terça-feira, 5 de julho de 2016

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Como nascem as ideias

A criatividade está na origem das inovações nos mais variados campos do conhecimento humano. Entenda de onde vêm as grandes sacadas.

Tanto o físico alemão Albert Einstein quanto o pintor espanhol Pablo Picasso estavam com 26 anos de idade quando chegaram àquelas que seriam suas maiores contribuições para a história: a teoria da relatividade e o cubismo, respectivamente.

Ambos viveram na mesma sociedade fervilhante da passagem do século XIX para o XX, período em que as discussões sobre tempo e espaço esquentavam as rodas de intelectuais. Mas eles não se satisfizeram com as explicações teóricas que circulavam na época.

Audaciosos, os dois decidiram experimentar caminhos novos – um na ciência e outro na arte. Questionaram as noções vigentes, trabalharam duro e acumularam tentativas até vislumbrarem conceitos totalmente originais.
Em 1905, Einstein publica a célebre equação de equivalência entre massa e energia. Em 1907, Picasso conclui o quadro Les Demoiselles d’Avignon, marco do cubismo. O segredo deles? “Ambos prometeram devotar a própria vida à criatividade”, diz o filósofo e historiador da ciência Arthur I.

Miller, da Universidade College London, na Inglaterra, autor de Einstein, Picasso – Space, Time and the Beauty that Causes Havoc (Einstein, Picasso – Espaço, Tempo e a Beleza que Causa Destruição, inédito em português).

Fundamental para o progresso humano, a criatividade tem contribuído com rupturas e transformações nas mais diversas áreas do conhecimento. Vem instigando a curiosidade de filósofos, pensadores e cientistas desde a antiguidade.

Platão encarava o ato de criar como uma força superior e transcendental, fora do controle do indivíduo. Para o psiquiatra Sigmund Freud, o trabalho criativo era resultado da sublimação de impulsos reprimidos.

O matemático Henri Poincaré afirmou que a criatividade revelava parentescos inesperados entre fatos bem conhecidos, mas erroneamente tidos como estranhos uns aos outros. Essencialmente, a criatividade pode ser definida como a capacidade de gerar idéias e comportamentos que são surpreendentes, relevantes e úteis em um dado momento.

“Tanto a originalidade quanto a utilidade das idéias variam dos níveis básicos de criatividade – ou seja, da solução bem-sucedida dos problemas cotidianos – até aquela criatividade excepcional, presente nas produções artísticas e científicas”, afirma o psicólogo americano Dean Keith Simonton, da Universidade da Califórnia, em Davis, nos Estados Unidos, e autor de dezenas de trabalhos sobre o assunto.

O potencial criativo é inerente ao ser humano. No entanto, sua manifestação varia de pessoa para pessoa. “Comparo a criatividade à eletricidade, que pode tanto se expressar numa poderosa descarga elétrica durante uma tempestade como acender uma lâmpada de uns poucos volts”, diz a psicóloga Eunice Soriano de Alencar, da Universidade Católica de Brasília, que há três décadas estuda o tema.

Para a psicóloga Solange Muglia Wechsler, coordenadora do Centro de Criatividade e Desenvolvimento Humano da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas, no interior de São Paulo, a criatividade deve ser entendida sob dois aspectos, o individual e o coletivo. 

“Se você inventa uma nova receita de bolo a partir dos ingredientes que tem em casa, está sendo altamente criativo no plano pessoal. Mas, para o mundo, aquele pode ser um bolo como qualquer outro”, afirma ela. As idéias, para serem consideradas geniais, passam, portanto, pelo crivo da sociedade.

“Poucos indivíduos apresentam uma criatividade tal que provoque um impacto duradouro ou profundo nos outros”, diz Simonton. “Uma das razões seria o fato de que nem todos adquirem a perícia necessária para fazer contribuições genuínas em algum domínio. Uma coisa é ser um pintor de domingo, que cria paisagens razoáveis.

Outra é produzir pinturas que são exibidas, vendidas e criticadas.” Essa perícia, a que Simonton se refere, seria o resultado da combinação de trabalho, traços de personalidade, domínio da técnica e meio favorável. Tal conjunto de fatores contribuiria, então, para que a criatividade extrapolasse o âmbito individual e repercutisse também na sociedade.

“O indivíduo criativo pode somente trabalhar com os materiais que estão disponíveis num dado tempo e lugar. Isaac Newton não poderia ter surgido na Grécia antiga porque a ciência e a matemática daquela época não estavam suficientemente avançadas”, diz Simonton.

“As condições sociais, culturais, econômicas e políticas determinam a magnitude da criatividade. Algumas circunstâncias encorajam o desenvolvimento do potencial criativo ou apóiam a expressão desse potencial. Outras agem negativamente – como a guerra e a instabilidade política.”

A trajetória do gênio Wolfgang Amadeus Mozart serve de exemplo. Desde cedo ele havia demonstrado um talento especial para a música. Aos 4 anos de idade já tocava cravo e violino e, aos 5, compôs seus primeiros minuetos.

Além da aptidão musical, outros fatores contribuíram para sua excepcional criatividade: seu pai e seu tio eram músicos, ele teve oportunidade de viajar pelo mundo e, sobretudo, viveu numa cidade e numa época em que a música era valorizada e os grandes compositores, reconhecidos. Mozart dificilmente “nasceria” numa favela brasileira no final do século XX.

A personalidade também desempenha um papel essencial. “Estudos revelam que as pessoas criativas apresentam características em comum”, diz Eunice. Os traços pessoais são mais ou menos parecidos – a criatividade geralmente está associada à independência de pensamento, à persistência, à curiosidade, à ousadia e ao inconformismo, entre outros fatores.

“Além disso, os criativos apresentam uma motivação intrínseca para a realização da tarefa e sentem um prazer imenso em fazer o que estão fazendo”, afirma ela. “São pessoas com um amplo conhecimento e domínio da técnica e que não se restringem à sua área de atuação.” Os criativos partilham também de um rol de habilidades chamadas cognitivas: fluência de idéias, flexibilidade – ou seja, capacidade de aceitar conceitos novos –, originalidade e atenção aos detalhes.

“A criatividade exige uma capacidade de questionar todo o quadro de possíveis significados existentes, sobre uma determinada matéria, a fim de propor conceitos novos”, diz Philippe Willemart, professor da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em crítica genética, o estudo dos elementos que recompõem o processo de criação artística e da produção científica.

“Isso exige um distanciamento daquilo que foi aprendido e incorporado. Os criadores levam em conta o que foi feito antes, mas não assumem uma atitude resignada. Querem abrir outras portas.”

Para entender o processo criativo dentro da mente, muitos especialistas ainda usam a clássica divisão em etapas: preparação, incubação, iluminação e verificação.

A fase de preparação, como o nome diz, envolve a reflexão sobre o problema e os elementos que são relevantes. É o período em que a mente acumula informações. Segue-se um período de pausa, em que você deixa de focar conscientemente os dados disponíveis, já que não encontra nenhuma solução satisfatória.

Sua mente, porém, continua trabalhando e passa a criar conexões entre elementos aparentemente díspares. Vem o momento do “Eureca!”, o ponto máximo da inspiração, quando você enxerga a saída possível para o seu problema, a partir de uma composição de informações completamente original. Por fim, há a fase da verificação, ou seja, o momento de trabalhar e lapidar a nova ideia e checar se ela funciona.

Hoje, sabe-se que essas fases não se sucedem de modo linear, mas sim que interagem entre si de forma bem complexa. A inspiração, por exemplo, está presente em todo o processo criativo. Não existe um momento mágico nem na gênese do projeto nem no final da produção.

“Foi-se o tempo de acreditar que as ideias geniais aparecem de repente na mente de indivíduos privilegiados e que basta concretizá-las”, diz Cecília Almeida Salles, da PUC de São Paulo, também especialista em crítica genética. “A criação é resultado de trabalho. As ideias vão ganhando forma aos poucos. Há desvios ao longo do processo e também a interferência do acaso – um telefonema, por exemplo, pode sugerir a um escritor uma frase.”

Apesar de as boas sacadas aparecerem durante todo o projeto, as origens da inspiração não são simples de serem perscrutadas. “A inspiração está relacionada a processos do pensamento que ocorrem no nível do pré-consciente”, diz Eunice.

O pré-consciente, na definição freudiana, é aquela parte do inconsciente à qual temos acesso e que inclui lembranças de experiências e sensações, como cheiros de alguns perfumes e impressões de viagens. São essas informações que a mente acessa, de forma aleatória, quando desenvolvemos um trabalho criativo.

“Muitas ideias vêm em sonho, quando a mente recupera cenas e imagens diversas e faz conexões inesperadas entre elas”, diz Solange Wechsler. Para o neurocientista Henrique Del Nero, da USP, a criatividade é proporcional ao repertório do indivíduo: um rico banco de dados significa maior possibilidade de rearrumações significativas de informações.

“A mente calcula qual a melhor jogada a partir da maior taxa de informações com a menor redundância”, diz ele. Por isso, os especialistas sugerem que as pessoas busquem enriquecer aquele banco de dados com atividades que despertem a imaginação e a fantasia e gerem novas imagens, como a leitura, viagens e atividades artísticas.

“Algumas das descobertas criativas da ciência se basearam na recombinação de informações já sabidas”, diz o historiador Shozo Motoyama, do Centro de História da Ciência da USP. Ele lembra o caso do químico francês Antoine Lavoisier, que descreveu o fenômeno da combustão.

Experiências haviam demonstrado que, após a queima de um metal, as cinzas que restavam eram mais pesadas que o próprio metal antes da combustão. Na época, acreditava-se que o aumento do peso era causado pelas partículas de fogo que se agregavam ao metal.

Para Lavoisier, tal teoria não fazia sentido. Apesar de usar a mesma metodologia que os demais cientistas, decidiu pesar o conjunto todo, inclusive o ar, e não só o metal ou as cinzas – algo que hoje parece óbvio, mas em que ninguém havia pensado. Se a teoria vigente estivesse correta, o conjunto final estaria mais pesado. Mas isso não ocorreu: o peso se manteve. Lavoisier descobriu, então, que as substâncias ao queimar não incorporavam as tais partículas de fogo.

Ficavam, na verdade, mais pesadas porque absorviam ar. Eureca!

Os cientistas não conhecem ainda a fisiologia da criatividade, mas têm algumas pistas. “Os elementos criativos são extraídos da memória, tanto a de trabalho – que retém as informações durante um curto período – quanto a memória de longo prazo”, afirma o neurologista Ivan Izquierdo, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

No entanto, diz ele, existem pessoas com transtornos na memória de trabalho que apresentam uma excepcional capacidade criativa, como os esquizofrênicos. Você se lembra do matemático John Nash, retratado no filme Uma Mente Brilhante? Apesar da grave esquizofrenia, Nash era capaz de fazer associações incríveis de idéias.

“Outros que têm falha na memória de trabalho e que costumam ser bastante criativos são os depressivos. Talvez seja essa a única relação que se possa fazer, seguramente, entre biologia e criatividade”, diz Ivan.

O período em que saem da fossa parece ser a fase de maior explosão criativa – sentem inspiração para poemas, esculturas, músicas. “De alguma maneira, o cérebro desses indivíduos parece juntar material – lembranças, impressões, imagens – com o qual nada podem fazer naquele momento de depressão, mas que vem à tona quando melhoram”, afirma.

“Não se trata de ser depressivo para ser criativo. Mas tanto depressivos quanto criativos pertencem a uma categoria de pessoas muito sensíveis. Pessoas que sentem o mundo com uma intensidade maior. Há provavelmente uma base fisiológica comum, mas não a conhecemos ainda.”

A relação entre criatividade e algum grau de distúrbio mental sempre foi tida como óbvia. Ela existe, mas a inspiração não nasce da insanidade. É o contrário. “A loucura não contribui em nada para a criatividade.

Trata-se de um mito”, diz o psicólogo e antropólogo Daniel Nettle, da Universidade Open, na Inglaterra, autor de Strong Imagination: Madness, Creativity and Human Nature (Imaginação Poderosa: Loucura, Criatividade e Natureza Humana, inédito em português). “Entretanto, muitos indivíduos criativos apresentam alto risco de desenvolver uma doença mental.”

Segundo Nettle, existem duas razões para isso. “A primeira é que a criatividade envolve um tipo de afrouxamento das associações mentais – que, em excesso, pode levar à psicose e à ruptura com a realidade. A outra é que capacidade criativa parece estar ligada a grandes oscilações no humor”, diz. São momentos de euforia seguidos de fases de depressão.

Outra crença comum – e também errônea – é que o uso de drogas estimularia o pensamento criativo. “Todas as evidências mostram o contrário”, diz Nettle. “As drogas fazem o indivíduo achar que está mais criativo, mas isso acontece porque as substâncias afetam sua capacidade de julgar.

A longo prazo, a dedicação e o trabalho são comprometidos pelo uso de estimulantes, alucinógenos e tranqüilizantes.”

A melhor maneira de livrar-se dos bloqueios à criatividade é buscar ambientes estimulantes, onde seja possível se expressar livremente e testar diferentes meios e perspectivas. O ócio também é fundamental.

“Infelizmente nossa sociedade, ao mesmo tempo que valoriza a criatividade como um atributo necessário, privilegia os conformistas, estimula a memorização, a resposta única, os resultados mensuráveis e o excesso de regras”, diz Solange Wechsler.

O indivíduo criativo tem, diante de si, duas opções: seguir a multidão – e repetir conceitos – ou trilhar um rumo completamente diferente, muitas vezes na direção oposta. Relatos de artistas e cientistas revelam que os criadores sentem que possuem um missão a cumprir. “A coisa mais importante é criar”, dizia Picasso. “Nada mais importa, a criação é tudo.” Que venha a inspiração.


http://super.abril.com.br/ciencia/como-nascem-as-ideias

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