Israel,
Hamas e um mundo com os miolos amolentados
Com as besteiras que as redes sociais multiplicam,
o atual conflito na Faixa de Gaza inspira os mais bizarros verbetes de uma
enciclopédia de humanismo de botequim
ONTEM Terrorista mascarado do grupo Setembro Negro,
durante o sequestro de atletas israelenses na Olimpíada de Munique, em 1972. Na
época, muitos no Ocidente viram o terror como “ato legítimo de resistência” à
opressão de Israel (Foto: Keystone/Getty Images)
Não é de agora que o mundo demonstra estar com os
miolos amolentados. Os sintomas são antigos. Basta entrarem em cena as relações
sangrentas entre Israel e alguma facção palestina. Lembro-me do Setembro Negro,
em 1972, na Olimpíada de Munique. Atletas israelenses foram sequestrados e
assassinados, num atentado que muitos, no Ocidente, qualificaram de “ato
legítimo de resistência” de um povo politicamente machucado pelo vizinho
opressor. A opressão persiste.
Mas o que
está agora em jogo é uma tosca polarização que nos transporta, mais uma vez, a
uma visão unilateral dos direitos. Para muitos, é aceitável que o Hamas atinja
Israel por meio do terrorismo, mas imperdoável que Israel se defenda com a
esmagadora superioridade militar que construiu.
Não é só uma tragédia para os
envolvidos na região. Ela nos atinge a todos, pela banalização inédita de
besteiras que as redes sociais multiplicam e ampliam. O atual conflito na Faixa
de Gaza inspira os mais bizarros verbetes de uma enciclopédia de humanismo de
botequim.
A morte de civis em Gaza é condenável? Certamente,
sobretudo quando, desde 8 de julho, chegam por vezes a uma centena por dia. E
as crianças? Mais funesto ainda, com irrestrita indignação por cada uma delas.
Mas não é correto postar nas redes fotografias mórbidas e apócrifas, em que um
soldado apoia o coturno sobre o ventre de um bebê e traz à mão uma metralhadora
soviética que os israelenses não têm. Ou então pequenos cadáveres enfileirados,
em verdade registrados na Guerra Civil da Síria. É um jogo de vale-tudo nessa
pinacoteca de horrores.
Genocídio? Falar disso é um descalabro histórico.
Israel procura destruir a capacidade ofensiva do Hamas, não aniquilar a nação
palestina. Se fosse o caso, bombardearia a Cisjordânia e invadiria a Jordânia e
o Líbano, para não deixar nenhum sobrevivente na diáspora. Não há, em Gaza,
rigorosamente nada a ver com o que aconteceu na Bósnia, em Ruanda ou no Camboja
– para não falar em nazistas contra judeus ou turcos contra armênios.
HOJE Túnel construído na fronteira entre Gaza e
Israel, usado para contrabando de armas, segundo o Exército israelense. Israel
procura aniquilar a capacidade ofensiva do Hamas, não a nação palestina (Foto:
Jack Guez/AP)
A dimensão mais séria está, no entanto, nas
reações em que a crítica a Israel resvala para o mais hediondo antissemitismo.
A incursão por terra israelense virou “coisa de judeu”, caracterizado com a
proverbial “insensibilidade ao sofrimento alheio”. Há dias, numa mensagem no Twitter,
uma boa alma sugeria o confisco dos bens de judeus brasileiros, para pressionar
o governo israelense ao cessar-fogo. Por que não colocá-los em campos de
concentração no Vale do Jequitinhonha ou na periferia de Macapá?
Para os mais escolarizados, é incorreção política
ressuscitar o mais antigo e arraigado dos preconceitos. Israel virou nessa
narrativa dissimulada uma espécie de metáfora palpável do judaísmo. Lá se vão,
de braços dados, antissionismo e antissemitismo, num passeio em que Benjamin
Netanyahu e o dono da lojinha da esquina se expõem à mesma chuva verbal de
tomates podres.
Vejamos com um pouco mais de recuo. O Hamas retomou
com atraso a bandeira dos hectolitros de sangue abandonada pela OLP. É um grupo
conservador, partidário de uma ditadura islâmica. Desinformados por aqui o
enxergam como um núcleo “progressista” de resistentes plantado no Oriente
Médio.
Versão bem mais radical da Irmandade Muçulmana
egípcia, o Hamas surgiu em 1987. Propunha-se a transformar a Palestina numa
versão sunita daquilo que os xiitas construíram na República Islâmica do Irã:
um espaço sectário de intolerância política e religiosa.
Fortaleceu-se nas
eleições palestinas de 2006 e tornou-se majoritário em Gaza – território
devolvido por Israel –, com base numa plataforma de pilares éticos, por
rejeitar a corrupção interna da OLP. Fazia sentido. A casta burocrática de
dirigentes, formada ao redor de Yasser Arafat, estava pervertida em meio à
grande indústria de doações, abastecida sobretudo por fundos sauditas.
Israel não cruzou os braços nem ficou isento. O
Hamas crescia em razão da disputa assimétrica por territórios. A fúria de
assentamentos israelenses na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental reúne hoje 300
mil judeus. Com soberba, eles se instalaram nas melhores terras e drenaram
parte da água, numa região extremamente árida.
Por detrás da ocupação está uma das vertentes do
funcionamento perverso da democracia israelense. É verdade que os
assentamentos começaram com os trabalhistas, logo após a Guerra de 1967. O
plano consistia, então, em construir um cinturão judaico para proteger as
fronteiras.
Com o governo de Benjamin Netanyahu, entretanto a mesma
apropriação territorial tomou outros pretextos. Seu partido, o Likud, incapaz
de garantir sozinho uma maioria parlamentar, aliou-se a obscurantistas partidos
radicais religiosos, que veem Gaza e Cisjordânia como terras sobre as quais os
judeus deveriam ter direito exclusivo.
Um dos protagonistas dessa maluquice é justamente
Avigdor Liberman, líder do partido de extrema-direita Israel Beitenu e hoje, em
histriônico paradoxo, chefe da diplomacia israelense. Liberman é a perfeita
contrapartida de Khaled Meshaal, líder do Hamas, hoje exilado no Catar. Em
lugar do racionalismo que a política herdou do Iluminismo, Meshaal vê o Estado
como estrutura capaz de satisfazer uma demanda teocrática.
Imaginemos, por um exercício de ficção, que Hamas e
Israel tivessem contingentes numericamente compatíveis, a mesma tecnologia
militar e o mesmo poder de fogo. O atual conflito não seria um novo e medonho
exercício da superioridade israelense, já demonstrada em Gaza em 2008 e 2012.
Se derrotado, o país seria varrido do mapa, como poderia ter acontecido nas
guerras de 1967 ou 1973. É uma lógica de sobrevivência, que gera barbaridades
contra as quais a minoria de respeitáveis pacifistas saiu às ruas em Israel. E
em Gaza, já ocorreu alguma passeata palestina contra o terrorismo do Hamas?