Agressões em casa, discriminação e risco de
morte: os dramas das 'refugiadas' trans brasileiras
Sofia (nome
fictício) aguarda uma decisão do Departamento de Imigração dos Estados Unidos
em relação ao seu pedido de asilo feito em março deste ano. O processo traz
detalhes sobre sua vida como mulher trans e sobre a perseguição a transexuais
no Brasil.
Entre 2008 e
2016, segundo dados compilados pela Transgender Europe, uma organização com
sede na Europa, foram registrados 900 assassinatos de pessoas trans no Brasil,
quase metade de um total global de 2.016 reportados no mundo inteiro.
Com apenas
2,8% da população mundial, o Brasil responde por 46,7% dos homicídios
registrados de pessoas trans em todo o mundo.
Se o pedido
for acatado, Sofia pode ser mais uma entre o crescente número de pessoas que
conseguem asilo nos Estados Unidos por perseguições em seus países de origem
por conta da discriminação de gênero.
Não há dados
oficiais sobre o fenômeno, mas a Immigration Equality, organização nos EUA que
dá apoio ao público LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais) em pedidos
de asilo, trabalha hoje com 570 casos, o dobro do registrado em 2013.
"Pedimos
várias vezes ao governo para acompanhar o número de solicitações de asilo
feitas pela comunidade LGBT, mas ele não o faz, então, realmente só sabemos
quantas pessoas nos pedem ajuda", diz Jackie Yodashkin, diretora de
Comunicação da Immigration Equality.
Mudança
Segundo os advogados
especialistas em direitos LGBT, a migração de brasileiras transexuais para o
exterior passou por uma mudança nas últimas décadas.
"Até os
anos 1990, muitas travestis e transexuais iam para a Europa para se prostituir
e isso acaba gerando uma associação preconceituosa porque sempre ligamos
transexualidade à prostituição", disse à BBC Brasil Henrique Rabello de
Carvalho, advogado e membro da Comissão de Direitos LGBTI (Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Transexuais e Intersexuais) da OAB.
"Há um
fundamento histórico e social nisso por conta do preconceito que enfrentam no
mercado de trabalho e também da violência e bullying que sofrem na escola, o
que as levam para a prostituição, o mercado que absorve essa população",
explica. No entanto, nos últimos anos, a situação começou a mudar.
"Eu
acredito que esse movimento de pessoas trans indo para fora sempre existiu, mas
até meados dos anos 2000 era mais ligado à prostituição e nos últimos anos tem
sido mais pela busca de sair do país para ter uma vida mais segura", disse
à BBC Brasil Thales Coimbra, advogado especializado em direitos LGBT.
Parada LGBT
de 2016 em São Paulo teve como tema a Lei de Identidade de Gênero.
Coimbra já
prestou consultoria a mais de 50 pessoas trans, tanto em seu escritório em São
Paulo quanto na assessoria gratuita da USP para mudança de nome e sexo em
documentos, e, segundo ele, os relatos de agressão são muito parecidos.
"Desde a
infância é uma narrativa de sofrimento muito comum, quase um script:
hostilidades dentro de casa, de agressões verbais a espancamento para elas se
tornarem alguém que não são, bullying na escola, piadas e xingamentos,
proibição de usar o banheiro do gênero que se identificam, omissão da escola. O
resultado é o esperado: abandono escolar", diz.
"A
maioria das trans que hoje tem 20, 30 anos enfrentou essa narrativa de sair da
escola, abandonar a casa dos pais ou serem expulsas e ir para a rua. Sobram
quais oportunidades? Prostituição ou salão de cabeleireiro, estereótipos
marcados", acrescenta Coimbra.
Maus tratos
em casa e prostituição
A história de
Sofia segue esse script. Ela nasceu em uma família com poucos recursos em uma
cidade no interior de São Paulo. Quando pequena, via seu pai agredir
fisicamente seu irmão mais velho, que também é trans, denominado menina na hora
do nascimento.
Sofia conta
que desde os seis anos de idade demonstrava se identificar como menina, e não
menino: brincava de boneca, queria andar com meninas e não gostava de jogar
futebol. Seu pai, que bebia muito, a chamava de "viadinho" e brigava
com a mãe por ela defender Sofia e o irmão. Sofia relatou que, em uma dessas
brigas, a mãe teve uma parada cardíaca e morreu. Ela tinha apenas 10 anos de
idade.
O irmão mais
velho saiu de casa para valer e a vida de Sofia ficou mais difícil, com
agressões físicas e maus tratos constantes.
Quando tinha
16 anos, o pai morreu em decorrência de uma falência no fígado e Sofia tentou
buscar emprego em sua pequena cidade natal. Ela conta que foi rejeitada em
todas as tentativas - acabou indo morar em uma casa onde pagava o aluguel
através da prostituição. "Foi o único meio que achei de viver minha vida
pelo preconceito de ninguém dar trabalho", disse à BBC Brasil.
O que há de
real por trás do mito dos Illuminati?
Não apenas a
violência como também a impunidade, impulsionaram a decisão de Sofia de pedir
asilo nos EUA. Ela diz ter decidido ir embora depois de passar por uma série de
humilhações por parte de policiais. "No Brasil, a gente morre e ninguém
faz nada, somos uma a menos. Já tive casos de ter que reportar alguma coisa e o
policial dar uma risadinha cínica e dizer que só vamos perder tempo",
conta.
Ela pediu
ajuda a um homem com quem estava se relacionando havia algum tempo e ele pagou
por um curso de inglês de seis meses, visto, passagem e acomodação nos Estados
Unidos.
Está desde
2014 em Nova York e espera ter seu asilo concedido em até dois anos. "Eu
me sentia aterrorizada, saía para me divertir ou trabalhar e não sabia se ia
voltar. Via minhas amigas sendo espancadas, tinha que correr de pessoas que
queriam me bater por motivo nenhum. Já nem conseguia sair de casa de tanto
medo. Aqui eu não vejo ninguém rindo de mim ou tentando me agredir por ser quem
eu sou", diz.
O pedido de
asilo de Sofia foi realizado através da Immigration Equality, que já ajudou
outras trans brasileiras antes, segundo o diretor da ONG, Aaron Morris. Ele
disse que até hoje todos os casos assessorados pela organização tiveram êxito.
"Temos uma boa taxa de sucesso porque a lei funciona a nosso favor. Nosso
maior problema é o acúmulo, não temos juízes e advogados o suficiente. O tempo
de espera aqui se tornou insuportável para muitos, que precisam esperar dois ou
três anos para ter uma resposta", disse Morris à BBC Brasil.
As medidas do governo
Alex, mulher
trans hoje
trabalha com turismo na região do Algarve, no sul de Portugal.
A Secretaria
Especial de Direitos Humanos, ligada ao Ministério da Justiça e Cidadania,
disse trabalhar com medidas preventivas e repressivas para combater a violência
contra a população LGBT.
"A
secretaria dá visibilidade à violência e, à luz desse diagnóstico, busca
respostas com políticas públicas adequadas", disse à BBC Brasil Flávia
Piovesan, secretária especial de Direitos Humanos.
Entre as
medidas citadas pela secretária estão o Disque 100 - ouvidoria nacional que
atende denúncias de violações de direitos humanos pelo telefone -, o projeto de
premiação de boas práticas de direitos humanos no sistema judiciário e o apoio
à PEC 117/15, que desvincula perícia criminal das estruturas das polícias com o
objetivo de coibir o abuso policial.
De acordo com
o último relatório do Disque 100, relativo a 2015, houve um aumento de 94% de
denúncias de violações contra a comunidade LGBT entre 2014 e 2015, um salto de
1.024 para 1.983 ligações. Piovesan reitera, porém, que há diferentes
interpretações para o número: não se sabe se as denúncias ou os casos de
violência aumentaram. Mais da metade das denúncias, ou 53%, são casos de
discriminação, 25% de violência psicológica, 11% de agressões físicas e 2%
outros.
Sem amparo
legal
Apesar de
alguns avanços na área legal, como o caso de Neon Cunha, a primeira mulher
trans a conseguir mudar nome e gênero em seus documentos sem precisar de
atestado médico, atualmente, a nível nacional não há uma lei garantindo a
transexuais o direito de mudar seus registros oficiais.
Segundo Coimbra, há
apenas leis a nível estadual ou municipal que permitem a mudança de documentos
ou que criminalizem a transfobia (discriminação contra transexuais), mas menos
da metade dos Estados brasileiros contam com uma legislação do tipo.
Geralmente,
exige-se um diagnóstico de transtorno de identidade de gênero (como a Medicina
entende a transexualidade, que é a não identificação com o gênero atribuído a
alguém na hora do nascimento), algo que pode mudar com o precedente
estabelecido por Cunha em outubro passado.
"Temos
três formas de trabalhar com diversidade sexual no Direito: reconhecimento,
proteção e criminalização. O Brasil hoje nem reconhece nem protege, mas não
criminaliza, como alguns países da Ásia", diz Carvalho.
"A
transexualidade ainda é vista pela Organização Mundial de Saúde como uma
patologia e, sendo assim, a pessoa é vista como alguém que precisa de cuidados,
não de direitos", acrescentou.
Transexual,
um sinônimo de transgênero ou trans, é uma pessoa que não se identifica com o
gênero determinado a ela no nascimento. Por exemplo, foi chamado de
"menino" e na verdade se identifica como mulher.
Fuga e casamento
Não há muitas
organizações como a Immigration Equality no mundo e muitas pessoas trans saem
do Brasil através de outros métodos. Alex, por exemplo, apaixonou-se e casou
com um homem português, conquistando o direito de morar em Portugal oito anos
atrás.
"Meu pai
me batia, a única pessoa que me acolhia era a minha mãe. O resto era
perseguição, violência, piadas de todos os tipos vindo de desconhecidos,
parentes, amigos. Eu saí do Brasil para sobreviver e para ter alguma paz",
disse à BBC Brasil.
Alex, 36
anos, nasceu em uma família humilde na periferia de Curitiba. Seu pai, que
trabalhava como mecânico, não a aceitava, mas ela contou com a proteção da mãe,
que nunca a deixou se prostituir e trabalhou para sustentar a filha.
A proteção da
mãe não chegava às ruas, porém, onde ela foi perseguida e agredida por ser
trans. "Já corri e me escondi em farmácia, pedi para entrar em loja
batendo na porta dizendo 'pelo amor de Deus me deixa entrar que estão querendo
me matar'", lembra.
Em uma
ocasião, porém, ela não conseguiu fugir. Estava bebendo vinho com uma amiga no
centro de Curitiba quando dois homens se aproximaram para conversar. No meio do
papo, um deles inesperadamente deu um soco no rosto de Alex, que desmaiou na
hora. Acordou no hospital horas depois, com o nariz quadrado e as roupas
cobertas de sangue. Passou seis meses sem sair de casa com depressão e síndrome
do pânico.
"Conheço
gente que levou facada pelas costas por estar fazendo programa, tenho amigas
que estão se prostituindo e passam carros jogando pedra, urina, latas de
cerveja...Ou batem mesmo, são massacradas em todos os sentidos, estupradas. É um
horror e é cotidianamente. Você fica marcada, eu entrei em depressão porque eu
tinha medo de apanhar na rua", conta.
A situação de
Alex mudou quando conheceu através do Orkut um homem português que a achou
bonita e a convidou para viajar pela América Latina. Depois de três anos de
namoro, Alex se mudou para Portugal com ele, mas teve que abdicar da
nacionalidade brasileira porque, na época, o processo de retificação de nome e
gênero demoraria muito tempo e ela precisava da cidadania portuguesa para se manter
no país. Vive até hoje com seu marido alugando casas para turistas na região do
Algarve.
Alex, mulher
trans
"Tenho
amigas que estão se prostituindo e passam carros jogando pedra", conta
Alex
Direitos e transexualidade
A falta de
acesso a direitos básicos como ter um documento de acordo com seu gênero,
proteção da lei e direito de ir e vir livremente sem sofrer agressões verbais
foi o que fez a artista Negroma a deixar o país, segundo ela. "Eu não
tenho como viver meu gênero de forma livre e me assumir como trans se eu
continuar lidando com isso de uma forma opressora no sexo, no convívio social,
profissional, artístico", disse à BBC Brasil.
Negroma foi
abandonada pela mãe ainda pequena. Seu pai a assumiu quando ela tinha 3 anos,
mas, quando completou 15, ele a espancou e expulsou de casa ao descobrir que o
"filho" era gay.
"Em
menos de 10 minutos, eu passei de um jovem que vivia numa família de início de
classe média a ser um morador de rua", lembra. Depois de morar algumas
semanas na rua, Negroma encontrou abrigo em um salão de beleza onde passou a
trabalhar.
"Se
existe um refugiado, é porque existe essa violência", diz Negroma.
Quando
completou 18 anos, foi cursar Artes Cênicas na Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), em Florianópolis, uma oportunidade que lhe abriu portas para
explorar sua identidade de gênero mais a fundo através do teatro. Apresentou
suas performances de música e dança pelo Brasil e, em 2014, foi contemplada com
um prêmio do Ministério da Cultura, que financiou a realização de um projeto
artístico em Berlim.
'Não penso em voltar'
Lá ela
conheceu Sanni, outra mulher trans brasileira que foi à Alemanha em busca de
uma liberdade maior de gênero. Natural de Olinda, filha de uma mãe lésbica e
introduzida à cena gay de Pernambuco desde pequena, ainda assim, Sanni não
conseguia achar o seu lugar no Brasil.
"A minha
ignorância era tanta que antes de sair do Brasil eu não conseguia nem me
conceber como mulher", diz Sanni.
"A minha
ignorância era tanta que antes de sair do Brasil eu não conseguia nem me
conceber como mulher. Eu achava que ou eu nascia mulher ou seria uma travesti
que ia sempre morrer na praia e ser motivo de piada para todo mundo",
conta.
Há dez anos,
Sanni se casou com um alemão e conseguiu sua cidadania. Depois de três anos na
Alemanha, iniciou o processo de transição de gênero com terapia hormonal e
cirurgia para redesignação sexual.
Aos 28 anos,
ela trabalha hoje como música, DJ e modelo em Berlim, muitas vezes tocando
projetos sobre sua identidade como mulher trans brasileira e imigrante. Mas não
pensa em voltar.
"Eu vejo
a possibilidade de morar como cidadã no Brasil como uma redução da minha pessoa,
sei que eu seria sempre estigmatizada, que algumas pessoas não conseguiriam ver
além disso", diz.
Privilégio
É o mesmo
motivo que fez Negroma retornar à capital alemã para ficar. Um ano depois de
terminar seu projeto, voltou ao Brasil e em dez horas diz ter sofrido cinco
agressões, desde olhares de reprovação até xingamentos.
"Existe
uma migração dentro do Brasil, de mudar de comunidade", diz Negroma.
"Desde
que saí do aeroporto, várias coisas aconteceram na minha cara, como
xingamentos, a forma como a pessoa te trata, como identifica sua presença no
espaço, coisas que aqui não acontecem por gênero, mas por causa da minha raça.
No Brasil, eu sei que é porque eu sou uma criatura 'anormal' àquele
espaço", diz.
No entanto,
Negroma reconhece que seu "refúgio" - ela não pediu refúgio à
Alemanha oficialmente, mas considera sua mudança uma espécie de fuga - é também
um privilégio.
"Existe
uma migração dentro do Brasil, de mudar de comunidade. O que mais me preocupa é
quando o refugiado não consegue sair da sua comunidade ou do país, quando ele
não consegue ser um refugiado. Se existe um refugiado, é porque existe essa
violência", afirma.