão de mundo do narrador
onisciente em terceira pessoa se cola de tal maneira à consciência de Aires que
ela é uma perspectiva dele. É fascinante e é uma técnica literária também
utilizada por James, em seu livro", observa. "Ainda pretendo escrever
sobre essa conexão entre a última obra de Machado com Henry James."