Mucamas,
Criadas ou Domésticas
Mucamas, Criadas ou Domésticas: sinônimos de uma só história de
exclusão.
“Xenofonte escreve: As pessoas que se dedicam aos trabalhos
manuais nunca são elevadas a altos cargos e é razoável. Condenadas na sua
grande parte a estar sentadas todo o dia, algumas mesmo a suportar um fogo
contínuo, não podem deixar de ter o corpo alterado e é muito difícil que o
espírito não se ressinta disso. "( PAUL LAFARGUE, Direito a Preguiça, LCC,
publicação eletrônica)
Neste breve artigo escolhemos tratar da genealogia, por assim
dizer, do trabalho doméstico, poderíamos ter escolhido qualquer outra função
e/ou atribuição considerada residual no seio da sociedade capitalista, onde os
salários e o status são igualmente residuais; é o caso dos garis, pedreiros,
serventes, boias frias, e toda gama de profissões cuja especialização e o grau
de proficiência são minimamente exigíveis, ou seja, são consideradas atividades
de caráter rudimentar, onde a capacidade cognitiva não teria tanta relevância,
comparando-se a outras áreas, posições conspícuas cujo credenciamento estaria
atrelado à inteligência do indivíduo e por sua capacidade de realizar tarefas
complexas, ininteligíveis para insipientes.
Essas simplórias premissas buscam legitimar as gradações e a
divisão social do trabalho, a quem diga que o fordismo morrera, que a diferença
entre escritório e o chão da fábrica fora dissolvido por metodologias e
paradigmas de inclusão e co-participação, mas, a realidade que escapa as
teorias dos grandes administradores, mostra que a especialização e a segregação
funcional na sociedade capitalista contemporânea, tem inexoravelmente ofendido
de maneira contumaz, pessoas cujas oportunidades lhes ofereceram um campo
existencial limitado, a História mostra que a realidade é múltipla, ou seja, ricos
e pobres; católicos e protestantes; jovens e velhos mesmo estando num mesmo
tempo histórico decodificam sua realidade e a circunscrevem de numa maneira
peculiar, construindo assim uma identidade, sua interface com o mundo, logo,
muito do que as pessoas são, ou vão se tornar, dependerá dos aparatos culturais
e/ou existenciais colocados a sua disposição. Ou seja, o que seria dos gênios
do nosso tempo se não fossem municiados dos conhecimentos que lhe deram a base
para seus descobrimentos, seria como esperar que um índio do Xingu construísse
uma bomba atômica, em primeiro lugar, seu arcabouço cultural não conceberia tal
aparato, não haveria lógica, nem matéria prima, nem conhecimentos prévios,
enfim, é como alguns antropólogos dizem: “temos um aparato biológico preparado
para viver mil vidas”, dependendo é claro de qual delas formos agraciados.
A partir do exposto, podemos definir que as ambigüidades das
atividades profissionais e seu corolário de satisfação ou de marginalização
advêm de desigualdades artificiais, convenções historicamente delimitadas,
cujas raízes podemos encontrar através de uma ressonância cuidadosa da história
das civilizações e nosso caso mais precisamente, do passado escravista
brasileiro, que engendrou classificações no mínimo equivocadas, anamorfoses que
deliberaram o que teria valor e o que não teria, construindo muros virtuais que
protegiam os afortunados dos desvalidos.
O liberto defrontou-se com a competição do imigrante europeu,
que não temia a degradação pelo confronto com o negro e absorveu, assim as
melhores oportunidades de trabalho livre e independente (mesmo as mais
modestas, como a de engraxar sapatos, vender jornais e verduras, transportar
peixe ou outras utilidades, explorar o comercio de quinquilharias etc). [...] Eliminado para setores residuais daquele sistema, o negro ficou à margem do
processo, retirando dele proveitos personalizados, secundários e ocasionais
[...]. Em suma, a sociedade brasileira largou o negro ao seu próprio destino,
deitando sobre seus ombros a responsabilidade de reeducar-se e de
transformar-se para corresponder aos novos padrões e ideais de homem, criados
pelo advento do trabalho livre, do regime republicano e do capitalismo.
Obviamente em se tratando das empregadas domésticas, que ao
longo do tempo sua designação passou por mudanças sinonímias, porém
semanticamente os termos predecessores, a saber: mucama; criada e serva, cristalizaram e/ou internalizaram a mediocridade funcional e, por
conseguinte, remuneratória; tanto que apenas recentemente, após quinhentos anos
as empregadas domésticas passaram a possuir alguns dos direitos que já são
gozados há décadas pelos demais trabalhadores de outras atividades, obviamente
que seus salários permanecem infinitesimais, mesmo sendo um trabalho árduo,
vital para a consubstanciação tanto do modelo tanto do sanitário vigente, onde
a limpeza e organização são apanágios imprescindíveis a uma casa de “gente
bem”; bem como da estrutura familiar de hoje cujos pais também trabalham fora e
deixam suas casas nas mãos de pessoas que não tiveram outra escolha senão
executar os trabalhos “indesejáveis”, como se o que as domésticas fizessem
fosse algo sujo, degradante. Mas infelizmente é isso que fica patente ao
observarmos o bônus destinado a elas, sabemos que os discursos humanos se
contradizem ao observarmos suas ações.
A história das domésticas brasileiras se confunde com a história
de nosso escravismo, não só ela mas quase todas as funções desprestigiadas,
pois, ao ex-escravo restavam as ocupações residuais como diria Florestan
Fernandes, para esta afirmação corroboram os jornais da época e mais
precisamente os classificados de empregos, que denunciam concomitantemente as
opções destinadas às pessoas de cor, que mesmo após a abolição e proclamação da
República, estavam patentes não apenas as desigualdades econômicas, mas, e
sobretudo, as desigualdades existenciais, àquelas que possibilitam o
vislumbrar, a esperança em conquistar um torrão do grão-pátrio.
Citaremos as ocupações mais oferecidas dentre as várias
delimitadas e deliberadamente reservadas aos negros, mesmo após a abolição, já
em plena República, são elas: “carregador de caixas”, “cozinheiro”, “copeiro”,
“caixeiro”, “costureiras”, “vendedores de bala”, “carregador de pão”,
“lavadeira”, “mucama”, “saieiras”, “carregador de cestos”, “tiradores de
goiabas”, “ajudante de alfaiate”, “charuteiro”, “official barbeiro”, “padeiro”,
“forneiro”, “carpinteiro”, “ama seca”, “ama de leite”, “ajudante de cozinha”,
lavador de pratos” e aparecendo de maneira esmagadora a função de “criada”, em
todos os classificados verificados a referência à cor é aquilo que chancela,
credencia a ocupação desses postos e, nesses casos em que citamos acima onde as
funções são as menos remuneradas e portanto as que exigem menos qualificação,
ou seja, são funções residuais, “inferiores” dentro da hierarquia ocupacional
capitalista, como o são até hoje, é o caso da criada, nossa empregada
doméstica, classe com os menores níveis salariais e que menos dispõe das
garantias legais do trabalhador. Transcreveremos alguns textos desses jornais a
fim de contextualizar nossas inferências.
“Precisa-se de uma criada de cor preta: Rua Visconde de Sapucahy
n. 169ª”; “Precisa-se de uma criada de cor preta, que cozinhe e lave; na rua
Guarda velho n. 30.”; “precisa-se de uma negrinha para arranjos de casa e lidar
com crianças, paga-se 15$; no Centro Ouvidor n. 20, 1ª andar.”. “precisa-se de
uma preta de meia idade que saiba cozinhar, na rua da Ajuda n. 27, 1º andar”;
“Precisa-se de uma preta velha para cozinhar e lavar, que durma na casa; na rua
general Polydoro n. 24.”; precisa-se de uma rapariga preta para ama seca; na
rua Senador Eusébio n. 9, sobrado.”; “Precisa-se de uma preto quitandeiro, que
seja fiel e sem vícios, na rua Haddock Lobo n. 18F.”; “Precisa-se de uma
crioulinha de 12 a 13 anos para andar com crianças de anno e meio; rua da
Passagem n. 67, Botafogo.” “Precisa-se de uma senhora de idade ou de uma preta
velha para serviços leves; na rua da rua da Ajuda nº 187, 2º andar.”
As modestas modalidades oferecidas ao negro não permita a ele
reverter seu quadro de exclusão, de anomia social, pois suas alocações eram
análogas ao período escravista, o que insistia em internalizar na
idiossincrasia social o gênero subjacente do negro.
Os negros e os mulatos ficaram à margem ou se viram excluídos da
prosperidade geral, bem como dos seus proventos políticos, porque não tinham
condições para entrar nesse jogo e sustentar as suas regras. Em conseqüência,
viveram dentro da cidade, mas não progrediram com ela e através dela.
Constituíram uma congérie social dispersa pelos bairros, e só partilhavam em
comum uma existência árdua, obscura e muitas vezes deletéria. Nessa situação,
agravou-se, em lugar de corrigir-se, o estado de anomia social transplantado do
cativeiro [...] quase meio século após da abolição o negro e o mulato ainda não
tinham conquistado um nicho próprio e seguro dentro do mundo urbano, que
fizesse daquele estágio um episódio de transição, inevitável, mas transponível.
Pagaram com a própria vida, ininterruptamente, os anseios da liberdade, de
independência e de consideração que os animavam a “tenta a sorte”, usufruindo
magramente das compensações materiais e morais da civilização urbana [...] As
posições mais cobiçadas mantinham-se “fechadas” e inacessíveis; as posições
“abertas” eram seletivas segundo critérios que só episodicamente podiam
favorecer pequeno número de “elementos de cor”.
Estratégia velada, inconsciente ou deliberada, não importa, a
questão é que os papéis ínfimos dentro do mercado de trabalho oferecidos aos
egressos do escravismo, ajudou e tem ajudado a perpetuar a debilidade econômica
e, por conseguinte, social, calando sua voz diante de um sistema econômico
arraigado a práticas racistas de seleção, alimentando anacronicamente um
sentimento colonial, cuja perenidade forjou uma espécie de inconsciente
coletivo. Logo, despreparado, descrente, abandonado a sua própria sorte, o
negro carecia de quase tudo, não houve nenhum planejamento ao despejá-los em um
mundo cuja lógica seria ininteligível para um ex-cativo. Assim, sem tempo para
se adaptar, se reeducar e, internalizar o ethos de um trabalhador livre, sem
meios para competir com os brancos, e aspirar à ocupação de posições mais
valorizadas os negros portavam-se de maneira dispersa, quase neurastênica.
Trazemos este tema à baila num momento de verdadeira revolta e
como forma de protesto, sim, sem nos preocuparmos com críticas sobre nosso
cientificismo, pois, como assistimos também o descaramento e a total ausência
de constrangimento com que a mídia destaca as atividades como: faxineiras,
garis, peões, enfim, são estereotipadas como sendo a consubstanciação do
malogro, pois, é muito comum as telenovelas se reportarem a essas profissões de
forma desrespeitosa, mesmo que camuflada em pó de arroz de uma ingenuidade
grotesca Todos devem ser lembrar da personagem vivida por Guilhermina Ginle que
ao final da novela “Paraíso Tropical”, recebera como “castigo”, por assim
dizer, um final “infeliz”, pelo menos era o que provavelmente o autor devia ter
em mente quando a “ridicularizou” colocando-a na pele de um gari do Rio de
Janeiro, como se essa profissão fosse uma penitência, o mesmo aconteceu
recentemente a um casal de senhores na novela Sete Pecados que simplesmente
tinham aversão ao trabalho de faxineiros de um hotel luxuoso e conquistam um
final majestoso ao ganharem na loteria e livrando-se desse “martírio” que seria
o serviço de limpeza.
O pior é que as autoridades também reverberam esse ideário
preconceituoso, tanto que tem adotado como penitência a jovens infratores, o
“castigo” de realizar por alguns dias serviços de gari, situação esta que fora
recebido com indignação pela classe que se diz insultada, porque sua profissão
não deve ser vista como um mero castigo e tratada com repugnância, eles se
dizem orgulhosos de fazer o que fazem. Outro aspecto patente nas telenovelas
concerne no padrão estabelecido das empregadas domésticas, ou seja, a sua
maioria composta de negras, até aí concordamos, uma vez que essa é infelizmente
a nossa realidade, pois, como já explanamos tem raízes em nosso escravismo.
A questão é até quando trataremos com tamanho desdenho gente que
trabalha duro, fazendo aquilo que os diplomados e engravatados consideram
humilhante realizar, por isso legaram aos “subalternos”, mas como se já não
bastasse à carga de trabalho e paradoxalmente os salários aviltados, ainda
encontram outras maneiras de vilipendiar as pessoas simples que sem vergonha
alguma lutam por sobreviver a partir dos meios que elas dispõe, desafiando com
o peito aberto um mundo cujo glamour depende do trabalho deles que pegam no
pesado e na sujeira, mas cujas mãos não estão tão sujas quanto aquelas que são
responsáveis pelo imobilismo na estrutura social brasileira.