'Mataram meu filho enquanto ele brincava':
a vida em uma cidade síria sitiada
Síria vive
guerra civil desde 2011.
Mohamed al-Maleh,
de 12 anos, brincava no telhado de um prédio na cidade de Madaya, próxima à
fronteira com o Líbano, quando, segundo seu pai, um sniper atirou nele.
O menino caiu
com um ferimento grave na cabeça.
Moussa al-Maleh
correu para socorrê-lo. "Ele era um menino feliz, mas não estava tendo a
vida de uma criança normal", diz o pai, lembrando a rotina de vida de
Mohamed sob o cerco do governo.
"Nos dias
de bombardeio, ele se escondia no porão conosco. Podia ficar dias sem comer,
sem nenhum tipo de lazer. Mohamed vivia 1% do que as crianças normais
vivem", conta Moussa.
A clínica para
onde Mohamed foi enviado era, na prática, um quarto localizado no porão de uma
casa.
Dirigida por
Mohammed Darwish, um estudante de odontologia de 26 anos, e outras duas
pessoas, o local era a única instalação médica em Madaya.
"Tentamos
fazer o melhor que podemos, mas não tratamos os pacientes completamente. Não
somos especialistas", afirma Darwish.
"Mas temos
que continuar (o trabalho). Não temos escolha. É um presente de Deus tratar
essas pessoas", destaca.
Para salvar o
garoto, eles teriam de transferi-lo para outro lugar.
"Foi
difícil, um choque, algo como 'O que fazemos agora?', lembra Darwish.
"Ele
precisava de uma cirurgia, de um hospital, estava sangrando. Nós paramos e
cuidamos dele", acrescenta.
'Como animais'
Mas Madaya, com
seus 40 mil habitantes e a 25 km a noroeste de Damasco, está sitiada desde
junho de 2015.
A cidade
permanece cercada pelo Exército sírio e por combatentes aliados do grupo
libanês Hezbollah, que são apoiados pelo Irã.
A movimentação
dentro e fora da cidade é rigorosamente controlada, e os pedidos para a
retirada do menino foram ignorados. Dezoito horas depois, ele morreu.
"Fomos
deixados aqui como animais", diz o pai.
Dias antes,
Darwish conta que Mohamed Almoeel estava fora de sua casa quando levou um tiro
no abdômen, também por um atirador.
Moradores
afirmaram que os snipers estavam a postos, disparando naqueles que se
arriscavam a sair. Mesmo as pessoas que participavam de funerais de parentes
corriam o risco de ser alvejadas.
Imagens mostram
antes e depois de Aleppo.
A equipe da
clínica tentou, novamente, tirar o paciente, mas, de acordo com Darwish, os
combatentes aliados ao governo não permitiam que eles saíssem.
A única opção
que sobrou foi operá-lo lá.
"Não
tínhamos nenhum especialista, nenhum anestésico. Tínhamos de fazer aquilo, mas
não sabíamos como. Então pedimos ajuda aos médicos por Whatsapp", diz ele.
Caminhões com
ajuda humanitária entrando em Madaya.
Comboios de
ajuda humanitária e primeiros socorros têm tido pouco acesso a Madaya.
Grupos de
Whatsapp e Skype foram criados por especialistas e ONGs dentro e fora da Síria,
num esforço para ajudar os médicos em clínicas improvisadas como a de Madaya.
O cirurgião que
ajudava Mohammed Darwish pelo Whatsapp estava em Idlib, uma cidade rebelde no
norte da Síria e uma das poucas fortalezas remanescentes da oposição. É para lá
que estão sendo levados milhares de civis e combatentes retirados do Leste de
Aleppo.
Mas a própria
Idlib está agora sob imensa pressão, dizem grupos de resgate, incapazes de
tratar pessoas que sofrem de doenças crônicas e ferimentos de guerra, incluindo
membros amputados e ferimentos na cabeça.
Darwish e seus
colegas levaram oito horas para operar Almoeel.
"Os médicos
nos guiaram. Durante a operação, tiramos fotos de seu abdômen, saímos da sala
de cirurgia e perguntamos aos médicos o que fazer", conta ele.
"A bala
causou muitos danos dentro de seu corpo. Fizemos tudo o que podíamos. Mas ele
precisava de um especialista. Não conseguimos estancar o sangramento, então
fechamos o abdômen e o observamos", acrescenta.
Almoeel morreu
ao amanhecer.
Os doentes
continuavam chegando, mas, em muitos casos, Darwish e sua equipe nada podiam
fazer.
'Morrendo de fome'
O cerco a Madaya
bloqueou o acesso da cidade à medicina, combustível e comida.
Os moradores não
têm para onde ir, pois as estradas estão bloqueadas e as minas terrestres
cercam a cidade.
De acordo com o
Siege Watch, um grupo que monitora as condições de vida em áreas bloqueadas,
moradores permanecem dependentes de comboios humanitários que não chegam.
Sem comida e
remédios, crianças passam fome em Madaya.
Manifestantes
protestam segurando supostas fotos de crianças de Madaya que sofrem de
desnutrição grave.
As Nações Unidas
disseram no início deste ano que havia relatos de pessoas morrendo de fome na
região.
Funcionários da
ONU foram informados de que crianças estavam pegando grama para fazer sopa.
A violência
continuou e os grupos humanitários receberam acesso à região entre janeiro e
abril. Eles retornaram apenas em setembro e relataram que a desnutrição
continuava um problema sério.
Em novembro,
pelo menos quatro crianças morreram de doenças associadas à desnutrição,
informou o Siege Watch. No final deste mês, a ajuda foi finalmente permitida
novamente.
A falta de
vitaminas também aumentou o número de abortos espontâneos, disse Mirna Yacoub,
vice-representante da Unicef na Síria, à BBC em outubro.
As cesarianas
também se tornaram mais comuns devido à saúde frágil das mulheres. Algumas
estavam tão fracas que não podiam passar pelo trabalho de parto normal.
O drama das
meninas venezuelanas obrigadas a se prostituir para comer.
Moussa ainda
estava de luto pela perda de seu filho quando, sete dias depois, retornou à
clínica de Mohammed Darwish. Desta vez com sua esposa, que estava grávida do
segundo filho.
"Ela tinha
muita pressão e estava muito fraca. Então, a preparamos para a cirurgia, quando
o bebê saiu. Ele estava morto. Ficamos chocados", diz Darwish.
A notícia
devastou a família. "Minha mulher é diabética. Ela perdeu parte da
visão", afirma Moussa. "Ela só chora e diz: 'Por que eles querem
matar nossos filhos?'. Ela sente como se tivesse perdido uma parte de seu
corpo.
Quando visitou a
clínica, Yacoub ficou surpresa ao ver que as cesarianas estavam sendo
realizadas lá.
O número de
cirurgias havia crescido de tão forma que, sem álcool, instrumentos médicos
estavam sendo esterilizados com fogo.
Para o
ultrassom, por exemplo, um gel de cabelo fazia as vezes de condutor.
"Estamos
muito cansados", disse Darwish em uma de muitas entrevistas desde outubro.
"Os
pacientes muitas vezes vêm aqui e não sabemos o que fazer. Não há
especialistas, nem remédios, nem alternativa. A única coisa que podemos fazer é
ouvi-los. Odeio não poder tratá-los", afirmou na ocasião.
Darwish lembra o
caso de Ali, que tinha insuficiência renal e não pôde ser submetido à diálise
porque não havia equipamento próprio.
Os socorristas
disseram que os problemas nos rins tinham aumentado, em consequência da má
nutrição e da falta de alimentos.
A Siege Watch
informou que dois pacientes com insuficiência renal morreram no mês passado e
outras 27 pessoas com problemas semelhantes estavam presas na região.
Havia também
pacientes com câncer, infecções urinárias, doenças intestinais, entre outras,
diz Darwish.
Homem em Madaya
é ameaça para crianças, diz Unicef.
Clima extremo em
Madaya é ameaça para crianças, diz Unicef.
Um dia, lembra
Darwish, Hasan, de 13 anos, foi até a clínica reclamando de uma dor no pé, que
tinha alguns pontos escuros.
"Não
podíamos dar nada a ele; não havia remédios. Eu não tinha idéia do que tinha de
errado. Ele precisava ser consultado por um especialista", conta.
"Demos
alguns analgésicos a ele. Mas esses não são os remédios mais apropriados. Ele
sentia muita dor e estava chorando. Doía tanto que o menino não conseguia
andar. Então, chorei com ele", acrescenta.
Diante do
agravamento da situação, a clínica foi fechada em novembro.
"Estávamos
tentando fazer o melhor que podíamos", diz Darwish. "Mas, sem
suprimentos, não tínhamos condições de mantê-la", completa.
Outro problema é
o frio. Sem eletricidade ou combustível para ligar os aquecedores, moradores
vêm queimando sapatos ou móveis.
A Unicef, o
Fundo da ONU para a Infância, advertiu que o clima extremo representa uma
"grande ameaça" para as crianças da região.
Madaya e a
cidade vizinha de Zabadani, também sob controle rebelde, foram incluídas na
última etapa da trégua que permitiu a evacuação de Aleppo.
A expectativa,
agora, é de que as pessoas com necessidades médicas sejam retiradas de lá.
Moradores
sitiados por rebeldes em Foah e Kefraya, na província de Idlib, também serão
evacuados.
"Não
sabemos o que vai acontecer, não sabemos nada sobre o nosso futuro. Esperamos
que o cerco acabe. Só há civis aqui", diz Darwish.
Mas há esperança", acrescenta.