O
delírio da cesariana
Nos hospitais privados, 88% dos bebês
nascem por cirurgia. As operações agendadas criam uma geração de quase
prematuros. Essas e outras revelações do maior estudo sobre parto já realizado
no Brasil
O brasileiro nasce mal. Em uma frase,
essa é a síntese da maior pesquisa sobre parto já realizada no país. A pesquisa
Nascer no Brasil está sendo divulgada pela Fiocruz e pelo Ministério da Saúde
numa coletiva de imprensa que começou agora no Rio de Janeiro. Esta coluna
antecipa o resultado completo e analisa os dados.
Foram entrevistadas 23.894 mil
mulheres atendidas em maternidades públicas, privadas ou conveniadas ao Sistema
Único de Saúde (SUS). Os dados foram coletados entre fevereiro de 2011 e outubro
de 2012 em 266 hospitais de 191 municípios. Todas as capitais foram incluídas,
além de cidades do interior de todos os Estados.
O elevado índice brasileiro de
cesarianas não dá sinais de declínio. Todos os anos, quase um milhão de
mulheres são submetidas a um parto cirúrgico, sem indicação médica adequada. A
cesariana foi realizada em 52% dos nascimentos. Nos hospitais privados, 88% dos
bebês nasceram dessa forma. A opção pela cirurgia foi alta (42%) até mesmo em adolescentes.
São números muito distantes da
recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS). Segundo a entidade, partos
cirúrgicos devem ocorrem entre 10% a 15% dos nascimentos. As cesarianas
deveriam ser exceção. Um recurso importante, reservado aos casos em que há
risco para a mãe ou para o bebê.
“Não há justificativas clínicas para
um percentual tão elevado no Brasil”, diz a epidemiologista Maria do Carmo
Leal, coordenadora do estudo. “Essas cirurgias expõem as mulheres e os bebês a
riscos desnecessários e aumentam os gastos com saúde”.
Quase 70% das entrevistadas desejava
ter um parto vaginal no início da gravidez, mas poucas foram apoiadas nessa
decisão no decorrer da gestação. Segundo a pesquisadora, a mudança não pode ser
explicada pelo surgimento de problemas e complicações em todos os casos. Muitos
obstetras preferem agendar cesarianas por uma questão de conveniência ou
convicção.
Não é raro encontrar, na classe
média, mulheres que mudam de médico cinco vezes até conseguir fazer o
acompanhamento da gestação com um profissional que valoriza o parto normal.
Essa dificuldade levou ao fenômeno crescente das mães que optam por ter seus
filhos em casa, com a ajuda de enfermeiras. Não é uma opção livre de riscos,
assim como toda internação hospitalar.
“Os médicos têm responsabilidade no
alto índice de cesarianas, mas não só eles”, diz Maria do Carmo. “Muitas
mulheres acham que a cirurgia é um método seguro e confortável. Dá até para
programar a data da festa”, afirma. “Elas precisam entender quais são os riscos
dessa decisão”.
O
medo do parto normal
Entre as mulheres que escolheram a
cesariana desde o início, a principal razão apontada no estudo foi o medo da
dor. “Isso ocorre porque o parto normal oferecido no Brasil ainda é muito
ruim”, afirma Maria do Carmo.
No Reino Unido, país reconhecido pelo
incentivo ao parto vaginal, as mulheres ficam livres durante o trabalho de
parto. São estimuladas a andar, podem subir e descer escadas quando se sentem
confortáveis para fazer isso, recebem massagens, entram numa banheira.
“No Brasil, colocam um cateter na
veia com oxitocina (hormônio que acelera o nascimento) e deixam a pessoa
deitada”, afirma a pesquisadora. “É um desrespeito ao corpo, aos sentimentos e
à vontade da mulher”. Muitas pedem anestesia porque o parto dói. O SUS oferece
esse recurso. O que falta é o anestesista...
Uma
epidemia de quase prematuros
O agendamento das cirurgias antes do
trabalho de parto, tão comum nos hospitais privados, leva a outro problema: a
elevada proporção de bebês no limite da prematuridade. No estudo, 35% das
crianças nasceram com 37 ou 38 semanas de gestação. Não são considerados
prematuras segundo a OMS, mas poderiam ganhar mais peso e maturidade se
tivessem a chance de chegar a 39 semanas ou mais de gestação
Trata-se de uma epidemia silenciosa.
Em geral, esses bebês recebem alta sem nenhuma complicação grave aparente. Isso
pode dar a falsa impressão de que nascer antes de 39 semanas não trará nenhum
impacto negativo. No entanto, alguns estudos demonstram que essas crianças são
mais frequentemente internadas em UTI’s durante os primeiros dias de vida. Essa
prática eleva o risco de complicações e morte.
O desenvolvimento de um bebê guarda
alguma semelhança com o de uma planta. Não há como saber em que exato momento
ele estará maduro. Alguns ficam prontos com 37 ou 38 semanas. Outros com 40.
Outros, só com 42. Há uma variação biológica individual.
Nas cesáreas agendadas, os bebês
podem ser retirados do útero antes da hora certa. Na vida intrauterina, as
últimas semanas são dedicadas ao trabalho de acabamento mais fino. É quanto a
pele é preparada para se adaptar à pressão atmosférica. Os pulmões adquirem a
capacidade de abrir. A tolerância ao barulho e à luz se desenvolve.
“Retirar um bebê do útero antes da
hora é uma violência. É como arrancar uma planta da terra. A fruta nunca vai
ficar doce”, diz Maria do Carmo. Não se sabe se essa prática tão disseminada
pode provocar danos futuros, mas alguns estudos sugerem que podem ocorrer
perdas cognitivas e outras habilidades.
A proporção de nascimentos prematuros
(antes de 37 semanas) encontrada no estudo Nascer no Brasil foi de 11,5%. É uma
proporção 60% superior à verificada na Inglaterra e no País de Gales.
Outros
dados importantes:
•
Cerca de 30% das entrevistadas não desejaram a gestação. 9% ficaram
insatisfeitas com a gravidez e 2,3% relataram ter tentado interrompê-la.
• 60% das gestantes começaram a fazer
o acompanhamento pré-natal tardiamente, após a 12a semana gestacional. Cerca de
um quarto delas não recebeu o número mínimo de seis consultas recomendado pelo
Ministério da Saúde.
• 41% das mulheres não sabiam em qual
maternidade teriam o bebê. A Lei 11.634, de 2007, determina que toda gestante
tem o direito de saber, durante o pré-natal, onde o filho nascerá.
• Quase um quinto das mulheres
peregrinou por hospitais durante o trabalho de parto. Elas não conseguiram ser
admitidas na primeira maternidade porque faltavam médicos, materiais e
equipamentos.
• Práticas inadequadas continuam a
ser aplicadas aos recém-nascidos saudáveis na sala de parto. A aspiração de
vias aéreas superiores ocorreu em alto percentual. Variou de 62% no Nordeste a
77% no Sudeste.
• O índice de mortalidade materna é
incompatível com o nível de desenvolvimento social e econômico do país. Em
2010, ocorreram 62 óbitos maternos para 100 mil nascidos vivos.
• A depressão foi detectada em 26%
das mães entre 6 e 18 meses após o parto. Grupos nos quais a doença foi mais
frequente: mulheres de baixa condição social e econômica; pardas e indígenas;
mulheres sem companheiro; mães que não desejavam a gravidez ou já tinham três
ou mais filhos.
Com esse diagnóstico detalhado, as
discussões sobre a excessiva medicalização da vida no Brasil podem ocorrer
sobre bases mais sólidas. Nascer é um ato biológico. Pelos mais diversos
desvios, interesses e mudanças culturais, ele foi transformado em ato médico e
em ato cirúrgico.
“Alguns médicos dizem que somos
hippies porque defendemos o parto normal, mas não estamos inventando nada nem
perseguindo ninguém”, diz Maria do Carmo. A redução dos partos cirúrgicos é uma
tendência nos países ricos. Até recentemente, o índice de cesáreas nos Estados
Unidos era de 33%. Graças a uma recomendação do Colégio Americano de
Obstetrícia, a taxa caiu para 26%.
O
Brasil segue na contramão. Nosso índice assustador (88% nos hospitais privados
!!!) é o exemplo mais evidente do mau uso de um importante recurso
médico. Excesso de intervenções não significa bom acesso à medicina. Significa
desperdício subdesenvolvido e delírio coletivo.