Privilégio para a patota
É a privatização do Estado com outro nome, mas sempre com o mesmo
objetivo - dar aos companheiros, no caso, a entidades direta ou indiretamente
vinculadas ao PT, oportunidades excepcionais de negócios na exuberante
estrutura da administração federal. E isso com absoluto descaso pelas leis e
sem o mais remoto vestígio de decoro.
O exemplo da hora é o decreto assinado pela presidente Dilma
Rousseff no último dia 7 e publicado na edição seguinte do Diário Oficial da
União, eximindo uma fundação de direito privado de participar de licitação para
vender planos de saúde a funcionários federais - um mercado potencial estimado
em 3 milhões de usuários e R$ 10 bilhões por ano, atendido por 34 operadoras.
Chama-se Geap Autogestão em Saúde a organização contemplada com a
sorte grande. Ela atende 625 mil servidores (e dependentes) de 99 órgãos da
administração direta e indireta. Nos últimos 10 anos, o Estado carreou para os
seus cofres mais de R$ 1,9 bilhão em repasses cuja licitude não pode ser avaliada
pelo Tribunal de Contas da União (TCU) por ser o destinatário ente privado.
A presidente, ao privilegiar a Geap, evidentemente não se sentiu
tolhida pelo fato de ela estar sob intervenção da Agência Nacional de Saúde
Suplementar desde março passado em razão do seu endividamento da ordem de R$
260 milhões - um claro indício de má gestão. O favorecimento à entidade (que
chegou a ser dirigida por uma apadrinhada do então ministro da Casa Civil José
Dirceu) vem de longe.
Tendo sido criada por funcionários da União para atuar
exclusivamente nos Ministérios da Previdência e da Saúde, Dataprev e INSS - os
seus patronos e únicos autorizados por lei a contratá-la sem licitação -, a
Geap foi aquinhoada com um decreto do presidente Lula, divulgado por este jornal
em março de 2004, que estendeu o seu monopólio na prestação de serviços de
saúde e previdência complementar.
À época, a sua clientela já estava na casa de 740 mil usuários,
cobrindo cerca de 80 órgãos além daqueles para os quais havia sido criada.
Passados dois anos, a Procuradoria-Geral da República endossou um parecer do
TCU ao considerar inadmissível que uma fundação de direito privado se
conveniasse com quaisquer órgãos que não fossem os seus patrocinadores
originais. Os acordos adicionais representam "prestação de serviço para
terceiros" - devendo ser, portanto, objeto de licitação.
Uma ação contra a tese do TCU, movida por 18 associações de
servidores, foi derrotada em março último no Supremo Tribunal Federal (STF),
mas o acórdão ainda não foi publicado. A esperteza do decreto de Dilma,
revelado ontem pelo Estado, consiste na permissão para que a fundação assine
convênios com o Ministério do Planejamento - que gere toda a folha de pagamento
federal.
Isso significa que a União passa a ser a patrocinadora da Geap
Autogestão em Saúde, um dos entes em que a entidade se subdividiu - no mesmo
dia da publicação do ato da presidente -, conservando o CNPJ da fundação
original. Tudo foi claramente feito para burlar a lei. A manobra, observa o
subprocurador-geral do Ministério Público junto ao TCU, Lucas Furtado,
dificulta definir o regime jurídico aplicável à Geap, "pública para o que
convém e privada para o que convém".
No primeiro caso, para ser dispensada de licitação; no segundo,
para não prestar contas ao TCU. O decreto foi qualificado como
"inconstitucional, uma aberração e uma afronta" pelo deputado Augusto
Carvalho, do Distrito Federal, filiado ao Solidariedade. Ele pretende preparar
uma proposta de decreto legislativo para sustar os efeitos da canetada de
Dilma. Já o seu colega do PDT, Antônio Reguffe, se diz espantado com o ato.
Relator na Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara de uma
proposta de fiscalização e controle dos convênios da Geap, ele resume a sua
perplexidade: "Se a Geap foi considerada privada pela Justiça, deveria
haver licitação para que fosse escolhida a empresa que melhor atendesse o
interesse público; ou o governo teria de criar uma estatal para tocar o plano
de saúde de seus servidores". E se pergunta: "Agora, quem vai
fiscalizar isso, se o TCU se julga incapaz porque considera a Geap um ente
privado?".