terça-feira, 4 de março de 2014

Brasil, o país de tolos...



“O Brasil não está para Carnaval nem para Copa”

O obstetra Thomaz Gollop e o bloco dos descontentes

O bloco dos descontentes com os rumos das políticas de saúde no Brasil ganhou mais um integrante declarado. É o obstetra Thomaz Gollop, professor de genética médica da Universidade de São Paulo. Ele critica a recente portaria do Ministério da Saúde que mudou as regras sobre aconselhamento genético. 

Ela é parte da política nacional para atendimento de pacientes com doenças raras no SUS. Cerca de 80% dessas doenças têm caráter genético. Estima-se que 15 milhões de brasileiros tenham algum tipo de doença rara. Pelas novas regras, biólogos e outros profissionais sem formação médica não poderão aconselhar as famílias sobre os riscos de males genéticos. 

Gollop é mais conhecido por seu empenho de décadas pela descriminalização do aborto. Ele coordena o Grupo de Estudos sobre o Aborto (GEA), entidade que reúne médicos, juristas, antropólogos, biólogos e outros profissionais. O objetivo do grupo é retirar o tema da esfera do crime e abordá-lo sob o prisma da saúde pública. Nesta entrevista, ele fala sobre os dois assuntos:

ÉPOCA: Por que o sr. diz que o Brasil não está para Carnaval nem para Copa?
Gollop: Devemos nos manter longe da antiga política romana do pão e circo. Não defendo a violência ou a agressão a instituições e pessoas, mas o desejo da população está claro desde junho de 2013. Queremos o fim da corrupção e a preocupação efetiva dos governos com saúde, educação de qualidade e segurança. Os indicadores da educação estão progressivamente piores. A promessa em relação à Copa era de que as cidades-sede tivessem benefícios em relação à infraestrutura. Não é o que estamos vendo e certamente não há tempo hábil para que os benefícios se materializem até junho de 2014. É uma enorme decepção. Mais uma vez fomos enganados pelo poder público.

ÉPOCA: A mais recente polêmica na sua área de atuação é a portaria do Ministério da Saúde sobre aconselhamento genético. Ela determina que só os médicos geneticistas, como o sr., podem oferecer esse serviço. Essa nova regra é benéfica?
Gollop: Essa é uma portaria que me parece ter sido gerada em gabinetes burocráticos por gente que não percebe quais são as demandas da população carente. Enfrentamos enormes dificuldades para atender os portadores de doenças genéticas, especialmente quando elas exigem atendimento de maior complexidade. Genética clínica e médica é uma área multidisciplinar em todos os países desenvolvidos do mundo. Quando estagiei na Universidade de Wisconsin no longínquo ano de 1982, aquele serviço dispunha de enfermeiras, psicólogos, biólogos, assistentes sociais e médicos. Todos juntos eram responsáveis pelo atendimento integrado do consulente.

ÉPOCA: Muitos dos benefícios que o conhecimento sobre biologia molecular trouxe à medicina são resultado do esforço de profissionais sem formação em medicina. É possível afirmar que os biólogos sabem mais sobre genética do que os médicos?
Gollop: Os biólogos têm em seu curso de graduação uma formação em genética humana muito mais profunda do que aquela oferecida na maioria das escolas médicas do Brasil. Nos anos 80, a biologia molecular, a genética do câncer e muitas áreas afins eram um sonho. Hoje elas são uma realidade graças aos esforços de muitos especialistas. Eu mesmo, que sou médico e fiz mestrado, doutorado e livre-docência no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, aprendi muito daquilo que sei com meus professores biólogos. O Centro de Estudos do Genoma Humano da USP é uma prova viva de que não podemos prescindir do conhecimento dos biólogos que lá trabalham. Há muitos exemplos iguais no Brasil: UNICAMP, UFGRS, UFPR etc.

ÉPOCA: O sr. acredita na revogação dessa portaria?
Gollop: É um absurdo que notáveis especialistas sejam proibidos, por meio de uma “canetada”, de exercer, cada um em seu campo de especialidade, suas respectivas atividades. Espero que um mínimo de bom senso prevaleça e essa portaria seja revogada.

ÉPOCA: Os médicos geneticistas disponíveis no Brasil serão suficientes para atender os portadores dessas doenças?
Gollop: Os 160 médicos que pertencem à Sociedade Brasileira de Genética Clínica (eu, entre eles) obviamente não darão jamais conta da demanda. É uma falácia dizer que o SUS vai fornecer remoção de eventuais pacientes que necessitem de aconselhamento genético para centros de referência. Imaginar algo nesse sentido é simplesmente desconhecer as dimensões continentais do Brasil.

ÉPOCA: O Ministério da Saúde informa que existem no país mais de 240 serviços que podem promover ações de diagnóstico de doenças genéticas e assistência completa, como a oferta de tratamento adequado e internação nos casos recomendados. É suficiente?
Gollop: Gostaria de conhecer o elenco desses serviços. Saber quantos pacientes cada um atende por mês e qual é a demanda estimada em um país de 200 milhões de habitantes. Não sou sanitarista nem biólogo geneticista de populações, mas conheço alguns que podem fazer esse cálculo em minutos. Nos países desenvolvidos, o ônus do cuidado para pessoas especiais de qualquer natureza recai primordialmente sobre o Estado. Em países como o Brasil, ele recai principalmente sobre as famílias e instituições privadas. Exemplos são as APAEs, a AACD, a Fundação do Cego do Brasil, as Casas André Luiz etc. Nosso Estado é um grande omisso.

ÉPOCA: Outra norma recente, da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), determina que médicos sem especialidade em genética não poderão mais assinar pedidos de exame de DNA. Qual será o efeito disso?
Gollop: Quase diariamente alguém me pede para transcrever pedidos e justificativas para a realização de exames de DNA. Isso só dificulta a vida dos pacientes. Para quê? Será que os planos de saúde têm interesse em dificultar o acesso a esses exames dispendiosos? A ANS tornou obrigatória a cobertura desses exames pelos planos de saúde. Esse direito será respeitado?

ÉPOCA: Para os pacientes do SUS ficou ainda mais complicado?
Gollop: As pessoas que dependem do SUS precisam gastar com transporte, perder dia de trabalho e sofrer mais do que o aceitável só para encontrar um especialista raro. Não faz sentido. Imagine que eu recebesse no consultório uma idosa com tosse e febre com duração de uma semana. Já pensou se eu tivesse que encaminhá-la a um pneumologista só para pegar um pedido de radiografia de tórax? Seria ilógico, assim como é essa história dos pedidos de exame de DNA.

ÉPOCA: O sr. é conhecido, há décadas, pelo envolvimento em outro importante tema de saúde pública: a discussão sobre a descriminalização do aborto. Há dois anos, o Ministério da Saúde estudava a adoção de uma política de redução de danos e riscos para o aborto ilegal. A ideia era orientar o sistema de saúde para acolher a mulher que estivesse decidida a se submeter a um aborto clandestino. A polêmica girava em torno da indicação de métodos abortivos mais seguros. O que aconteceu com essa proposta?
Gollop: Não estou autorizado a falar em nome do Ministério da Saúde. A única coisa que posso afirmar -- e que pode ser confirmada pela literatura especializada -- é que no Uruguai, apenas para citar um exemplo, a mortalidade de mulheres por abortamento inseguro caiu drasticamente graças a uma política de redução de danos. A queda da mortalidade foi ainda mais acentuada entre as mulheres mais pobres. Por abortamento inseguro, entende-se aquele realizado em más condições de higiene e péssima assistência.

ÉPOCA: O sr. costuma dizer que a criminalização do aborto é hipócrita e mentirosa. Por quê?
Gollop: O Código Penal vigente, de 1940, é anacrônico. Não atende às demandas da sociedade moderna. Isso é publicamente reconhecido. Tanto é verdade que já houve inúmeras comissões de reforma do Código Penal. Criminalizar o aborto é ineficaz. É uma lei que não é seguida. As mulheres não mantêm a gravidez por força de lei. Ter filhos e filhas é um projeto afetivo e de vida de homens e mulheres. Em um Estado Democrático de Direito não se pode obrigar ninguém a ter filhos ou deixar de tê-los.

ÉPOCA: Na quarta-feira (26), o deputado federal Assis do Couto (PT-PR) foi eleito presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. Couto é integrante da "Frente Mista Em Defesa da Vida – Contra o Aborto". Ela é composta principalmente por católicos e evangélicos que são contrários ao aborto. O que pensa sobre essa escolha?
Gollop: Tenho o maior respeito por todas as religiões e seus dogmas. Fé é uma questão de direito individual. As leis são uma questão de direito público. Devem ser efetivas para todos, incluindo as minorias. O Brasil é constitucionalmente um Estado laico. A laicidade do Estado significa que todas as religiões são respeitadas e que há uma nítida separação entre Estado e Igreja (no seu sentido mais amplo). Nos últimos anos temos visto nossos governantes afastarem-se cada vez mais do princípio do Estado laico. Isso tem profundos reflexos em outro conceito caríssimo: o da liberdade.

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