Ser
pai e mãe não é atividade para perfeccionistas
As
lições deixadas por famílias de gente especial
Quando alguém elogia minhas filhas e ainda
faz um comentário espontâneo dizendo que uma das duas – ou ambas – são a minha
cara, ou a do meu marido, é difícil negar que uma lufada de orgulho toma conta
de mim.
Num exercício solitário e particular, resolvi que toda vez que elas
estiverem também nos seus dias ruins, vou procurar naquele comportamento hostil
traços meus. Não cheguei ao ponto de sorrir para um estranho e dizer “são a
minha cara“ diante de uma dupla emburrada trocando insultos infantis em
público.
Esse exercício de aceitação é uma reconciliação íntima com minha
natureza crítica para eu enxergar o outro como ele é e não como eu gostaria que
ele fosse (ou se comportasse o tempo todo).
Cientes dos nossos defeitos e da óbvia
conclusão de que os filhos não são nossa cópia, talvez estejamos nos preparando
melhor para compreendê-los e aceitar os desdobramentos dessa personalidade que
desabrocha. A verdade é que não dá para ser um perfeccionista no papel de pai
ou mãe, e passei a entender isso melhor depois de ler Longe da Árvore, de
Andrew Solomon (Companhia das Letras).
Longe da Árvore é uma fascinante jornada
pelas histórias de centenas de famílias cujos filhos não saíram como
planejados. São vários os exemplos: síndrome de Down, nanismo, surdez,
esquizofrenia, transexuais, prodígios, deficientes, autistas, estupro, crime.
Não que todos tenham um traço comum. Há
histórias e histórias, altos e baixos que variam em intensidade. Mesmo que a
dedicação dos pais oscile e o grau de exigência dos filhos também, sobressai a capacidade humana de amar, até
quando não há uma troca real satisfatória, caso dos autistas graves.
Quando deparamos com um roteiro de vida que
fugiu à chamada normalidade, o que podemos aprender com isso? As famílias
excepcionais nos ensinam que a normalidade é conviver com o diferente porque a
diversidade é a regra, não a exceção. E mais: que o conceito de felicidade
existe inclusive fora dos estereótipos que nos acorrentam.
“Se você tem um filho com deficiência, será
para sempre o pai de um filho com deficiência; é um dos fatos básicos a seu
respeito, fundamental para a maneira como as outras pessoas o percebem e
decifram.
Esses pais tendem a ver a aberração como doença até que o hábito e o
amor lhes permitam lidar com sua nova realidade estranha – muitas vezes
introduzindo a linguagem da identidade. A intimidade com a diferença promove a
reconciliação“, diz trecho do livro. Conforme conclusões de Solomon, “as
famílias infelizes que rejeitam seus filhos diferentes têm muito em comum, ao
passo que as felizes que se esforçam para aceitá-los são felizes de uma infinidade
de maneiras“.
É um dado da modernidade: futuros pais têm
cada vez mais meios para selecionar os filhos que desejam ter. À parte
julgamentos morais, éticos e espirituais sobre essa busca pelo filho perfeito,
sem defeitos, com bons antecedentes e livres de doenças (não vou enveredar por
aqui nesta coluna), as famílias que encaram o desafio são nosso farol num mundo
que ainda precisa aprender a lidar com as diferenças.
Há os que desistem no meio do caminho,
verdade. Entregam seus filhos especiais para outros criarem. Limitações existem
e entendê-las sem julgamento nos ajuda a
lutar por um Estado que ofereça suporte a quem precisa, quesito no qual nosso
país falha bastante.
Várias sentenças geniais ficaram
reverberando na minha cabeça ao longo do livro, mas quando entra na parte mais
confessional, o autor me vem com essa: paternidade (e maternidade, grifo meu)
não é atividade para perfeccionistas. Perfeita por todos os motivos do mundo.
Ninguém sabe de antemão que filho terá, saia ele de uma concepção programada,
acidentada ou de um processo de adoção.
E ainda que venha sem deficiências ou
incompetências graves, será um outro buscando uma identidade que não a sua. A
lição, de compreender o outro em toda sua essência, vale para todos nós.
Costumo dizer que o mal da humanidade é não
saber interpretar, não conseguir se expressar, ou as duas coisas ao mesmo
tempo. A relação parental está repleta desses pequenos conflitos que mudam de
intensidade ao longo dos anos, como tudo na vida.
E talvez boa parte da
responsabilidade esteja nas nossas expectativas. Para cada grande projeto, pode
acrescentar aí o dobro de ansiedade e uma boa dose de medo. Somos capazes de
amar e aceitar nossos filhos sem esperar nada em troca como se houvesse um
impedimento real intransponível? Essa é a grande barreira que essas famílias
especiais encontram pela frente mas que, quase sempre, conseguem ultrapassar.
Para quem não tem filhos ainda, pode ser que
tantas histórias sobre as dificuldades e os profundos desafios de ser pai e mãe
de gente especial soem desencorajadoras.
Não é por aí. Entre os altos e baixos que marcam a vida dessas famílias,
está a lição maior sobre a capacidade humana de amar qualquer pessoa,
independente de como ela seja.
Conforme descreve o autor, “a predisposição para
o amor dos pais prevalece na mais penosa das circunstâncias. Há mais imaginação
no mundo do que se poderia pensar“.
Como mãe de duas meninas normais, eu me
perguntava a cada página se aquelas conclusões não se aplicariam a mim. Creio
que sim. Entendo que, ao me tornar mãe, passei a observar o humano sob uma nova
dimensão. Eu não sei se estou acertando nas minhas atitudes diárias.
Estamos
todos sujeitos a revisão. Surgirão estudos um dia, quem sabe, condenando as
pessoas que deixaram seus filhos raspar bolo cru da tigela e aí eu saberei que
errei. Brincadeiras à parte, se não
estivermos cometendo nenhum desatino, sugiro que façamos o maior proveito
possível do tempo presente sobretudo no esforço de aceitá-los, com suas
idiossincrasias.
Ao lidar com uma criança, você saberá o
quanto de paciência realmente tem. Conhecerá de uma hora para outra seu real
poder de improvisação, os limites da sua criatividade e até da sua fé.
Perceberá o próprio desconhecimento sobre a vida diante de perguntas que misturam
sagacidade e inocência.
Ao mesclar o pouco que sabem com o muito que desejam
fazer, as crianças nos indicam todo um futuro pela frente e, de quebra, nos
eternizam em traços, trejeitos e defeitos. Mas é no presente que elas nos
transformam.
É agora que nos sentimos tão vulneráveis quanto fortes e, diante
dessa exacerbação de nossa ambivalência humana,
encontramos espaço para melhorar. Taí o as crianças fazem por nós.
Deixo para o fim uma frase de Andrew
Solomon, uma sugestão para repensarmos, de preferência todos os dias, nosso
papel de pai e mãe.
“Olhar no fundo dos olhos de seu filho e ver
nele algo de você mesmo e algo totalmente estranho, e então desenvolver uma
ligação fervorosa com cada aspecto dele, é alcançar a desenvoltura da
paternidade altruísta.“
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