Lula malufou para Maluf lular
Há nos afagos entre o ex-governador
Paulo Maluf (PP-SP) e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT-SP), sob os
olhares embevecidos de Fernando Haddad, mais filustria do que possa perceber
nossa vã filosofia. Mas, por incrível que pareça, há também muita sintonia. Ou,
como reza o título do romance famoso de Goethe, Afinidades eletivas. Como? - perguntará o leigo desabituado aos vaivéns da
política, que o ex-governador de Minas e banqueiro Magalhães Pinto comparava
com a mutação das imagens formadas pelas nuvens no céu. Ele mesmo comprovou sua
metáfora fundando o PP com seu principal adversário mineiro, Tancredo Neves -
um, ex-UDN, outro, ex-PSD -, aparentemente inconciliáveis. Os mais ingênuos
dirão que não há traços ideológicos comuns entre o PT de Lula e o PP atual, que
conta entre seus mais fortes dirigentes com um sobrinho do presidente que foi
sem nunca ter sido, como a Viúva Porcina, Francisco Dornelles, também
aparentado do caudilho gaúcho Getúlio Dornelles Vargas. Ora, ora, mas quem está
interessado em ideias? Na política contemporânea contam cargos na máquina
administrativa pública e segundos no horário da propaganda eleitoral gratuita
no rádio e na TV. O PP ficou com um cargo; o PT, com mais 95 segundos para
vender seu peixe fora d'água ao eleitorado escaldado, como sempre o foi o
paulistano.
Maluf nunca deixou de ser o que dele
dizia Lula nos tempos em que encarnava o furibundo João Ferrador, personagem
das greves do ABC lideradas por ele nos jornais dos metalúrgicos nos anos 70 e
80 do século 20: um "filhote da ditadura". Prefeito nomeado pelos
militares para administrar a maior cidade do País, o ricaço descendente de
libaneses ganhou de seus admiradores a imagem do realizador, tocador de obras.
O símbolo desse gestor que faz mais é o horrendo Minhocão, sem o qual hoje o
trânsito paulistano não fluiria. Seus detratores, entre os quais os petistas
que estão no poder federal e os tucanos que governam o maior Estado da
Federação, o rotularam como símbolo da malversação do ensebado dinheiro do Zé
Mané, que paga impostos e quase nada recebe em troca do Estado. Essa moeda de
duas faces, não necessariamente excludentes nem sequer opostas, poderia ter a
inscrição "rouba, mas faz" do velho Adhemar.
Mas Lula está longe de ser o demônio
execrado pelos malufistas de antanho como um perigoso inimigo do mercado e da
democracia, um sindicalista subversivo que liderava grevistas furiosos no ABC e
se deixou, depois, politizar por antigos guerrilheiros que queriam mudar o
sinal de uma ditadura de direita por outra de esquerda. Mais longe ainda está o
PT, que o sindicalista fundou, de sua imagem original de partido ideológico
comprometido com a mudança de "tudo o que está aí". Atolado até o
pescoço num pântano de corrupção e desmandos em administrações municipais,
estaduais e federal, o partido se deixou levar pelo canto da sereia da conciliação
de seu principal líder e ocupou o bote salva-vidas ao lado de Jader Barbalho,
Severino Cavalcanti e... Maluf.
Para sobreviver no campo minado da
política partidária brasileira, Lula trocou os piquetes do ABC pelo toma lá dá
cá franciscano, superando os aliados que combateu antes de cingir a faixa
presidencial. Para tanto adotou, sem pejo, a retórica dos cultores da velha
realpolitik tupiniquim. Nisso o milionário da madeireira foi um mestre valioso
para o aplicado estudante egresso do miserável semiárido nordestino. Se não o
superou em cinismo, tarefa reconhecidamente hercúlea, cultiva a caradura com
eficiência ainda maior. Pilhado em algum passo em falso, aplica fintas que nem
Mané Garrincha foi capaz de incluir em seu amplo repertório. E com muito mais
credibilidade do que as tentativas de drible que seu mais recente aliado tem
repetido para tirar o pé das armadilhas dos repórteres maledicentes e dos
promotores incansáveis que vasculham as contabilidades de suas gestões. O dono
do PP já foi muitas vezes alcançado pelos braços longos da lei, mas nessas
ocasiões, até agora, escapou desse abraço escorregando como bagre ensaboado
para o amplo território da impunidade do país da Justiça lerda e vesga. O
senhor do PT lança mão de súditos que assumiram bandalheiras que chegaram
pertinho de seu gabinete palaciano e se tem saído com habilidade de invejar
Arsène Lupin, protagonista de populares folhetins policiais. Posto diante das
evidências de que, no mínimo, não ignorava o que faziam seus auxiliares na
fraude dita "mensalão", saiu-se com a patacoada tornada dogma de fé
de que tudo não passara de "intriga da oposição".
É notório - e não deixa de ser
ridículo - o truque chinfrim de marketing de Maluf de se apropriar de quase
tudo o que pareça plausível de ter sido obra dele desde a posse de Tomé de
Souza como governador-geral. Lula foi adiante em esperteza e criatividade ao
criar o próprio slogan, "nunca antes na história deste país". Maluf
sabia que nunca precisaria comprovar afirmações duvidosas. Lula construiu o
próprio mito de forma a nem sequer ser questionado a respeito.
Maluf foi beneficiário do arbítrio. E
Lula tornou-se dirigente sindical atendendo ao anseio de parte dos militares
que topavam tudo para impedir a influência de Leonel Brizola, herdeiro
presuntivo do inimigo número um das casernas, Getúlio Vargas, no aparelho
sindicalista que o caudilho de São Borja forjou. Com as greves, o esperto
sobrevivente da pobreza do semiárido passou a simbolizar o ideal do povo
brasileiro cultivado pela esquerda que ganharia nas urnas a guerra perdida na
tentativa de tomar o poder com as armas. Maluf foi escorraçado dos palácios e
virou uma aposta perdida de volta da direita ao topo.
Neste ambiente em que governabilidade
justifica barganha e pouca vergonha se confunde com pragmatismo, Lula malufou
para Maluf lular, enfurecendo os tucanos que perderam a chance de preceder o PT
no afã.
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,lula-malufou-para-maluf-lular-,888758,0.htm