ESCRITOS POLÍTICOS DE TOMÁS DE AQUINO - ARGUMENTO DA OBRA
1.
Ao cogitar eu do que ofereceria digno da vossa excelência real e conveniente à
minha profissão e ofício, ocorreu-me que, melhor havia de fazê-lo, escrevendo
um livro sobre o governo régio, no qual expusesse acuradamente a origem do
reino e quanto compete ao ofício de rei, segundo a autoridade da divina
Escritura, os ensinamentos dos filósofos e os exemplos dos príncipes mais
dignos de louvores, consultando o que possa a minha inteligência e confiando o
princípio, progresso e consumação da obra ao auxílio daquele que é Rei dos reis
e Senhor dos senhores, pelo qual reinam os reis: Deus, grande Senhor e rei
magno sobre todos os deuses.
Capítulo
II
De como é necessário que o homem, vivendo em sociedade, seja governado por
alguém.
2.
Para pôr em obra o nosso intento, cumpre começarmos pela exposição do que se há
de compreender pelo nome de rei. Ora, em todas as coisas ordenadas a algum fim,
em que se possa proceder de um modo ou doutro, é mister haver algum dirigente,
pelo qual se atinja diretamente o devido fim. Com efeito, um navio, que se move
para diversos lados pelo impulso dos ventos contrários, não chegaria ao fim de
destino, se por indústria do piloto não fora dirigido ao porto; ora, tem o
homem um fim, para o qual se ordenam toda a sua vida e ação, porquanto age pelo
intelecto, que opera manifestamente em vista do fim. Acontece, porém, agirem os
homens de modos diversos em vista do fim, o que a própria diversidade dos
esforços e ações humanos patenteia. Portanto, precisa o homem de um dirigente
para o fim. Tem todo homem, dada naturalmente, a luz da razão, pela qual é
dirigido ao fim, nos seus atos. E, se conviesse ao homem viver separadamente,
como muitos animais, não precisaria de quem o dirigisse para o fim, senão que
cada qual seria rei para si mesmo sob o supremo rei, Deus, uma vez que, pela
luz da razão, a ele dado divinamente, a si mesmo dirigiria nos seus atos. É,
todavia, o homem, por natureza, animal sociável e político, vivendo em
multidão, ainda mais que todos os outros animais, o que se evidencia pela
natural necessidade. Realmente, aos outros animais preparou a natureza o
alimento, a vestimenta dos pelos, a defesa, tal como os dentes, os chifres, as
unhas ou, pelo menos, a velocidade para a fuga. Foi, porém, o homem criado sem
a preparação de nada disso pela natureza, e, em lugar de tudo, coube-lhe a
razão, pela qual pudesse granjear, por meio das próprias mãos, todas essas
coisas, para o que é insuficiente um homem só. Por cuja causa, não poderia um
homem levar suficientemente a vida por si. Logo, é natural ao homem viver na
sociedade de muitos.
3.
Ademais: têm os outros animais inatos o discernimento natural do que lhes é
útil ou nocivo, como a ovelha vê, naturalmente, no lobo, um inimigo. Há, até,
certos animais que, por aptidão natural, conhecem ervas medicinais e outras
coisas necessárias à vida deles. O homem, no entanto, possui somente em geral o
conhecimento natural do que lhe é necessário à sua vida, como quem possa
chegar, dos primeiros princípios universais, ao conhecimento das coisas particulares
necessárias à vida humana. Ora, não é possível abarcar um homem todas essas
coisas pela razão. Por onde é necessário ao homem viver em multidão, para que
um seja ajudado por outro e pesquisem nas diversas matérias, a saber, uns na
medicina, outro nisto, aqueloutro noutra coisa.
Isto se patenteia com muita evidência no ser próprio do homem usar da
linguagem, pela qual pode exprimir totalmente a outrem o seu conceito, enquanto
os outros animais expressam mutuamente as suas paixões em geral, como o cão a
ira pelo latido, e os demais animais as exprimem de diversos modos. É, pois, o
homem mais comunicativo que qualquer outro animal gregário, como o grou, a
formiga e a abelha. Isto considerando, diz Salomão no Eclesiastes (4,9): Melhor
é ser dois juntos que um, por terem o proveito da mútua sociedade.
4.
Logo, se é natural ao homem o viver em sociedade de muitos, cumpre haja, entre
os homens, algo pelo que seja governada a multidão. Que, se houvera muitos
homens e tratasse cada um do que lhe conviesse, dispersar-se-ia a multidão em
diversidade, caso também não houvesse algo cuidando do que pertence ao bem da
multidão, assim como se corromperia o corpo do homem e de qualquer animal, se
não existira alguma potência regedora comum, visando ao bem comum de todos os
membros. Isso podendo, diz Salomão (Pr 11,14): Onde não há governante,
dissipar-se-á o povo. E, por certo, é razoável pois não são idênticos o próprio
e o comum. O que é próprio divide, e o comum une. Aos diversos correspondem
causas diversas. Assim, importa existir, além do que move ao bem particular de
cada um, o que mova ao bem comum de muitos. Pelo que, em todas as coisas
ordenadas se acha algum diretivo mais elevado. E, no mundo dos corpos, o
primeiro corpo, isto é, o celeste, dirige os demais, por certa ordem da divina
providência, e a todos os corpos os rege a criatura racional. Igualmente, no
homem a alma rege o corpo, e, entre as partes da alma, o irascível e o
concupiscível são dirigidos pela razão. Também, entre os membros do corpo, um é
o principal, que todos move, como o coração, ou a cabeça. Cumpre, por
conseguinte, que, em toda multidão, haja um regente.
5.
Assim como sucede em certas coisas ordenadas a um fim, andar direito ou não,
também no governo da multidão se dá o reto e o não-reto. Uma coisa dirige-se
retamente, quando vai para o fim conveniente; não-retamente, porém, quando vai
para o fim não-conveniente. Um, porém, é o fim conveniente à multidão dos
livres, e outro à dos escravos; visto como o livre é a sua própria causa, ao passo
que o escravo, no que é, pertence a outrem. Se, pois, a multidão dos livres é
ordenada pelo governante ao bem comum da multidão, o regime será reto e justo,
como aos livres convém. Se, contudo, o governo se ordenar não ao bem comum da
multidão, mas ao bem privado do governante, será injusto e perverso o governo.
Daí ameaçar o Senhor tais governadores, por Ezequiel (34,2): Ai dos pastores
que a si mesmos se apascentavam (como procurando os seus próprios interesses) ?
porventura não são os rebanhos apascentados pelos pastores. Em verdade, devem
os pastores buscar o bem do rebanho e os governantes o bem da multidão a eles
sujeita. Caso, então, seja exercido por um só o governo injusto, buscando pelo
governo os seus interesses e não o bem da multidão a si sujeita, tal governante
se chama tirano, nome derivado de força, porque oprime pelo poder, ao invés de
governar pela justiça; por isso também, entre os antigos, os potentados se
chamavam tiranos. Fazendo-se, entretanto, não por um só, senão por vários, se
bem que poucos, chama-se oligarquia, isto é, principado de poucos, dado que
esses poucos, por terem riquezas, oprimem sua plebe, diferindo do tirano apenas
no número. Se, porém, o regime iníquo se exerce por muitos, nomeia-se
democracia, quer dizer, poder do povo, sempre que o povo dos plebeus oprime os
ricos pelo poder da multidão, sendo então todo o povo como que um só tirano.
Semelhantemente se há de também fazer distinção quanto ao regime justo. Se a
administração está com uma multidão, se lhe chama com o nome comum de politia,
como quando a turbamulta dos guerreiros domina na cidade ou no país. E, se
administram poucos, mas virtuosos, chama-se aristocracia tal governo, isto é,
poder melhor, ou dos melhores, que, por isso, se chamam optimates. Pertencendo,
porém, a um só o governo justo, chama-se ele, propriamente, rei; donde o dizer,
por Ezequiel (37,24), o Senhor: o meu servo Davi será rei sobre todos e ele
ser-lhe-á, de todos, um pastor único.
AQUINO,Tomás
de. Escritos políticos. Tradução de Francisco Benjamin de Souza
Neto.Petrópolis, RJ : Vozes, 1995. (Clássicos do pensamento político)