Aventuras
na História
As
gigantes rivais: Atenas e Esparta
Conhecidas como arqui-inimigas, não
teriam o mesmo impacto na história se não estivessem ligadas por séculos. Suas
rivalidades - e alianças - ajudaram a desenhar o mundo como o conhecemos
Nunca um rei espartano tinha sido tão
humilhado. Depois de passar fome e sede e aguentar um calor dos diabos por
quase três dias, o soberano Cleômenes e sua guarda pessoal tiveram de pôr o
rabo entre as pernas, entregar suas armas e deixar Atenas. Não seria exagero
dizer que essa era a primeira grande vitória de uma invenção ateniense que
ainda ia dar muito trabalho aos espartanos, a democracia – e, que ironia, o
próprio rei de Esparta é que tinha tornado isso possível.
Até aí você não deve estar surpreso.
Afinal, todo mundo aprende que as duas cidades-estados mais poderosas da antiga
Grécia eram inimigas, e não podiam ser mais diferentes entre si. Os atenienses
valorizavam a arte e a literatura, brigavam por participação popular no governo
e eram grandes navegantes. Os espartanos achavam que homem que é homem fala
pouco, louvavam a obediência acima de tudo e ficavam de perna bamba só de ver
um navio.
Acontece, porém, que as relações
entre Atenas e Esparta estão longe de ter sido tão simples. Que o digam os
filósofos, escritores e políticos atenienses que não escondiam sua admiração
pelos rivais do sul. Durante a guerra dos gregos contra os persas, a partir de
480 a.C., as duas cidades comandaram lado a lado a resistência ao invasor,
Esparta em terra e Atenas no mar. Sob certos aspectos, pode-se mesmo afirmar
que os espartanos foram pioneiros nas reformas políticas que depois fariam a
fama de Atenas, aumentando a participação dos cidadãos comuns nas decisões do
governo.
Foram primeiro os conflitos de interesse (a supremacia sobre as outras
cidades gregas e o controle do comércio com a Ásia), e só depois as diferenças
ideológicas entre democracia ateniense e rigidez espartana, que acabaram
levando a uma baita briga entre as cidades, na qual a Grécia inteira afundou.
Separadas
no nascimento
Embora a origem de ambas seja misteriosa,
parece certo que os atenienses chegaram primeiro. Eles já ocupavam a península
de Ática desde o período micênico (antes do século 13 a.C.). Não é à toa que
eles costumavam se considerar autóctones, isto é, eles achavam que seus
antepassados haviam nascido por ali mesmo.
Por volta de 700 a.C., pelo menos,
toda a região, composta por assentamentos rurais relativamente distantes uns
dos outros, já se constituía numa unidade política comandada por Atenas. O solo
pobre produzia trigo, uva e azeitona e fornecia a argila para produzir a boa
cerâmica, que logo se tornou um dos principais artigos de exportação.
Já em Esparta todo mundo sabia que
era recém-chegado. Os espartanos eram dórios, um dos quatro principais grupos
étnicos em que se dividiam os gregos (aqueus, jônios e eólios eram os outros) e
chegaram ao Peloponeso (sul da península grega) vindos do noroeste, depois do
fim do período micênico. Eles derrotaram os antigos habitantes e transformaram
alguns em vassalos.
Outros, os hilotas, não tiveram tanta sorte: viraram
escravos e tinham de cultivar as terras dos cidadãos espartanos. Até por volta
de 700 a.C., o domínio se estendia apenas pela Lacônia (onde ficava a própria
Esparta), mas uma bem-sucedida expansão para o oeste acabou lhes dando também a
fértil Messênia.
Por muito tempo, acreditou-se que o
subproduto dessa conquista foi a primeira e única revolução da história de
Esparta. Uma minoria de nobres teria abocanhado a maioria das terras da
Messênia. Os cidadãos mais pobres se revoltaram e conseguiram redistribuir a
terra e obtiveram o direito a vetar as decisões dos dois reis (sim, havia dois
deles em Esparta) e da Gerúsia, ou Senado. “Mas uma equipe inglesa que publicou
seus achados sobre a Lacônia no ano passado sugere que essa Esparta austera
talvez tenha surgido mais tarde, por volta de 540 a.C.”, diz o historiador José
Francisco Moura, da Universidade Veiga de Almeida, no Rio de Janeiro.
Apesar da incerteza quanto à data, o
fato é que as mudanças em Esparta brotaram dos mesmos problemas que
atormentavam Atenas nos séculos 7 e 6 a.C. Ali também só uma minoria de
cidadãos, de origem nobre, podia exercer os principais cargos públicos.
Os
homens livres, mas pobres, tendo de se virar com pedaços de terra que mal davam
para o seu sustento, viviam sob a ameaça da escravidão por dívidas. As reformas
do político e poeta Sólon (por volta de 590 a.C.) acabaram com essa prática e
permitiram que pessoas ricas de origem plebeia entrassem na política, mas não
foram suficientes para acabar com as tensões sociais. Quem se aproveitou disso
foi Pisístrato, que assumiu o poder na cidade.
O governo do tirano até que conseguiu
trazer um pouco de paz às terras atenienses, mas bastou que ele morresse para
que a cidade voltasse às turras, com seus filhos Hípias e Hiparco brigando
juntos para se manter no poder. É aí que entra Cleômenes, um dos reis de
Esparta. “Até então, parece que havia pouco contato entre as cidades.
Nem mesmo
cerâmica ateniense foi encontrada em Esparta, ou vice-versa”, afirma Moura. A
cerâmica era uma espécie de saquinho plástico do mundo antigo, que transportava
de azeitonas a lixo e, na época, peças atenienses já podiam ser encontradas na
Itália e nas cidades gregas da Ásia. No entanto, por volta de 520 a.C., Esparta
havia se tornado a potência dominante do sul da Grécia, à frente da chamada
Liga do Peloponeso.
Os espartanos passaram a ter interesses mais amplos e, além
do mais, tinham fama de não tolerar tiranos. Que tal unir o útil ao agradável e
restaurar o governo legítimo em Atenas – um governo que seria eternamente
agradecido (e, talvez, subordinado) a Esparta?
Foi o que Cleômenes fez em 510 a.C.,
botando Hípias para correr. Porém, as lutas na cidade não cessaram. Em meio a
uma guerra civil, quem estava levando a melhor era Clístenes, um membro da
nobreza, que propunha uma lista de reformas que, na prática, criava uma democracia.
O rei de Esparta não gostou da idéia e se dispôs a derrubar o novo regime em
favor de um amigo ateniense, Iságoras. Mas a flecha saiu para o lado errado:
embora conseguisse tomar a Acrópole, sede do poder ateniense, Cleômenes não
contava com a resistência do povo comum, que o cercou e acabou forçando-o à
rendição.
Inimigo
comum
Vinte anos depois da ascensão da
democracia em Atenas e da derrota de Cleômenes, as duas potências tiveram de
colocar as diferenças de lado, para enfrentar um problema maior. Liderado pelo
rei Xerxes, o Império Persa – provavelmente a primeira superpotência da
história – lançou um ataque maciço contra a Grécia, e Atenas e Esparta
decidiram resistir. Graças a sua aliança com quase todas as cidades do
Peloponeso, os espartanos ainda eram os mais poderosos dos gregos, mas sua
força só era realmente respeitável em terra.
Os persas, no entanto, atacavam
por terra e por mar, e no oceano a frota ateniense foi fundamental. Mesmo
assim, a influência espartana era tamanha que o comando da frota grega também
ficou nas mãos deles, ao menos no nome.
Por alguns anos, a parceria foi um
sucesso. Em 480 a.C., a frota unida dos gregos esmagou as forças persas perto
da ilha de Salamina, na Ática, e um ano depois o regente espartano Pausânias completou
o serviço em terra, na batalha de Platéia.
A caça virou caçador: os atenienses
e o rei espartano Leutiquides avançaram para as cidades gregas da Ásia e lá
venceram a frota persa outra vez, em 478 a.C. Nesse momento, porém, os
espartanos, desacostumados ao papel de potência marítima, deixaram que Atenas
continuasse a missão de libertar os gregos asiáticos da Pérsia.
“No fim das
contas, os gregos deveram sua libertação não apenas a Esparta, mas
principalmente a uma Atenas que Cleômenes tinha criado por engano, e que fizera
de tudo para destruir”, afirma W.G. Forrest, historiador da Universidade de
Oxford e autor do livro A History of Sparta (“Uma História de Esparta”, inédito
em português).
Cada
um para o seu lado
Ao longo do século 5 a.C., Atenas se transformou
na principal potência marítima da região. A princípio, muitas das cidades
gregas aceitaram se aliar a ela, mas, aos poucos, o que era uma liga de
alianças acabou virando um império. Para José Francisco Moura, cidades como
Corinto, que fazia parte da Liga do Peloponeso e também tinha interesses
marítimos, acabaram levando Esparta a entrar em conflito com Atenas.
As duas gigantes ficaram frente a
frente na chamada Guerra do Peloponeso, em 432 a.C. A princípio, os atenienses
conseguiram escapar do pior dominando os mares e se refugiando atrás de suas
muralhas.
A captura de centenas de soldados espartanos no próprio Peloponeso
chegou até a instaurar uma paz passageira entre os rivais. Mas Atenas perdeu a
maior parte da frota num ataque desastrado na costa da atual Itália, e os
espartanos aproveitaram para contra-atacar. Dessa vez financiados por um
inusitado aliado, os persas, eles possuíam uma frota respeitável.
O conflito terminou com a vitória de
Esparta em 404 a.C. Mas nenhum dos dois lados saiu realmente vencedor. Atenas
perdeu os navios que lhe tinham restado e as muralhas que defendiam a cidade e,
em Esparta, o impacto da guerra foi ainda maior. Apesar da vitória, a sociedade
espartana desmoronou – as riquezas vindas do ex-império ateniense exacerbaram
as diferenças sociais entre os espartanos.
Na cidade, a concentração de terras
voltou com tudo, e o número de homens com direitos de cidadania, que formavam o
coração do Exército espartano, diminuiu muito. É que só os homens que podiam
contribuir financeiramente para as refeições comunais do Exército eram
considerados cidadãos plenos, e muitos espartanos tinham se tornado pobres
demais para isso. Ao ser esmagado em Leuctra pelos soldados da cidade de Tebas,
em 370 a.C., o Exército de Esparta não contava com muito mais que mil soldados.
Por algum tempo, até a metade do
século 4, Tebas se tornou o poder dominante da Grécia, ao lado de uma Atenas
recuperada da guerra e ainda democrática. Esparta tinha virado carta fora do
baralho, para todos os efeitos: perdeu até a Messênia (os tebanos proclamaram a
independência da região). Mas uma nova força estava surgindo no tabuleiro: o
rei Filipe, da Macedônia, pai de Alexandre, o Grande. Em 338 a.C., ele
exterminou as forças combinadas de Atenas e Tebas, submetendo-as e acabando com
a independência helênica.