Como nascem as ideias
A criatividade está na origem das inovações nos mais variados
campos do conhecimento humano. Entenda de onde vêm as grandes sacadas.
Tanto o físico alemão Albert Einstein quanto o pintor espanhol
Pablo Picasso estavam com 26 anos de idade quando chegaram àquelas que seriam
suas maiores contribuições para a história: a teoria da relatividade e o
cubismo, respectivamente.
Ambos viveram na mesma sociedade fervilhante da passagem do
século XIX para o XX, período em que as discussões sobre tempo e espaço
esquentavam as rodas de intelectuais. Mas eles não se satisfizeram com as
explicações teóricas que circulavam na época.
Audaciosos, os dois decidiram experimentar caminhos novos – um
na ciência e outro na arte. Questionaram as noções vigentes, trabalharam duro e
acumularam tentativas até vislumbrarem conceitos totalmente originais.
Em 1905, Einstein publica a célebre equação de equivalência
entre massa e energia. Em 1907, Picasso conclui o quadro Les Demoiselles
d’Avignon, marco do cubismo. O segredo deles? “Ambos prometeram devotar a
própria vida à criatividade”, diz o filósofo e historiador da ciência Arthur I.
Miller, da Universidade College London, na Inglaterra, autor de
Einstein, Picasso – Space, Time and the Beauty that Causes Havoc (Einstein,
Picasso – Espaço, Tempo e a Beleza que Causa Destruição, inédito em português).
Fundamental para o progresso humano, a criatividade tem
contribuído com rupturas e transformações nas mais diversas áreas do
conhecimento. Vem instigando a curiosidade de filósofos, pensadores e
cientistas desde a antiguidade.
Platão encarava o ato de criar como uma força superior e transcendental,
fora do controle do indivíduo. Para o psiquiatra Sigmund Freud, o trabalho
criativo era resultado da sublimação de impulsos reprimidos.
O matemático Henri Poincaré afirmou que a criatividade revelava
parentescos inesperados entre fatos bem conhecidos, mas erroneamente tidos como
estranhos uns aos outros. Essencialmente, a criatividade pode ser definida como
a capacidade de gerar idéias e comportamentos que são surpreendentes,
relevantes e úteis em um dado momento.
“Tanto a originalidade quanto a utilidade das idéias variam dos
níveis básicos de criatividade – ou seja, da solução bem-sucedida dos problemas
cotidianos – até aquela criatividade excepcional, presente nas produções
artísticas e científicas”, afirma o psicólogo americano Dean Keith Simonton, da
Universidade da Califórnia, em Davis, nos Estados Unidos, e autor de dezenas de
trabalhos sobre o assunto.
O potencial criativo é inerente ao ser humano. No entanto, sua
manifestação varia de pessoa para pessoa. “Comparo a criatividade à eletricidade,
que pode tanto se expressar numa poderosa descarga elétrica durante uma
tempestade como acender uma lâmpada de uns poucos volts”, diz a psicóloga
Eunice Soriano de Alencar, da Universidade Católica de Brasília, que há três
décadas estuda o tema.
Para a psicóloga Solange Muglia Wechsler, coordenadora do Centro
de Criatividade e Desenvolvimento Humano da Pontifícia Universidade Católica
(PUC) de Campinas, no interior de São Paulo, a criatividade deve ser entendida
sob dois aspectos, o individual e o coletivo.
“Se você inventa uma nova receita
de bolo a partir dos ingredientes que tem em casa, está sendo altamente
criativo no plano pessoal. Mas, para o mundo, aquele pode ser um bolo como
qualquer outro”, afirma ela. As idéias, para serem consideradas geniais,
passam, portanto, pelo crivo da sociedade.
“Poucos indivíduos apresentam uma criatividade tal que provoque
um impacto duradouro ou profundo nos outros”, diz Simonton. “Uma das razões
seria o fato de que nem todos adquirem a perícia necessária para fazer
contribuições genuínas em algum domínio. Uma coisa é ser um pintor de domingo,
que cria paisagens razoáveis.
Outra é produzir pinturas que são exibidas, vendidas e
criticadas.” Essa perícia, a que Simonton se refere, seria o resultado da
combinação de trabalho, traços de personalidade, domínio da técnica e meio
favorável. Tal conjunto de fatores contribuiria, então, para que a criatividade
extrapolasse o âmbito individual e repercutisse também na sociedade.
“O indivíduo criativo pode somente trabalhar com os materiais
que estão disponíveis num dado tempo e lugar. Isaac Newton não poderia ter
surgido na Grécia antiga porque a ciência e a matemática daquela época não
estavam suficientemente avançadas”, diz Simonton.
“As condições sociais, culturais, econômicas e políticas
determinam a magnitude da criatividade. Algumas circunstâncias encorajam o
desenvolvimento do potencial criativo ou apóiam a expressão desse potencial.
Outras agem negativamente – como a guerra e a instabilidade política.”
A trajetória do gênio Wolfgang Amadeus Mozart serve de exemplo.
Desde cedo ele havia demonstrado um talento especial para a música. Aos 4 anos
de idade já tocava cravo e violino e, aos 5, compôs seus primeiros minuetos.
Além da aptidão musical, outros fatores contribuíram para sua
excepcional criatividade: seu pai e seu tio eram músicos, ele teve oportunidade
de viajar pelo mundo e, sobretudo, viveu numa cidade e numa época em que a
música era valorizada e os grandes compositores, reconhecidos. Mozart
dificilmente “nasceria” numa favela brasileira no final do século XX.
A personalidade também desempenha um papel essencial. “Estudos
revelam que as pessoas criativas apresentam características em comum”, diz
Eunice. Os traços pessoais são mais ou menos parecidos – a criatividade
geralmente está associada à independência de pensamento, à persistência, à
curiosidade, à ousadia e ao inconformismo, entre outros fatores.
“Além disso, os criativos apresentam uma motivação intrínseca
para a realização da tarefa e sentem um prazer imenso em fazer o que estão
fazendo”, afirma ela. “São pessoas com um amplo conhecimento e domínio da
técnica e que não se restringem à sua área de atuação.” Os criativos partilham
também de um rol de habilidades chamadas cognitivas: fluência de idéias, flexibilidade
– ou seja, capacidade de aceitar conceitos novos –, originalidade e atenção aos
detalhes.
“A criatividade exige uma capacidade de questionar todo o quadro
de possíveis significados existentes, sobre uma determinada matéria, a fim de
propor conceitos novos”, diz Philippe Willemart, professor da Universidade de
São Paulo (USP) e especialista em crítica genética, o estudo dos elementos que
recompõem o processo de criação artística e da produção científica.
“Isso exige um distanciamento daquilo que foi aprendido e
incorporado. Os criadores levam em conta o que foi feito antes, mas não assumem
uma atitude resignada. Querem abrir outras portas.”
Para entender o processo criativo dentro da mente, muitos
especialistas ainda usam a clássica divisão em etapas: preparação, incubação,
iluminação e verificação.
A fase de preparação, como o nome diz, envolve a reflexão sobre
o problema e os elementos que são relevantes. É o período em que a mente
acumula informações. Segue-se um período de pausa, em que você deixa de focar
conscientemente os dados disponíveis, já que não encontra nenhuma solução
satisfatória.
Sua mente, porém, continua trabalhando e passa a criar conexões
entre elementos aparentemente díspares. Vem o momento do “Eureca!”, o ponto
máximo da inspiração, quando você enxerga a saída possível para o seu problema,
a partir de uma composição de informações completamente original. Por fim, há a
fase da verificação, ou seja, o momento de trabalhar e lapidar a nova ideia e
checar se ela funciona.
Hoje, sabe-se que essas fases não se sucedem de modo linear, mas
sim que interagem entre si de forma bem complexa. A inspiração, por exemplo,
está presente em todo o processo criativo. Não existe um momento mágico nem na
gênese do projeto nem no final da produção.
“Foi-se o tempo de acreditar que as ideias geniais aparecem de
repente na mente de indivíduos privilegiados e que basta concretizá-las”, diz
Cecília Almeida Salles, da PUC de São Paulo, também especialista em crítica
genética. “A criação é resultado de trabalho. As ideias vão ganhando forma aos
poucos. Há desvios ao longo do processo e também a interferência do acaso – um
telefonema, por exemplo, pode sugerir a um escritor uma frase.”
Apesar de as boas sacadas aparecerem durante todo o projeto, as
origens da inspiração não são simples de serem perscrutadas. “A inspiração está
relacionada a processos do pensamento que ocorrem no nível do pré-consciente”,
diz Eunice.
O pré-consciente, na definição freudiana, é aquela parte do
inconsciente à qual temos acesso e que inclui lembranças de experiências e
sensações, como cheiros de alguns perfumes e impressões de viagens. São essas
informações que a mente acessa, de forma aleatória, quando desenvolvemos um
trabalho criativo.
“Muitas ideias vêm em sonho, quando a mente recupera cenas e
imagens diversas e faz conexões inesperadas entre elas”, diz Solange Wechsler.
Para o neurocientista Henrique Del Nero, da USP, a criatividade é proporcional
ao repertório do indivíduo: um rico banco de dados significa maior possibilidade
de rearrumações significativas de informações.
“A mente calcula qual a melhor jogada a partir da maior taxa de
informações com a menor redundância”, diz ele. Por isso, os especialistas
sugerem que as pessoas busquem enriquecer aquele banco de dados com atividades
que despertem a imaginação e a fantasia e gerem novas imagens, como a leitura,
viagens e atividades artísticas.
“Algumas das descobertas criativas da ciência se basearam na
recombinação de informações já sabidas”, diz o historiador Shozo Motoyama, do
Centro de História da Ciência da USP. Ele lembra o caso do químico francês
Antoine Lavoisier, que descreveu o fenômeno da combustão.
Experiências haviam demonstrado que, após a queima de um metal,
as cinzas que restavam eram mais pesadas que o próprio metal antes da
combustão. Na época, acreditava-se que o aumento do peso era causado pelas
partículas de fogo que se agregavam ao metal.
Para Lavoisier, tal
teoria não fazia sentido. Apesar de usar a mesma metodologia que os demais
cientistas, decidiu pesar o conjunto todo, inclusive o ar, e não só o metal ou
as cinzas – algo que hoje parece óbvio, mas em que ninguém havia pensado. Se a
teoria vigente estivesse correta, o conjunto final estaria mais pesado. Mas
isso não ocorreu: o peso se manteve. Lavoisier descobriu, então, que as
substâncias ao queimar não incorporavam as tais partículas de fogo.
Ficavam, na verdade, mais pesadas porque absorviam ar. Eureca!
Os cientistas não conhecem ainda a fisiologia da criatividade,
mas têm algumas pistas. “Os elementos criativos são extraídos da memória, tanto
a de trabalho – que retém as informações durante um curto período – quanto a
memória de longo prazo”, afirma o neurologista Ivan Izquierdo, da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul.
No entanto, diz ele, existem pessoas com transtornos na memória
de trabalho que apresentam uma excepcional capacidade criativa, como os
esquizofrênicos. Você se lembra do matemático John Nash, retratado no filme Uma
Mente Brilhante? Apesar da grave esquizofrenia, Nash era capaz de fazer
associações incríveis de idéias.
“Outros que têm falha na memória de trabalho e que costumam ser
bastante criativos são os depressivos. Talvez seja essa a única relação que se
possa fazer, seguramente, entre biologia e criatividade”, diz Ivan.
O período em que saem da fossa parece ser a fase de maior
explosão criativa – sentem inspiração para poemas, esculturas, músicas. “De
alguma maneira, o cérebro desses indivíduos parece juntar material –
lembranças, impressões, imagens – com o qual nada podem fazer naquele momento
de depressão, mas que vem à tona quando melhoram”, afirma.
“Não se trata de ser depressivo para ser criativo. Mas tanto
depressivos quanto criativos pertencem a uma categoria de pessoas muito
sensíveis. Pessoas que sentem o mundo com uma intensidade maior. Há
provavelmente uma base fisiológica comum, mas não a conhecemos ainda.”
A relação entre criatividade e algum grau de distúrbio mental
sempre foi tida como óbvia. Ela existe, mas a inspiração não nasce da
insanidade. É o contrário. “A loucura não contribui em nada para a
criatividade.
Trata-se de um mito”, diz o psicólogo e antropólogo Daniel
Nettle, da Universidade Open, na Inglaterra, autor de Strong Imagination:
Madness, Creativity and Human Nature (Imaginação Poderosa: Loucura,
Criatividade e Natureza Humana, inédito em português). “Entretanto, muitos
indivíduos criativos apresentam alto risco de desenvolver uma doença mental.”
Segundo Nettle, existem duas razões para isso. “A primeira é que
a criatividade envolve um tipo de afrouxamento das associações mentais – que,
em excesso, pode levar à psicose e à ruptura com a realidade. A outra é que
capacidade criativa parece estar ligada a grandes oscilações no humor”, diz.
São momentos de euforia seguidos de fases de depressão.
Outra crença comum – e também errônea – é que o uso de drogas
estimularia o pensamento criativo. “Todas as evidências mostram o contrário”,
diz Nettle. “As drogas fazem o indivíduo achar que está mais criativo, mas isso
acontece porque as substâncias afetam sua capacidade de julgar.
A longo prazo, a dedicação e o trabalho são comprometidos pelo
uso de estimulantes, alucinógenos e tranqüilizantes.”
A melhor maneira de livrar-se dos bloqueios à criatividade é
buscar ambientes estimulantes, onde seja possível se expressar livremente e
testar diferentes meios e perspectivas. O ócio também é fundamental.
“Infelizmente nossa sociedade, ao mesmo tempo que valoriza a
criatividade como um atributo necessário, privilegia os conformistas, estimula
a memorização, a resposta única, os resultados mensuráveis e o excesso de
regras”, diz Solange Wechsler.
O indivíduo criativo tem, diante de si, duas opções: seguir a
multidão – e repetir conceitos – ou trilhar um rumo completamente diferente,
muitas vezes na direção oposta. Relatos de artistas e cientistas revelam que os
criadores sentem que possuem um missão a cumprir. “A coisa mais importante é
criar”, dizia Picasso. “Nada mais importa, a criação é tudo.” Que venha a
inspiração.
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