segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Família feliz...


Ser pai e mãe não é atividade para perfeccionistas

As lições deixadas por famílias de gente especial

Quando alguém elogia minhas filhas e ainda faz um comentário espontâneo dizendo que uma das duas – ou ambas – são a minha cara, ou a do meu marido, é difícil negar que uma lufada de orgulho toma conta de mim. 

Num exercício solitário e particular, resolvi que toda vez que elas estiverem também nos seus dias ruins, vou procurar naquele comportamento hostil traços meus. Não cheguei ao ponto de sorrir para um estranho e dizer “são a minha cara“ diante de uma dupla emburrada trocando insultos infantis em público. 

Esse exercício de aceitação é uma reconciliação íntima com minha natureza crítica para eu enxergar o outro como ele é e não como eu gostaria que ele fosse (ou se comportasse o tempo todo).

Cientes dos nossos defeitos e da óbvia conclusão de que os filhos não são nossa cópia, talvez estejamos nos preparando melhor para compreendê-los e aceitar os desdobramentos dessa personalidade que desabrocha. A verdade é que não dá para ser um perfeccionista no papel de pai ou mãe, e passei a entender isso melhor depois de ler Longe da Árvore, de Andrew Solomon (Companhia das Letras).

Longe da Árvore é uma fascinante jornada pelas histórias de centenas de famílias cujos filhos não saíram como planejados. São vários os exemplos: síndrome de Down, nanismo, surdez, esquizofrenia, transexuais, prodígios, deficientes, autistas, estupro, crime.

Não que todos tenham um traço comum. Há histórias e histórias, altos e baixos que variam em intensidade. Mesmo que a dedicação dos pais oscile e o grau de exigência dos filhos também,  sobressai a capacidade humana de amar, até quando não há uma troca real satisfatória, caso dos autistas graves.  

Quando deparamos com um roteiro de vida que fugiu à chamada normalidade, o que podemos aprender com isso? As famílias excepcionais nos ensinam que a normalidade é conviver com o diferente porque a diversidade é a regra, não a exceção. E mais: que o conceito de felicidade existe inclusive fora dos estereótipos que nos acorrentam.

“Se você tem um filho com deficiência, será para sempre o pai de um filho com deficiência; é um dos fatos básicos a seu respeito, fundamental para a maneira como as outras pessoas o percebem e decifram. 

Esses pais tendem a ver a aberração como doença até que o hábito e o amor lhes permitam lidar com sua nova realidade estranha – muitas vezes introduzindo a linguagem da identidade. A intimidade com a diferença promove a reconciliação“, diz trecho do livro. Conforme conclusões de Solomon, “as famílias infelizes que rejeitam seus filhos diferentes têm muito em comum, ao passo que as felizes que se esforçam para aceitá-los são felizes de uma infinidade de maneiras“.

É um dado da modernidade: futuros pais têm cada vez mais meios para selecionar os filhos que desejam ter. À parte julgamentos morais, éticos e espirituais sobre essa busca pelo filho perfeito, sem defeitos, com bons antecedentes e livres de doenças (não vou enveredar por aqui nesta coluna), as famílias que encaram o desafio são nosso farol num mundo que ainda precisa aprender a lidar com as diferenças.

Há os que desistem no meio do caminho, verdade. Entregam seus filhos especiais para outros criarem. Limitações existem e entendê-las sem julgamento  nos ajuda a lutar por um Estado que ofereça suporte a quem precisa, quesito no qual nosso país falha bastante.

Várias sentenças geniais ficaram reverberando na minha cabeça ao longo do livro, mas quando entra na parte mais confessional, o autor me vem com essa: paternidade (e maternidade, grifo meu) não é atividade para perfeccionistas. Perfeita por todos os motivos do mundo. Ninguém sabe de antemão que filho terá, saia ele de uma concepção programada, acidentada ou de um processo de adoção. 

E ainda que venha sem deficiências ou incompetências graves, será um outro buscando uma identidade que não a sua. A lição, de compreender o outro em toda sua essência, vale para todos nós.

Costumo dizer que o mal da humanidade é não saber interpretar, não conseguir se expressar, ou as duas coisas ao mesmo tempo. A relação parental está repleta desses pequenos conflitos que mudam de intensidade ao longo dos anos, como tudo na vida. 

E talvez boa parte da responsabilidade esteja nas nossas expectativas. Para cada grande projeto, pode acrescentar aí o dobro de ansiedade e uma boa dose de medo. Somos capazes de amar e aceitar nossos filhos sem esperar nada em troca como se houvesse um impedimento real intransponível? Essa é a grande barreira que essas famílias especiais encontram pela frente mas que, quase sempre, conseguem ultrapassar.

Para quem não tem filhos ainda, pode ser que tantas histórias sobre as dificuldades e os profundos desafios de ser pai e mãe de gente especial soem desencorajadoras.  Não é por aí. Entre os altos e baixos que marcam a vida dessas famílias, está a lição maior sobre a capacidade humana de amar qualquer pessoa, independente de como ela seja. 

Conforme descreve o autor, “a predisposição para o amor dos pais prevalece na mais penosa das circunstâncias. Há mais imaginação no mundo do que se poderia pensar“.

Como mãe de duas meninas normais, eu me perguntava a cada página se aquelas conclusões não se aplicariam a mim. Creio que sim. Entendo que, ao me tornar mãe, passei a observar o humano sob uma nova dimensão. Eu não sei se estou acertando nas minhas atitudes diárias. 

Estamos todos sujeitos a revisão. Surgirão estudos um dia, quem sabe, condenando as pessoas que deixaram seus filhos raspar bolo cru da tigela e aí eu saberei que errei.  Brincadeiras à parte, se não estivermos cometendo nenhum desatino, sugiro que façamos o maior proveito possível do tempo presente sobretudo no esforço de aceitá-los, com suas idiossincrasias.

Ao lidar com uma criança, você saberá o quanto de paciência realmente tem. Conhecerá de uma hora para outra seu real poder de improvisação, os limites da sua criatividade e até da sua fé. Perceberá o próprio desconhecimento sobre a vida diante de perguntas que misturam sagacidade e inocência. 

Ao mesclar o pouco que sabem com o muito que desejam fazer, as crianças nos indicam todo um futuro pela frente e, de quebra, nos eternizam em traços, trejeitos e defeitos. Mas é no presente que elas nos transformam. 

É agora que nos sentimos tão vulneráveis quanto fortes e, diante dessa exacerbação de nossa ambivalência humana,  encontramos espaço para melhorar. Taí o as crianças fazem por nós.

Deixo para o fim uma frase de Andrew Solomon, uma sugestão para repensarmos, de preferência todos os dias, nosso papel de pai e mãe.

“Olhar no fundo dos olhos de seu filho e ver nele algo de você mesmo e algo totalmente estranho, e então desenvolver uma ligação fervorosa com cada aspecto dele, é alcançar a desenvoltura da paternidade altruísta.“

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