segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Mazela social...


Remoção ou expulsão de favelados? Por Renata Neder

Cartaz de documentário sobre a remoção de favelas nas décadas de 60 e 70.

Quem ainda não assistiu ao filme Remoção, de Luiz Antônio Pilar e Anderson Quack, deveria tentar ver, o quanto antes, para entender melhor a relação controversa e histórica entre a sociedade do Rio de Janeiro e as favelas, hoje chamadas eufemisticamente de "comunidades".

Com apoio de entrevistas e documentos da época, o filme retrata o intenso processo de remoção de favelas da Zona Sul do Rio nas décadas de 60 e 70. Ao exibir depoimentos de pessoas removidas, pesquisadores e arquitetos, o documentário revela o aprofundamento da segregação espacial da cidade a partir dessa política de remoções. O documentário tem patrocínio da Petrobras e do Governo do Estado do Rio de Janeiro.

“Não foi uma remoção, foi uma expulsão”. A frase é de um ex-morador do Parque Proletário, na Gávea, removido nos anos 60 e retratado no filme. Mas a mesma frase foi dita por um ex-morador da Restinga, na Zona Oeste, removido em 2011. Décadas separam os dois episódios, mas a forma como a cidade olha e trata as favelas parece não ter mudado tanto assim.

Lucien Parisse escreveu no fim dos anos 60 que “a cidade olha as favelas como uma realidade patológica, uma doença, uma praga, uma calamidade pública”. As políticas para as favelas eram orientadas por essa visão. O morador da favela era o não cidadão, o morador indesejado que deveria ser, portanto, removido.

Deveria ser removido e levado para longe. O filme recupera bem a realidade de quem foi reassentado em conjuntos em áreas bem distantes de local de onde vinham. Apesar de um discurso oficial de que tais conjuntos (como o da Cidade de Deus, Vila Kennedy e Vila Aliança) teriam toda a infraestrutura e acesso a serviços e equipamentos urbanos, a realidade foi bem diferente.

Não havia nada, não havia cidade em volta. Não havia transporte. Pessoas perderam seus empregos, seus laços sociais e sua qualidade de vida.

Ao ver o filme, é impossível não se remeter ao que tem acontecido nos últimos anos na cidade. Famílias continuam a ser removidas de áreas mais centrais e são reassentadas em áreas mais distantes, na Zona Oeste da cidade. Em algumas favelas - como a Rocinha - , a remoção em massa está descartada. Está claro que é muito melhor para as famílias que mudem para outras edificações ou bairros dentro da mesma comunidade.

Muitas remoções dos anos 60 e 70 foram justificadas pelo “risco”.  Favelas foram removidas por estarem em áreas consideradas “não urbanizáveis”. Mas, hoje, estão ocupadas por edifícios destinados à classe alta. Então essa área era não-urbanizável para quem? O argumento técnico, afinal, não era tão técnico assim. Hoje, muitas famílias são removidas por estarem em área dita de risco. Será que daqui a alguns anos veremos essas áreas ocupadas também por empreendimentos para a classe alta?

No filme, as pessoas se queixaram muito da marcação das casas com um X vermelho, indicando a ameaça de remoção. Hoje, os moradores se queixam do SMH (em referência à Secretaria Municipal de Habitação).

Em 2013, circulou por aqui o documentário “Prezado Mandela”, de Dara Kell e Cristopher Nizza, sobre a atuação do movimento de moradia "Abahlali BaseMjondolo" que lutava contra as remoções na África do Sul e contra a chamada Lei da Favela, que dava poder às autoridades locais e aos donos de terras para despejar os moradores. Eles dizem: “No apartheid, separavam os negros dos brancos. A Lei da Favela separa os pobres dos ricos.”

Remoção faz isso mesmo: separa os pobres dos ricos. Segrega no espaço urbano uns e outros. Nos anos 60 e 70, o lema das propagandas do governo era “demolir para construir”. Pois essas demolições serviram para construir uma cidade mais segregada.

Ontem e hoje, as remoções aprofundam as desigualdades urbanas. Ontem e hoje, os moradores das favelas se sentem expulsos. Uma moradora da Cidade Alta resume ao final do filme: “Remoção, em uma palavra? Violência.” Ontem, e hoje.

Hipocondria...


O que está por trás do abuso de analgésicos

As drogas lícitas das estrelas de Hollywood matam 15 mil pessoas por ano nos Estados Unidos. E no Brasil?

O Brasil é um país altamente tolerante com a automedicação. Quem nunca comprou remédio sem receita ou ofereceu um comprimido a um amigo? A dificuldade de acesso a consultas médicas é parte do problema, mas não explica todos os casos. Compartilhar remédio como quem compartilha conselho é um traço cultural.
 
Oferecer comprimidos para a dor de cabeça é um clássico. Quem consome analgésicos em excesso conhece o resultado. Depois de tomar uma determinada dosagem por um certo tempo, ela deixa de fazer efeito. A pessoa parte para uma dose maior que, num certo momento, também deixará de funcionar. É um ciclo que precisa ser evitado.

Drogas ilícitas como cocaína e crack assustam. O abuso de drogas lícitas como os medicamentos é visto como um problema menor. Pode não ser. Analgésicos potentes como os opióides podem matar quando consumidos fora da indicação médica.
Um dos casos mais emblemáticos é o do cantor Michael Jackson, morto em 2009, aos 50 anos. Segundo as investigações, Jackson era dependente de analgésicos – entre eles, os opióides. Volta e meia surge a notícia de alguma celebridade de Hollywood que se deu muito mal por causa do abuso desses remédios. No ano passado, foi a vez do ator Zac Efron.
Os opióides são uma ferramenta importantíssima no arsenal médico. São eles que aliviam dores intensas como aquelas provocadas pelo câncer, pelos politraumatismos e pelas queimaduras graves. O uso deveria ser altamente restrito, mas os controles existentes têm se mostrado falhos.
Há quem compre esses remédios de forma ilegal pela internet. Ou consiga uma receita de forma ilícita. Ou use os comprimidos receitados para um parente. Um mercado negro estimula o uso recreativo.
“Quem procura essas drogas com essa intenção faz isso por causa do efeito euforizante”, diz o neurocirurgião Claudio Fernandes Corrêa, coordenador do Centro de Dor e Neurocirurgia Funcional do Hospital 9 de Julho, em São Paulo. “Esse efeito é variável. Alguns dizem sentir um prazer físico e mental. Outros têm náuseas e vômitos”, afirma.

É o tipo de diversão que quase sempre acaba mal. Um dos opióides potentes usados de forma abusiva é a oxicodona, vendida com o nome comercial de OxyContin. Na medicina, ela é usada para aliviar dores de intensidade moderada a forte. Por exemplo, nos pós-operatórios, na neuropatia diabética e em algumas dores crônicas.

“O abuso de oxicodona pode matar”, diz Corrêa. “Provoca depressão respiratória e a pessoa morre”. A overdose de medicamentos contra a dor provoca cerca de 15 mil óbitos todos os anos nos Estados Unidos. Não há dados precisos no Brasil, mas os especialistas dizem que o uso recreativo no país é menos comum. “Algo como um caso no Brasil para cada dez casos nos Estados Unidos”, diz Corrêa.

Atualmente, os comprimidos de oxicodona disponíveis no Brasil podem ser quebrados. Isso facilita o uso abusivo. Se for esmagado, o comprimido vira um pó que pode ser inalado. Misturado a um solvente, pode ser injetado na veia.
A boa notícia é que o fabricante pretende lançar em breve uma nova tecnologia que pode reduzir o problema. Assim que a Anvisa liberar o registro da nova formulação (o que pode acontecer ainda neste semestre) os comprimidos em circulação no Brasil serão feitos especialmente para não quebrar.

O princípio ativo continua o mesmo. Ainda que alguém consiga quebrar o comprimido, restarão pedras grandes que não podem ser inaladas. Se alguém colocar um solvente, o produto vira um gel que não pode ser injetado.

“Essa tecnologia não vai encarecer o produto. A oxicodona será vendida pelo mesmo preço”, diz Andréa Naves, diretora médica da Mundipharma Brasil. “A versão anterior vai deixar de ser fabricada”.

Essa mesma tecnologia foi lançada nos Estados Unidos em 2010. Ajudou a reduzir os casos de abuso de oxicodona. Os dependentes parecem ter migrado para outras drogas.

Quem são as pessoas que abusam de drogas lícitas? Por que fazem isso? Por que precisam delas? Essa é a questão central que ainda não foi atacada. Cabe à sociedade olhar para ela e gerar a transfomação necessária.

“Quem abusa de opióides parece buscar uma fuga da realidade”, diz Corrêa. “São pessoas aparentemente sem grandes problemas, às vezes até bem-sucedidas na profissão, mas que precisam desse tipo de fuga”.

É preciso acabar com a ilusão de que pílulas aliviam toda e qualquer dor. Contra as dores da alma, elas nada podem fazer. Alguns incômodos nascem na mente e se manifestam no corpo. Nesses casos, os comprimidos podem ajudar. Mas a causa da dor vai continuar onde sempre esteve.

Corpo e mente funcionam juntos. Eles têm limites. Não passam incólumes em caso de sobrecarga. Quando o fardo fica pesado demais, a gente tropeça e cai. Sábio é quem aproveita a queda para respirar. O chão é o melhor conselheiro. Depois é juntar os cacos e recomeçar. A vida é isso e talvez essa seja a graça dela.

Família feliz...


Ser pai e mãe não é atividade para perfeccionistas

As lições deixadas por famílias de gente especial

Quando alguém elogia minhas filhas e ainda faz um comentário espontâneo dizendo que uma das duas – ou ambas – são a minha cara, ou a do meu marido, é difícil negar que uma lufada de orgulho toma conta de mim. 

Num exercício solitário e particular, resolvi que toda vez que elas estiverem também nos seus dias ruins, vou procurar naquele comportamento hostil traços meus. Não cheguei ao ponto de sorrir para um estranho e dizer “são a minha cara“ diante de uma dupla emburrada trocando insultos infantis em público. 

Esse exercício de aceitação é uma reconciliação íntima com minha natureza crítica para eu enxergar o outro como ele é e não como eu gostaria que ele fosse (ou se comportasse o tempo todo).

Cientes dos nossos defeitos e da óbvia conclusão de que os filhos não são nossa cópia, talvez estejamos nos preparando melhor para compreendê-los e aceitar os desdobramentos dessa personalidade que desabrocha. A verdade é que não dá para ser um perfeccionista no papel de pai ou mãe, e passei a entender isso melhor depois de ler Longe da Árvore, de Andrew Solomon (Companhia das Letras).

Longe da Árvore é uma fascinante jornada pelas histórias de centenas de famílias cujos filhos não saíram como planejados. São vários os exemplos: síndrome de Down, nanismo, surdez, esquizofrenia, transexuais, prodígios, deficientes, autistas, estupro, crime.

Não que todos tenham um traço comum. Há histórias e histórias, altos e baixos que variam em intensidade. Mesmo que a dedicação dos pais oscile e o grau de exigência dos filhos também,  sobressai a capacidade humana de amar, até quando não há uma troca real satisfatória, caso dos autistas graves.  

Quando deparamos com um roteiro de vida que fugiu à chamada normalidade, o que podemos aprender com isso? As famílias excepcionais nos ensinam que a normalidade é conviver com o diferente porque a diversidade é a regra, não a exceção. E mais: que o conceito de felicidade existe inclusive fora dos estereótipos que nos acorrentam.

“Se você tem um filho com deficiência, será para sempre o pai de um filho com deficiência; é um dos fatos básicos a seu respeito, fundamental para a maneira como as outras pessoas o percebem e decifram. 

Esses pais tendem a ver a aberração como doença até que o hábito e o amor lhes permitam lidar com sua nova realidade estranha – muitas vezes introduzindo a linguagem da identidade. A intimidade com a diferença promove a reconciliação“, diz trecho do livro. Conforme conclusões de Solomon, “as famílias infelizes que rejeitam seus filhos diferentes têm muito em comum, ao passo que as felizes que se esforçam para aceitá-los são felizes de uma infinidade de maneiras“.

É um dado da modernidade: futuros pais têm cada vez mais meios para selecionar os filhos que desejam ter. À parte julgamentos morais, éticos e espirituais sobre essa busca pelo filho perfeito, sem defeitos, com bons antecedentes e livres de doenças (não vou enveredar por aqui nesta coluna), as famílias que encaram o desafio são nosso farol num mundo que ainda precisa aprender a lidar com as diferenças.

Há os que desistem no meio do caminho, verdade. Entregam seus filhos especiais para outros criarem. Limitações existem e entendê-las sem julgamento  nos ajuda a lutar por um Estado que ofereça suporte a quem precisa, quesito no qual nosso país falha bastante.

Várias sentenças geniais ficaram reverberando na minha cabeça ao longo do livro, mas quando entra na parte mais confessional, o autor me vem com essa: paternidade (e maternidade, grifo meu) não é atividade para perfeccionistas. Perfeita por todos os motivos do mundo. Ninguém sabe de antemão que filho terá, saia ele de uma concepção programada, acidentada ou de um processo de adoção. 

E ainda que venha sem deficiências ou incompetências graves, será um outro buscando uma identidade que não a sua. A lição, de compreender o outro em toda sua essência, vale para todos nós.

Costumo dizer que o mal da humanidade é não saber interpretar, não conseguir se expressar, ou as duas coisas ao mesmo tempo. A relação parental está repleta desses pequenos conflitos que mudam de intensidade ao longo dos anos, como tudo na vida. 

E talvez boa parte da responsabilidade esteja nas nossas expectativas. Para cada grande projeto, pode acrescentar aí o dobro de ansiedade e uma boa dose de medo. Somos capazes de amar e aceitar nossos filhos sem esperar nada em troca como se houvesse um impedimento real intransponível? Essa é a grande barreira que essas famílias especiais encontram pela frente mas que, quase sempre, conseguem ultrapassar.

Para quem não tem filhos ainda, pode ser que tantas histórias sobre as dificuldades e os profundos desafios de ser pai e mãe de gente especial soem desencorajadoras.  Não é por aí. Entre os altos e baixos que marcam a vida dessas famílias, está a lição maior sobre a capacidade humana de amar qualquer pessoa, independente de como ela seja. 

Conforme descreve o autor, “a predisposição para o amor dos pais prevalece na mais penosa das circunstâncias. Há mais imaginação no mundo do que se poderia pensar“.

Como mãe de duas meninas normais, eu me perguntava a cada página se aquelas conclusões não se aplicariam a mim. Creio que sim. Entendo que, ao me tornar mãe, passei a observar o humano sob uma nova dimensão. Eu não sei se estou acertando nas minhas atitudes diárias. 

Estamos todos sujeitos a revisão. Surgirão estudos um dia, quem sabe, condenando as pessoas que deixaram seus filhos raspar bolo cru da tigela e aí eu saberei que errei.  Brincadeiras à parte, se não estivermos cometendo nenhum desatino, sugiro que façamos o maior proveito possível do tempo presente sobretudo no esforço de aceitá-los, com suas idiossincrasias.

Ao lidar com uma criança, você saberá o quanto de paciência realmente tem. Conhecerá de uma hora para outra seu real poder de improvisação, os limites da sua criatividade e até da sua fé. Perceberá o próprio desconhecimento sobre a vida diante de perguntas que misturam sagacidade e inocência. 

Ao mesclar o pouco que sabem com o muito que desejam fazer, as crianças nos indicam todo um futuro pela frente e, de quebra, nos eternizam em traços, trejeitos e defeitos. Mas é no presente que elas nos transformam. 

É agora que nos sentimos tão vulneráveis quanto fortes e, diante dessa exacerbação de nossa ambivalência humana,  encontramos espaço para melhorar. Taí o as crianças fazem por nós.

Deixo para o fim uma frase de Andrew Solomon, uma sugestão para repensarmos, de preferência todos os dias, nosso papel de pai e mãe.

“Olhar no fundo dos olhos de seu filho e ver nele algo de você mesmo e algo totalmente estranho, e então desenvolver uma ligação fervorosa com cada aspecto dele, é alcançar a desenvoltura da paternidade altruísta.“

Só o começo...



Ferréz: "O rolezinho foi só o primeiro ato"
O escritor, que vive na periferia paulistana, fala sobre música alta de madrugada, abordagem policial e o convívio com bandidos. Sua opinião: a revolta na periferia vai piorar

"O último amigo meu que era personagem deste livro morreu no ano passado”, diz Ferréz, da forma mais natural do mundo. Ele aponta sobre a mesa para uma cópia de Manual prático do ódio, livro de 2003 relançado agora pela Editora Planeta. 

Nele, conta a história de uma quadrilha de bandidos do Capão Redondo, na Zona Sul de São Paulo, onde Ferréz – aliás, Reginaldo Ferreira da Silva – nasceu em 1975, filho de pai motorista e mãe empregada doméstica. Há 17 anos, ele vem contando em prosa e verso, ao longo de seis livros, como vive, pensa e sente o povo da periferia. 

Na semana passada, ainda sob efeito da morte do cinegrafista Santiago Andrade, ele falou a ÉPOCA sobre crime, trabalho, esperança e revolta nos limites da cidade. A seguir, um resumo da conversa.

A VOZ DA PERIFERIA Ferréz na rua principal do Capão Redondo.  “Aqui, eu sou útil”.

ÉPOCA – O livro Manual prático do ódio, publicado em 2003, sugere que as pessoas da periferia estão presas entre miséria e violência. A vida melhorou nestes 11 anos?

Ferréz – Ficou mais apertada. São mais impostos, as contas aumentaram. As pessoas pagam R$ 100 de conta de luz dentro da favela. Se queixam do sufoco financeiro. Fora isso, o bairro cresceu muito, teve um inchaço urbano. Sinto que as pessoas estão mais aflitas e têm menos tempo que antes. Não sei se a vida melhorou.

ÉPOCA – A situação de pleno emprego e crescimento da renda nos últimos anos não chegou ao bairro?

Ferréz – As filas para arrumar emprego continuam. Tem subemprego, mas o moleque percebe que não chegará longe com ele. Ele pensa: vou completar 30 anos e continuar trabalhando na padaria? Vou fazer 30 anos trabalhando no McDonalds. O moleque da periferia quer poder sonhar.

ÉPOCA – O crime continua sendo uma opção glamourosa?

Ferréz – O crime continua sendo uma opção cultural. O moleque entra no crime porque ouve o vizinho dele falando, o cunhado dele falando. Ele vai assimilando tudo aquilo. É uma cultura que prepara para o ato criminal.

ÉPOCA – E a cultura do trabalho, do cara que acorda cedo porque acredita que vencerá na vida?

Ferréz – Isso é o que mais tem. Se você vier na periferia às 4h30 da manhã, os ônibus estarão lotados. Ladrão não acorda a essa hora. Há um enorme contingente de pessoas que sai de madrugada da periferia para servir o lanche da elite, para cuidar da segurança da elite. Elas voltam para casa e muitas vezes não têm comida nem segurança para elas mesmas. A sorte do Brasil é que as pessoas da periferia são honestas.

ÉPOCA – O senhor tem dito que estão mudando os valores. Que valores?

Ferréz – O cara que trabalha agora é visto como uma espécie de otário. Isso vem de toda parte. Da mídia, da propaganda. Lembro uma propaganda de carro que dizia que aquele modelo era só para pessoas especiais. Os moleques da periferia querem ser especiais também. O crime é a saída mais próxima.

ÉPOCA – Como é o convívio entre o trabalhador que acorda às 4h30 da manhã e a malandragem?

Ferréz – De uns tempos para cá, ficou mais complicado. Os trabalhadores querem dormir cedo e não conseguem, porque os moleques fazem barulho de madrugada. Eles agora têm moto, põem som no carro e ficam passando na rua com música alta, de noite. Para quem trabalha, ficou mais difícil morar na periferia.

ÉPOCA – Antes era diferente?

Ferréz – Antigamente, se o vizinho pusesse o som alto, meu pai ia lá, reclamava, e ele baixava o som. Hoje, a rua inteira liga o som alto de madrugada, e o cara que trabalha não consegue dormir. A tal da nova classe média teve acesso a comprar coisas. Mas, se você põe dinheiro na mão do cara e não dá cultura, ele vai exagerar o que já fazia. Não foi dada a base cultural.

ÉPOCA – Como é o convívio com a polícia, que também é composta de gente pobre?

Ferréz – O policial é pobre, mas não age como. Ele mora perto, mas tem o treinamento da corporação, com outro tipo de ideologia. A polícia aborda as pessoas aqui de um modo como nunca abordará no centro da cidade. Aqui, eles pedem até a nota fiscal do celular. O moleque tem de ter a nota, senão vira suspeito. Se ele está de madrugada na rua, tem de se explicar. É um interrogatório permanente. Quando você acaba de ser abordado, está em pânico. Uma vez, reclamei com um policial, e ele me perguntou se eu queria ser abordado com rosas. Na verdade, só queria ser tratado da forma como eles tratam as pessoas no centro.

ÉPOCA – Como os rolezinhos entram nisso tudo?

Ferréz – O rolezinho vem de uma massa gigante de jovens que não têm o que fazer. Não adianta o governador abrir os lugares públicos para os jovens. Eles não conseguem entrar. Os seguranças impedem, não querem os moleques fazendo nada lá dentro.
Jovem é jovem, em qualquer lugar do mundo. Nos Jardins ou aqui, o cara é rebelde, quer causar. O rolezinho foi só o primeiro ato, terá muito mais. O país enfrenta uma multidão de gente que quer se inserir, mas uma parte do país não quer que eles se insiram. Reclamam no aeroporto porque tem pobre pegando avião. Reclamam em Paraty porque tem pobre na feira do livro. Mas, espera: não somos a nova classe média? A gente também quer participar.

ÉPOCA – Por que essa rejeição acontece?

Ferréz – Porque o país foi montado pensando na Europa e nos Estados Unidos. O rico quer o modelo europeu de viver, o modelo americano. Ele quer ter casas abertas, com carro estacionado, não quer ter barulho. Mas a gente da periferia não faz silêncio, a gente anda com um monte de amigos. O país terá de lidar com isso, porque não vai parar. Não adianta criar regras para impedir o rolezinho, porque surgirão outras coisas. Haverá conflito enquanto as pessoas não aprenderem a conviver.

ÉPOCA – Aqui no bairro há sinais de revolta política?

Ferréz – Muitos. Antigamente, eu era o cara que reclamava sozinho. Agora nem falo mais. O motorista de táxi reclama dos impostos e dos corredores de ônibus, o cobrador reclama do salário. Todo mundo está insatisfeito. Houve passeatas por aqui e nos bairros em volta, organizadas por moradores. Quando acontece queima de ônibus, são os moradores mesmos. Não é coisa de bandido. Os moradores estão revoltados, e o ônibus é o único contato que eles têm com o Estado.

ÉPOCA – Qual sua opinião sobre a morte do cinegrafista Santiago Andrade?

Ferréz – Achei uma pena, nada vale uma vida humana. Mas também acho que nunca se mudou nada sem sangue nas ruas. Não se muda nada só conversando, infelizmente. Seria perfeito se fosse assim. Mas acho que morrerá mais gente.

ÉPOCA – Mas não dá para fazer manifestações sem violência?

Ferréz – Não dá para ter manifestações que não tenham casos específicos de violência. Não existe manifestação sem comoção e sem catarse. Isso não tira a legitimidade do movimento, da mudança que o país vive. E não adianta criminalizar, porque só colocará mais caras de máscara na rua, mais gente mal-intencionada. Se o manifestante for visto como criminoso, agirá como criminoso.

ÉPOCA – Mas, como lidar com o cara que sai quebrando tudo?

Ferréz – A solução do Brasil é sempre importar de fora. Por que não se faz o mesmo agora? A gente não vê a polícia dos Estados Unidos só quebrando e prendendo. Medidas sociais são tomadas para amenizar o problema. Aqui, não. Não tem debate, não tem diálogo. É só pôr a polícia na rua. A Polícia Militar virou a grande mãe. Qualquer coisa que acontece no país, chama a PM. A elite governante tem de aprender que não basta chamar a polícia. Ela tem de conversar.

ÉPOCA – Seu caso não mostra que existe uma saída individual da pobreza?

Ferréz – Mostra, mas uma vez eu disse isso para um americano, e ele respondeu: “Nem todo mundo é excepcional”. A pessoa consegue sair quando ela é excepcional. Eu me considero assim, porque sempre tive uma visão diferenciada. Tentava vender essa visão para meus amigos, e eles não compravam.

ÉPOCA – Não seria natural mudar para outro bairro a esta altura de sua vida?

Ferréz – No bar aqui ao lado, trabalha um churrasqueiro que sempre me cumprimenta de forma muito afetuosa. Ele me mostrou uma vez para a filha dele e disse: “Ele é escritor, veja se você estuda para ficar igual a ele”. Aqui me sinto importante, sou um exemplo. Quando vou fazer palestras, os pais dizem para os filhos: “Ele conseguiu ser escritor e é daqui, não precisou mudar”. Isso é importante para mim. Mudar de lugar é fácil; mudar o lugar dá mais trabalho. Só saio daqui o dia em que o lugar mudar para melhor, quando não precisar mais de mim. Ainda acho que sou útil aqui.

Incógnita...


Seu trabalho tem futuro?
Após substituir o trabalho braçal, na Revolução Industrial, as máquinas começam a substituir o trabalho intelectual nos escritórios


O russo Gary Kasparov não foi apenas o maior jogador de xadrez de seu tempo. Quando aceitou jogar contra o supercomputador Deep Blue, em 1997, era considerado o maior enxadrista de todos os tempos. “Não acho apropriado discutir o que eu faria em caso de derrota”, disse, antes do duelo. “Nunca perdi.” 

Em outra ocasião, foi ainda mais confiante: “Nunca vou perder para uma máquina”. Depois de oito dias e seis partidas, o que parecia improvável aconteceu. A máquina venceu o homem num duelo de capacidade intelectual. A vida profissional de Kasparov foi diretamente afetada a partir daquele dia 11 de maio. A vida dos demais profissionais, não. 

Supercomputadores eram para poucos. O Deep Blue pesava 1,4 tonelada, só sabia jogar xadrez e custou, em valores atuais, o equivalente a US$ 15 milhões. Computadores já haviam chegado a fábricas e escritórios, mas com capacidade e resultados tímidos. Ainda prevalecia a frase cunhada em 1987 por Robert Solow, ganhador do Prêmio Nobel de Economia por seus estudos sobre crescimento: “Dá para ver a era dos computadores em todo lugar, menos nas estatísticas de produtividade”. Hoje, 16 anos após a derrota de Kasparov, o cenário mudou. 

O poder de processamento de um supercomputador dos anos 1990 está agora disponível em computadores pequenos, baratos, versáteis e interconectados, como os smartphones. Incrivelmente capazes de armazenar e interpretar informações, essas novas máquinas estão revolucionando o ambiente de trabalho – e isso afeta diretamente seu emprego. “Cerca de 47% das profissões correm risco”, disse a ÉPOCA Carl Frey, doutor em economia da Universidade de Oxford, autor do estudo O futuro do emprego.

Frey e Michael Osborne, professor de ciência de engenharia de Oxford, avaliaram tarefas cotidianas de mais de 700 ocupações, para identificar o que uma máquina poderá fazer melhor que os humanos nas próximas duas décadas. Chegaram a um índice que varia entre 0 (nenhum risco de substituição) e 100% (risco total). 

As profissões mais ameaçadas estão nas áreas de logística, escritório e produção, aquelas que envolvem tarefas intelectualmente repetitivas. Embora o estudo seja baseado no mercado de trabalho dos Estados Unidos, suas conclusões são aplicáveis mundialmente. “Trocar profissionais por máquinas no Brasil é, em tese, menos atraente do que nos Estados Unidos, porque os salários são mais baixos”, diz Frey. “Mas o custo da automação está caindo tão rapidamente que a tendência deverá se manifestar nos dois países quase ao mesmo tempo.”

Exercícios de futurologia sobre a evolução da tecnologia existem há décadas – e, há décadas, eles costumam errar o alvo. Historicamente, os profetas pecam pelo otimismo. Agora, a realidade parece ter chegado antes do previsto. Em 2004, os economistas Frank Levy, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), e Richard Murnane, da Universidade Harvard, disseram no livro A nova divisão do trabalho que os robôs continuariam incapazes de realizar tarefas complexas, como dirigir. 

A previsão dos dois especialistas foi superada em 2005, quando Stanley, um carro sem motorista da Universidade Stanford, venceu um desafio proposto pela Agência de Projetos Avançados de Defesa dos Estados Unidos (Darpa). Desde 2009, o Google desenvolve a tecnologia do Stanley em estradas abertas ao trânsito. Os robôs já rodaram mais de 500.000 quilômetros, sem acidentes. O custo do sistema de radares a laser, usado pelos carros, caiu de US$ 35 milhões para US$ 80 mil. Considerados, no livro de 2004, insubstituíveis em longo prazo, motoristas de ônibus escolares têm 89% de chance de ser substituídos por uma máquina, segundo a previsão atual.

Amor real...

Casal de idosos que passou 60 anos juntos morreu de mãos dadas (Foto: Divulgação/Orleans Hub)
Após 60 anos juntos, casal morre de mãos dadas com horas de diferença

Imagem de arquivo do casamento de Ed e Floreen Hale (Foto: Divulgação/Orleans Hub)

Caso aconteceu em Nova York, nos Estados Unidos.

Fotografia de arquivo do casal (Foto: Divulgação/Orleans Hub)

Eles estavam em hospitais diferentes e foram reunidos antes de morrerem.

Ed e Floreen Hale viveram 60 anos juntos e morreramcom 36 horas de diferença (Foto: Reprodução/Batavia Funeral Homes)

Um casal de idosos que passou 60 anos juntos morreu de mãos dadas, com apenas algumas horas de diferença no início deste mês em Nova York, nos Estados Unidos, segundo o jornal “New York Daily News”.

Ed Hale, de 83 anos, havia prometido à mulher, Floreen Hale, de 82 anos , que nunca a deixaria. Ele permaneceu ao lado dela mesmo após ela morrer, e acabou morrendo 36 horas depois.

Os dois se conheceram em 1952. Floreen estava em uma festa com seus amigos pela primeira vez desde que havia sofrido um acidente de carro, que matou seu primeiro marido – ela estava casada há apenas seis meses.

Ed Hale, de 83 anos, havia prometido à mulher, Floreen Hale, de 82 anos , que nunca a deixaria. Eles morreram com apenas 36 horas de diferença. 

Ed prometeu cuidar de Floreen pelo resto da vida, e os dois nunca se separaram.

No fim de janeiro, entretanto, a promessa feita pelo homem de cuidar de sua mulher até o fim quase foi quebrada quando ele foi hospitalizado devido a um problema na perna, considerado grave pelos médicos.

Ed pediu para ver sua mulher, sem saber que ela também havia sido internada em um outro hospital com problemas no coração. Seu estado também era considerado grave.

O homem ficou inconformado. “Ele disse ‘preciso ver sua mãe, preciso falar com sua mãe. Estou morrendo, eu preciso vê-la’”, contou Renee Hirsh, filha do casal. “Foi o pior dia da minha vida.”

O hospital onde Ed estava internado concordou em transferi-lo caso suas condições de saúde melhorassem.

Dois dias depois, isso foi possível, e ele foi levado para o hospital onde Floreen estava.

Os dois foram instalados em camas colocadas uma ao lado da outra. Floreen pareceu confusa ao perceber que seu marido havia chegado. “Ela achou que ele talvez já tivesse morrido”, contou a filha do casal.

Os dois trocaram juras de amor novamente, deram as mãos, e alguns minutos depois Floreen morreu. Ed permaneceu ao seu lado, e sua condição se deteriorou. Após 36 horas, ele também morreu. Os dois foram enterrados juntos no dia 13 de fevereiro.

Mais uma etapa superada...