Questões
morais
Não é o
comportamento privado dos gays, das mulheres, dos que usam drogas que revolta a
sociedade. É a corrupção
Em visita a um templo evangélico, Aécio Neves,
depois de fervorosas orações, declarou que era “contra o aborto e contra as
drogas”. Como se alguém, afora os que lucram com o aborto ilegal ou os
traficantes, fosse a favor do aborto ou das drogas. Temos consumido anos de
argumentação em debates a respeito da descriminalização da interrupção da
gravidez indesejada ou do fracasso da guerra às drogas. Trata-se de problemas
de saúde pública e de dramas humanos pungentes. Declarações simplistas,
talhadas para o auditório, não diminuem o número de abortos nem abrem caminho
para políticas mais humanas e eficientes de combate às drogas.
O tema da homofobia também saiu do armário nessas
eleições. A homofobia é manifestação de violência corriqueira que, quando não
mata ou fere, envenena com humilhação a vida dos gays. É odiosa e criminosa,
assim como o racismo. O projeto de criminalização da homofobia está travado no
Senado há oito anos. Quem for presidir o país vai poder ignorar os milhões de
manifestantes que desfilam nas grandes e médias cidades em paradas do orgulho
gay? Uma parcela da população não aceita mais que eles sejam assassinados e
ofendidos. Não se trata de uma questão menor.
Margaret Thatcher não acreditava que existisse essa
coisa chamada sociedade. Esquecia que Gandhi, fragílimo e desarmado, expulsou
os ingleses da Índia apoiado nessa coisa que ela achava que não existia. Gandhi
dizia que “uma árvore que cai, faz muito barulho, uma floresta que germina não
se escuta”. Frase oportuna para pensar o Brasil.
Só ouvíamos o barulho espetacular da queda em
desgraça dos velhos partidos políticos enquanto uma nova sociedade germinava.
Esse barulho de árvores mortas que tombam torna inaudível a germinação
silenciosa de uma liberdade de pensamento que foi penetrando na sociedade,
aquela que supostamente não existe, mas viceja em sua imensa diversidade e luta
pelas causas que lhe são caras.
Germinou uma democracia do cotidiano, vivida em
profundidade por cada um, onde o que comanda é a liberdade de escolha, o
direito de decidir sobre a sua própria vida. Os gays sabem que o amor é um
pássaro louco que ninguém sabe onde pousará. As mulheres aprenderam nos embates
duríssimos da vida real que seus corpos lhes pertencem. Agem e defendem-se em
consequência.
As opiniões sobre questões morais se formam, cada vez
mais, em círculos de confiança, exprimindo uma subjetividade trabalhada e
sofrida, insubmissa às palavras de ordem de partidos ou dogmas religiosos. Esse
exercício de liberdade em que a sociedade se autotransforma extravasa da lógica
partidária que tudo submete à luta pelo poder a qualquer preço ou das igrejas
que submetem a espessura da vida real ao fogo dos infernos. É nos fios cruzados
dos círculos de confiança, da capilaridade das redes sociais e da mídia
onipresente que circulam argumentos e deliberações.
As meias palavras não aproveitarão aos candidatos.
As liberdades morais entraram na agenda política e são incontornáveis. Talvez
se esteja subestimando a sociedade, julgando-a mais conservadora do que ela de
fato é. E não se tenha percebido que a expectativa do eleitor, essa sim
esmagadoramente majoritária, é a credibilidade do candidato. Que cada um esteja
realmente por trás do que diz. Honestidade também é uma questão moral.
O Brasil é um Estado laico, garantia sólida contra
o fundamentalismo religioso. Maior garantia ainda é a capacidade do cidadão de
formar a opinião e assumir a autoria da vida. Nisso reside uma nova
postura que não se aplica apenas aos costumes, mas também às escolhas
políticas. Foi essa nova postura que Marina Silva, na sabatina do GLOBO,
destacou: “O mundo está mudando, existe um novo sujeito político que quer papel
de autor.” Filha da floresta, talvez tenha ouvido essa germinação, o que
explicaria a esperança que suscita.
A questão moral que deveria ocupar o proscênio nessa
eleição, porque há anos revolta a sociedade, não é o comportamento privado, dos
gays, das mulheres, dos que usam drogas. É a deslavada corrupção que se
instalou no Brasil como instrumento de governo. Essa sim, obscena e imoral,
porque predadora do dinheiro público, tem que ser criminalizada nos atos e não
apenas em declarações de princípio.
É esse mundo sombrio que o debate sobre moral deve
iluminar. Possam os gays amar em paz. Socorram-se, nas melhores condições, as
mulheres em desespero. Que sejam acolhidos os que se perderam nas drogas.
Guarde-se a prisão para os verdadeiros bandidos.
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