“O
Brasil não está para Carnaval nem para Copa”
O obstetra Thomaz Gollop e o bloco dos
descontentes
O bloco dos descontentes com os rumos das
políticas de saúde no Brasil ganhou mais um integrante declarado. É o obstetra
Thomaz Gollop, professor de genética médica da Universidade de São Paulo. Ele
critica a recente portaria do Ministério da Saúde que mudou as regras sobre
aconselhamento genético.
Ela é parte da política nacional para atendimento de
pacientes com doenças raras no SUS. Cerca de 80% dessas doenças têm caráter
genético. Estima-se que 15 milhões de brasileiros tenham algum tipo de doença
rara. Pelas novas regras, biólogos e outros profissionais sem formação médica
não poderão aconselhar as famílias sobre os riscos de males genéticos.
Gollop é
mais conhecido por seu empenho de décadas pela descriminalização do aborto. Ele
coordena o Grupo de Estudos sobre o Aborto (GEA), entidade que reúne médicos,
juristas, antropólogos, biólogos e outros profissionais. O objetivo do grupo é
retirar o tema da esfera do crime e abordá-lo sob o prisma da saúde pública.
Nesta entrevista, ele fala sobre os dois assuntos:
ÉPOCA: Por que o sr. diz que o Brasil não
está para Carnaval nem para Copa?
Gollop: Devemos nos manter longe da antiga política
romana do pão e circo. Não defendo a violência ou a agressão a instituições e
pessoas, mas o desejo da população está claro desde junho de 2013. Queremos o
fim da corrupção e a preocupação efetiva dos governos com saúde, educação de
qualidade e segurança. Os indicadores da educação estão progressivamente
piores. A promessa em relação à Copa era de que as cidades-sede tivessem
benefícios em relação à infraestrutura. Não é o que estamos vendo e certamente
não há tempo hábil para que os benefícios se materializem até junho de 2014. É
uma enorme decepção. Mais uma vez fomos enganados pelo poder público.
ÉPOCA: A mais recente polêmica na sua área
de atuação é a portaria do Ministério da Saúde sobre aconselhamento genético.
Ela determina que só os médicos geneticistas, como o sr., podem oferecer esse
serviço. Essa nova regra é benéfica?
Gollop: Essa é uma portaria que me parece ter sido gerada em gabinetes
burocráticos por gente que não percebe quais são as demandas da população
carente. Enfrentamos enormes dificuldades para atender os portadores de doenças
genéticas, especialmente quando elas exigem atendimento de maior complexidade.
Genética clínica e médica é uma área multidisciplinar em todos os países
desenvolvidos do mundo. Quando estagiei na Universidade de Wisconsin no
longínquo ano de 1982, aquele serviço dispunha de enfermeiras, psicólogos,
biólogos, assistentes sociais e médicos. Todos juntos eram responsáveis pelo
atendimento integrado do consulente.
ÉPOCA: Muitos dos benefícios que o
conhecimento sobre biologia molecular trouxe à medicina são resultado do
esforço de profissionais sem formação em medicina. É possível afirmar que os
biólogos sabem mais sobre genética do que os médicos?
Gollop: Os biólogos têm em seu curso de graduação
uma formação em genética humana muito mais profunda do que aquela oferecida na
maioria das escolas médicas do Brasil. Nos anos 80, a biologia molecular, a
genética do câncer e muitas áreas afins eram um sonho. Hoje elas são uma
realidade graças aos esforços de muitos especialistas. Eu mesmo, que sou médico
e fiz mestrado, doutorado e livre-docência no Instituto de Biociências da
Universidade de São Paulo, aprendi muito daquilo que sei com meus professores
biólogos. O Centro de Estudos do Genoma Humano da USP é uma prova viva de que
não podemos prescindir do conhecimento dos biólogos que lá trabalham. Há muitos
exemplos iguais no Brasil: UNICAMP, UFGRS, UFPR etc.
ÉPOCA: O sr. acredita na revogação dessa
portaria?
Gollop: É um absurdo que notáveis especialistas
sejam proibidos, por meio de uma “canetada”, de exercer, cada um em seu campo
de especialidade, suas respectivas atividades. Espero que um mínimo de bom
senso prevaleça e essa portaria seja revogada.
ÉPOCA: Os médicos geneticistas disponíveis
no Brasil serão suficientes para atender os portadores dessas doenças?
Gollop: Os 160 médicos que pertencem à Sociedade Brasileira de Genética
Clínica (eu, entre eles) obviamente não darão jamais conta da demanda. É uma
falácia dizer que o SUS vai fornecer remoção de eventuais pacientes que
necessitem de aconselhamento genético para centros de referência. Imaginar algo
nesse sentido é simplesmente desconhecer as dimensões continentais do Brasil.
ÉPOCA: O Ministério da Saúde informa que
existem no país mais de 240 serviços que podem promover ações de diagnóstico de
doenças genéticas e assistência completa, como a oferta de tratamento adequado
e internação nos casos recomendados. É suficiente?
Gollop: Gostaria de conhecer o elenco desses
serviços. Saber quantos pacientes cada um atende por mês e qual é a demanda
estimada em um país de 200 milhões de habitantes. Não sou sanitarista nem
biólogo geneticista de populações, mas conheço alguns que podem fazer esse
cálculo em minutos. Nos países desenvolvidos, o ônus do cuidado para pessoas
especiais de qualquer natureza recai primordialmente sobre o Estado. Em países
como o Brasil, ele recai principalmente sobre as famílias e instituições
privadas. Exemplos são as APAEs, a AACD, a Fundação do Cego do Brasil, as Casas
André Luiz etc. Nosso Estado é um grande omisso.
ÉPOCA: Outra norma recente, da Agência
Nacional de Saúde Suplementar (ANS), determina que médicos sem especialidade em
genética não poderão mais assinar pedidos de exame de DNA. Qual será o efeito
disso?
Gollop: Quase diariamente alguém me pede para transcrever pedidos e
justificativas para a realização de exames de DNA. Isso só dificulta a vida dos
pacientes. Para quê? Será que os planos de saúde têm interesse em dificultar o
acesso a esses exames dispendiosos? A ANS tornou obrigatória a cobertura desses
exames pelos planos de saúde. Esse direito será respeitado?
ÉPOCA: Para os pacientes do SUS ficou ainda
mais complicado?
Gollop: As pessoas que dependem do SUS precisam gastar com transporte,
perder dia de trabalho e sofrer mais do que o aceitável só para encontrar um
especialista raro. Não faz sentido. Imagine que eu recebesse no consultório uma
idosa com tosse e febre com duração de uma semana. Já pensou se eu tivesse que
encaminhá-la a um pneumologista só para pegar um pedido de radiografia de
tórax? Seria ilógico, assim como é essa história dos pedidos de exame de DNA.
ÉPOCA: O sr. é conhecido, há décadas, pelo
envolvimento em outro importante tema de saúde pública: a discussão sobre a
descriminalização do aborto. Há dois anos, o Ministério da Saúde estudava a
adoção de uma política de redução de danos e riscos para o aborto ilegal. A
ideia era orientar o sistema de saúde para acolher a mulher que estivesse
decidida a se submeter a um aborto clandestino. A polêmica girava em torno da
indicação de métodos abortivos mais seguros. O que aconteceu com essa proposta?
Gollop: Não estou autorizado a falar em nome do
Ministério da Saúde. A única coisa que posso afirmar -- e que pode ser
confirmada pela literatura especializada -- é que no Uruguai, apenas para citar
um exemplo, a mortalidade de mulheres por abortamento inseguro caiu
drasticamente graças a uma política de redução de danos. A queda da mortalidade
foi ainda mais acentuada entre as mulheres mais pobres. Por abortamento
inseguro, entende-se aquele realizado em más condições de higiene e péssima
assistência.
ÉPOCA: O sr. costuma dizer que a
criminalização do aborto é hipócrita e mentirosa. Por quê?
Gollop: O Código Penal vigente, de 1940, é
anacrônico. Não atende às demandas da sociedade moderna. Isso é publicamente
reconhecido. Tanto é verdade que já houve inúmeras comissões de reforma do
Código Penal. Criminalizar o aborto é ineficaz. É uma lei que não é seguida. As
mulheres não mantêm a gravidez por força de lei. Ter filhos e filhas é um
projeto afetivo e de vida de homens e mulheres. Em um Estado Democrático de
Direito não se pode obrigar ninguém a ter filhos ou deixar de tê-los.
ÉPOCA: Na quarta-feira (26), o deputado
federal Assis do Couto (PT-PR) foi eleito presidente da Comissão de Direitos
Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. Couto é integrante da "Frente
Mista Em Defesa da Vida – Contra o Aborto". Ela é composta principalmente
por católicos e evangélicos que são contrários ao aborto. O que pensa sobre
essa escolha?
Gollop: Tenho o maior respeito por todas as religiões e seus dogmas. Fé é
uma questão de direito individual. As leis são uma questão de direito público.
Devem ser efetivas para todos, incluindo as minorias. O Brasil é
constitucionalmente um Estado laico. A laicidade do Estado significa que todas
as religiões são respeitadas e que há uma nítida separação entre Estado e
Igreja (no seu sentido mais amplo). Nos últimos anos temos visto nossos
governantes afastarem-se cada vez mais do princípio do Estado laico. Isso tem
profundos reflexos em outro conceito caríssimo: o da liberdade.