O
que está por trás do abuso de analgésicos
As
drogas lícitas das estrelas de Hollywood matam 15 mil pessoas por ano nos
Estados Unidos. E no Brasil?
O Brasil é um país altamente tolerante com a
automedicação. Quem nunca comprou remédio sem receita ou ofereceu um comprimido
a um amigo? A dificuldade de acesso a consultas médicas é parte do problema,
mas não explica todos os casos. Compartilhar remédio como quem compartilha
conselho é um traço cultural.
Oferecer comprimidos para a dor de cabeça é
um clássico. Quem consome analgésicos em excesso conhece o resultado. Depois de
tomar uma determinada dosagem por um certo tempo, ela deixa de fazer efeito. A
pessoa parte para uma dose maior que, num certo momento, também deixará de
funcionar. É um ciclo que precisa ser evitado.
Drogas ilícitas como cocaína e crack
assustam. O abuso de drogas lícitas como os medicamentos é visto como um
problema menor. Pode não ser. Analgésicos potentes como os opióides podem matar
quando consumidos fora da indicação médica.
Um dos casos mais emblemáticos é o do cantor
Michael Jackson, morto em 2009, aos 50 anos. Segundo as investigações, Jackson
era dependente de analgésicos – entre eles, os opióides. Volta e meia surge a
notícia de alguma celebridade de Hollywood que se deu muito mal por causa do
abuso desses remédios. No ano passado, foi a vez do ator Zac Efron.
Os opióides são uma ferramenta
importantíssima no arsenal médico. São eles que aliviam dores intensas como
aquelas provocadas pelo câncer, pelos politraumatismos e pelas queimaduras
graves. O uso deveria ser altamente restrito, mas os controles existentes têm
se mostrado falhos.
Há quem compre esses remédios de forma
ilegal pela internet. Ou consiga uma receita de forma ilícita. Ou use os
comprimidos receitados para um parente. Um mercado negro estimula o uso
recreativo.
“Quem procura essas drogas com essa intenção
faz isso por causa do efeito euforizante”, diz o neurocirurgião Claudio
Fernandes Corrêa, coordenador do Centro de Dor e Neurocirurgia Funcional do
Hospital 9 de Julho, em São Paulo. “Esse efeito é variável. Alguns dizem sentir
um prazer físico e mental. Outros têm náuseas e vômitos”, afirma.
É o tipo de diversão que quase sempre acaba
mal. Um dos opióides potentes usados de forma abusiva é a oxicodona, vendida
com o nome comercial de OxyContin. Na medicina, ela é usada para aliviar dores
de intensidade moderada a forte. Por exemplo, nos pós-operatórios, na
neuropatia diabética e em algumas dores crônicas.
“O abuso de oxicodona pode matar”, diz
Corrêa. “Provoca depressão respiratória e a pessoa morre”. A overdose de
medicamentos contra a dor provoca cerca de 15 mil óbitos todos os anos nos
Estados Unidos. Não há dados precisos no Brasil, mas os especialistas dizem que
o uso recreativo no país é menos comum. “Algo como um caso no Brasil para cada
dez casos nos Estados Unidos”, diz Corrêa.
Atualmente, os comprimidos de oxicodona
disponíveis no Brasil podem ser quebrados. Isso facilita o uso abusivo. Se for
esmagado, o comprimido vira um pó que pode ser inalado. Misturado a um
solvente, pode ser injetado na veia.
A boa notícia é que o fabricante pretende
lançar em breve uma nova tecnologia que pode reduzir o problema. Assim que a
Anvisa liberar o registro da nova formulação (o que pode acontecer ainda neste
semestre) os comprimidos em circulação no Brasil serão feitos especialmente
para não quebrar.
O princípio ativo continua o mesmo. Ainda
que alguém consiga quebrar o comprimido, restarão pedras grandes que não podem
ser inaladas. Se alguém colocar um solvente, o produto vira um gel que não pode
ser injetado.
“Essa tecnologia não vai encarecer o
produto. A oxicodona será vendida pelo mesmo preço”, diz Andréa Naves, diretora
médica da Mundipharma Brasil. “A versão anterior vai deixar de ser fabricada”.
Essa mesma tecnologia foi lançada nos
Estados Unidos em 2010. Ajudou a reduzir os casos de abuso de oxicodona. Os
dependentes parecem ter migrado para outras drogas.
Quem são as pessoas que abusam de drogas
lícitas? Por que fazem isso? Por que precisam delas? Essa é a questão central
que ainda não foi atacada. Cabe à sociedade olhar para ela e gerar a
transfomação necessária.
“Quem abusa de opióides parece buscar uma
fuga da realidade”, diz Corrêa. “São pessoas aparentemente sem grandes
problemas, às vezes até bem-sucedidas na profissão, mas que precisam desse tipo
de fuga”.
É preciso acabar com a ilusão de que pílulas
aliviam toda e qualquer dor. Contra as dores da alma, elas nada podem fazer.
Alguns incômodos nascem na mente e se manifestam no corpo. Nesses casos, os
comprimidos podem ajudar. Mas a causa da dor vai continuar onde sempre esteve.
Corpo e mente funcionam juntos. Eles têm
limites. Não passam incólumes em caso de sobrecarga. Quando o fardo fica pesado
demais, a gente tropeça e cai. Sábio é quem aproveita a queda para respirar. O
chão é o melhor conselheiro. Depois é juntar os cacos e recomeçar. A vida é
isso e talvez essa seja a graça dela.