domingo, 24 de agosto de 2014

Ódio com origem religiosa...



Israel, Hamas e um mundo com os miolos amolentados

Com as besteiras que as redes sociais multiplicam, o atual conflito na Faixa de Gaza inspira os mais bizarros verbetes de uma enciclopédia de humanismo de botequim

ONTEM Terrorista mascarado do grupo Setembro Negro, durante o sequestro de atletas israelenses na Olimpíada de Munique, em 1972. Na época, muitos no Ocidente viram o terror como “ato legítimo de resistência” à opressão de Israel (Foto: Keystone/Getty Images)

ONTEM Terrorista mascarado do grupo Setembro Negro, durante o sequestro de atletas israelenses na Olimpíada de Munique, em 1972. Na época, muitos no Ocidente viram o terror como “ato legítimo de resistência” à opressão de Israel (Foto: Keystone/Getty Images)

Não é de agora que o mundo demonstra estar com os miolos amolentados. Os sintomas são antigos. Basta entrarem em cena as relações sangrentas entre Israel e alguma facção palestina. Lembro-me do Setembro Negro, em 1972, na Olimpíada de Munique. Atletas israe­lenses foram sequestrados e assassinados, num atentado que muitos, no Ocidente, qualificaram de “ato legítimo de resistência” de um povo politicamente machucado pelo vizinho opressor.  A opressão persiste. 

Mas o que está agora em jogo é uma tosca polarização que nos transporta, mais uma vez, a uma visão unilateral dos direitos. Para muitos, é aceitável que o Hamas atinja Israel por meio do terrorismo, mas imperdoável que Israel se defenda com a esmagadora superioridade militar que construiu. 

Não é só uma tragédia para os envolvidos na região. Ela nos atinge a todos, pela banalização inédita de besteiras que as redes sociais multiplicam e ampliam. O atual conflito na Faixa de Gaza inspira os mais bizarros verbetes de uma enciclopédia de humanismo de botequim.

A morte de civis em Gaza é condenável? Certamente, sobretudo quando, desde 8 de julho, chegam por vezes a uma centena por dia. E as crianças? Mais funesto ainda, com irrestrita indignação por cada uma delas. 

Mas não é correto postar nas redes fotografias mórbidas e apócrifas, em que um soldado apoia o coturno sobre o ventre de um bebê e traz à mão uma metralhadora soviética que os israelenses não têm. Ou então pequenos cadáveres enfileirados, em verdade registrados na Guerra Civil da Síria. É um jogo de vale-tudo nessa pinacoteca de horrores.

Genocídio? Falar disso é um descalabro histórico. Israel procura destruir a capacidade ofensiva do Hamas, não aniquilar a nação palestina. Se fosse o caso, bombardearia a Cisjordânia e invadiria a Jordânia e o Líbano, para não deixar nenhum sobrevivente na diáspora. Não há, em Gaza, rigorosamente nada a ver com o que aconteceu na Bósnia, em Ruanda ou no Camboja – para não falar em nazistas contra judeus ou turcos contra armênios.

HOJE Túnel construído na fronteira entre Gaza e Israel, usado para contrabando de armas, segundo o Exército israelense. Israel procura aniquilar a capacidade ofensiva do Hamas, não a nação palestina (Foto: Jack Guez/AP)

HOJE Túnel construído na fronteira entre Gaza e Israel, usado para contrabando de armas, segundo o Exército israelense. Israel procura aniquilar a capacidade ofensiva do Hamas, não a nação palestina (Foto: Jack Guez/AP)

A dimensão mais séria está, no entanto, nas rea­ções em que a crítica a Israel resvala para o mais hediondo antissemitismo. A incursão por terra israelense virou “coisa de judeu”, caracterizado com a proverbial “insensibilidade ao sofrimento alheio”. Há dias, numa mensagem no Twitter, uma boa alma sugeria o confisco dos bens de judeus brasileiros, para pressionar o governo israelense ao cessar-fogo. Por que não colocá-los em campos de concentração no Vale do Jequitinhonha ou na periferia de Macapá?

Para os mais escolarizados, é incorreção política ressuscitar o mais antigo e arraigado dos preconceitos. Israel virou nessa narrativa dissimulada uma espécie de metáfora palpável do judaísmo. Lá se vão, de braços dados, antissionismo e antissemitismo, num passeio em que Benjamin Netanyahu e o dono da lojinha da esquina se expõem à mesma chuva verbal de tomates podres.

Vejamos com um pouco mais de recuo. O Hamas retomou com atraso a bandeira dos hectolitros de sangue abandonada pela OLP. É um grupo conservador, partidário de uma ditadura islâmica. Desinformados por aqui o enxergam como um núcleo “progressista” de resistentes plantado no Oriente Médio.

Versão bem mais radical da Irmandade Muçulmana egípcia, o Hamas surgiu em 1987. Propunha-se a transformar a Palestina numa versão sunita daquilo que os xiitas construíram na República Islâmica do Irã: um espaço sectário de intolerância política e religiosa. 

Fortaleceu-se nas eleições palestinas de 2006 e tornou-se majoritário em Gaza – território devolvido por Israel –, com base numa plataforma de pilares éticos, por rejeitar a corrupção interna da OLP. Fazia sentido. A casta burocrática de dirigentes, formada ao redor de Yasser Arafat, estava pervertida em meio à grande indústria de doações, abastecida sobretudo por fundos sauditas.

Israel não cruzou os braços nem ficou isento. O Hamas crescia em razão da disputa assimétrica por territórios. A fúria de assentamentos israelenses na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental reúne hoje 300 mil judeus. Com soberba, eles se instalaram nas melhores terras e drenaram parte da água, numa região extremamente árida.

Por detrás da ocupação está uma das vertentes do funcionamento perverso da democracia israe­lense. É verdade que os assentamentos começaram com os trabalhistas, logo após a Guerra de 1967. O plano consistia, então, em construir um cinturão judaico para proteger as fronteiras. 

Com o governo de Benjamin Netanyahu, entretanto a mesma apropriação territorial tomou outros pretextos. Seu partido, o Likud, incapaz de garantir sozinho uma maioria parlamentar, aliou-se a obscurantistas partidos radicais religiosos, que veem Gaza e Cisjordânia como terras sobre as quais os judeus deveriam ter direito exclusivo.

Um dos protagonistas dessa maluquice é justamente Avigdor Liberman, líder do partido de extrema-direita Israel Beitenu e hoje, em histriô­nico paradoxo, chefe da diplomacia israelense. Liberman é a perfeita contrapartida de Khaled Meshaal, líder do Hamas, hoje exilado no Catar. Em lugar do racionalismo que a política herdou do Iluminismo, Meshaal vê o Estado como estrutura capaz de satisfazer uma demanda teocrática.

Imaginemos, por um exercício de ficção, que Hamas e Israel tivessem contingentes numericamente compatíveis, a mesma tecnologia militar e o mesmo poder de fogo. O atual conflito não seria um novo e medonho exercício da superioridade israelense, já demonstrada em Gaza em 2008 e 2012. 

Se derrotado, o país seria varrido do mapa, como poderia ter acontecido nas guerras de 1967 ou 1973. É uma lógica de sobrevivência, que gera barbaridades contra as quais a minoria de respeitáveis pacifistas saiu às ruas em Israel. E em Gaza, já ocorreu alguma passeata palestina contra o terrorismo do Hamas?

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