Elevador de
serviço e banheiro de empregada
Se um negro quer entrar num prédio, tem de
enfrentar o preconceito contra pobres e contra negros
Todo mundo adora dizer que o Brasil é um país sem
preconceito. Enquanto, nos Estados Unidos, a luta contra o preconceito racial
tomou proporções épicas, aqui sempre se disse que não existia esse tipo de
coisa, ou, talvez, só muito pouco. Seria caso de rir, não fosse sério. Se você
for afrodescendente, já deve saber como é.
Entrar num prédio de classe média
alta é uma aventura. Em geral, indicam a entrada de serviço. Porque, aí, se
acumulam dois preconceitos: um contra a cor da pele, o outro contra a pobreza.
O preconceito contra os pobres também é tremendo. Ninguém manda um médico subir
pelo elevador de serviço, mas o encanador sim. Ambos não prestarão um serviço?
Pela lógica, deveriam ser tratados de maneira igual.
Há alguns anos estive na África, pós-apartheid.
Ahn? Quem disse mesmo que acabou? Fiquei num hotel fantástico. No conjunto,
havia outros hotéis, de categorias diferentes. Em todos, sentados às mesas,
brancos ou orientais. Servindo, negros. O contrário não vi, em nenhuma
situação. Aqui é igual. A gente vai a um restaurante, muitos garçons são de
ascendência africana. Raramente se vê um afro sentado à mesa. Sempre tive minha
desconfiança do sistema de cotas na universidade. Acreditava que o importante era
dar boa formação na escola fundamental e média e tornar os alunos de escolas
públicas tão competitivos quanto os das particulares. Também acho que um
sistema em que o candidato declara a que grupo pertence dá margem a fraudes.
Mas hoje, pensando bem, tem outro jeito? Apesar de tudo, ainda não vejo solução
melhor que as cotas.
A gente vai a bancos, a empresas e, nos cargos de
direção, majoritariamente, vemos brancos. Nas empresas orientais, os próprios
orientais. Em São Paulo, há a Universidade Zumbi dos Palmares, mantida com
dificuldade, que oferece vagas a afrodescendentes e já conseguiu a cooperação
de bancos, como o Bradesco, para oferecer vagas a seus formandos. É uma forma
de integração. Mas quantas existem?
O preconceito está arraigado na forma de pensar
nacional. Vejam a planta de boa parte dos apartamentos atuais. Até mesmo os
menores têm o maldito banheiro de empregada. (Que é negra ou pobre – ou os
dois.) Já discuti com um amigo a inutilidade desse banheiro.
– Mas é útil – ele respondeu, surpreso.
– Só me explique: por que a empregada ou a
faxineira não podem usar o banheiro dos patrões? É como se tivessem uma doença
contagiosa, que contamina.
Mas as pessoas continuam preferindo apartamentos
com banheiro de empregada, não? Crianças e adolescentes de colégios caros
costumam hostilizar colegas bolsistas, até os de classe média, que não podem se
vestir como eles e manter o mesmo padrão de vida. E se irritam se o menos rico
tenta disfarçar. Um dia destes, uma garota que conheço comentou, irritada, ao
falar de uma colega.
– Ela tenta fingir, mas sei que é pobrinha. Não é
como nós.
Ser pobre é pecado?
No mesmo colégio, outra aluna, de classe média, faz
questão de descer do carro materno duas quadras antes, por se tratar de um
modelo comum, não de um importado de luxo, como das outras colegas. O pior é
que, quando alguém é tratado de forma diferente, seja pelo biotipo, seja pela
situação financeira, acaba achando que tem mesmo algo errado. Sente-se
inferior. E isso vale também para quem tem comportamento diferente: gays,
lésbicas e até mesmo – é de pasmar – quem gosta de estudar, não vai muito a
baladas, recusa a vida social. Sei por mim mesmo.
Todas as semanas sou
pressionado a comparecer a eventos, como se fosse errado simplesmente querer
ficar comigo mesmo. Judeus também vivem constatando a tal “falta de
preconceito”. Basta algo que envolva os judeus – da construção de um metrô
abortada num bairro de predominância judaica a um acirramento nas questões de
Israel –, o preconceito explode. Como se cada judeu fosse culpado pelos fatos
cotidianos ou pelas decisões de Israel. Basta olhar a internet. O preconceito
solta fogo como um dragão.
No livro A metamorfose, de Franz Kafka, o
personagem principal transforma-se numa barata. Excluído, no quarto, caminha
para o final. Quando acontece, e a família é informada de que se livraram da
barata, a vida segue normalmente.
É assim que o preconceito funciona no Brasil. A
maioria finge que nada acontece, mas mantém um comportamento semelhante ao
daquela família: querem se ver livres, distantes, daquele estranho que, julgam,
deve ser excluído de sua forma de viver.
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