domingo, 14 de setembro de 2014

Convivência a longo prazo...



Muitas visões, uma família

Um episódio terá tantas interpretações quanto o número de integrantes da casa

Filho: Eu acordei muito rápido, mas minha mãe não parava de dizer que eu estava atrasado. Eu precisava arrumar minha mochila e tinha que levar as figurinhas repetidas para trocar. Eram muitas figurinhas. Tinha mais de mil. Peguei emprestado um saco de brinquedos da minha irmã. Coube tudo. Eu liguei a televisão porque, logo de manhã, passa um dos meus desenhos favoritos e eu nunca tinha visto aquele episódio! Nunca! Mas minha mãe deu um ataque do nada. Não deixou eu assistir até o final nem tomar o café da manhã na sala. 

Ela é muito chata. Disse que eu não ia começar logo segunda-feira assistindo TV o dia todo, porque eu tinha visto TV demais no domingo. Quando ela falou "domingo", eu lembrei que devia ter feito o dever com meu pai, mas a gente ficou assistindo futebol. Aí eu abri meu livro rapidinho e comecei a fazer a lição de Matemática, sem ela ver. Mamãe ficou nervosa comigo, porque a TV estava ligada e a lição não estava feita. Ela ficou chateada com o papai também. Daí veio minha irmã pequena e fez um desenho no meu livro de Matemática enquanto eu escovava os dentes. 

Eu não acredito que ela fez isso. Minha irmã é muito chata. E minha mãe brigou com ela também, mas não sei por quê. No  caminho para a escola, minha mãe botou a mão na minha testa e disse assim: eu não acredito que esse menino está com febre! A mão da minha mãe parece um termômetro. Só não apita. Daí ela disse "você não vai à escola", e eu respondi "legal, posso ver televisão então?" Daí minha irmã começou a chorar, dizendo que queria ver televisão também. Ela é muito engraçada, porque ainda não consegue falar televisão. Eu sempre ensino,  mas não adianta nada. A gente deixou minha irmã chorando na escola e, enquanto minha mãe não parava de mexer no celular, eu vomitei. Eca. É muito nojento vomitar, mas eu queria muito ver o fim do meu desenho favorito.

Filha:  A minha mãe me acorda rindo. Ela faz cosquinha e massagem. A minha mãe faz o meu mamá. Eu gosto quando ela bota chocolate. Eu queria todo dia, mas ela diz que tem dia de sabor de fruta. O meu pai foi trabalhar cedo, aí a minha mãe leva a gente na escola. Eu gosto de brincar de manhã com minha mãe. Ela deixa eu ajudar a fazer meu mamá. Quando ela manda a gente se arrumar, eu vou pro banheiro. Sei fazer muita coisa sozinha. Eu sou uma cientista e gosto de brincar de laboratório. Foi o meu irmão que me ensinou. Eu boto num potinho xampu, condicionador, pasta de dente, hidratante, perfume Alfazema e também algum creminho da minha mãe. Eu pego lá no banheiro dela sem ela ver. E misturo tudo. Esse creminho deixa meu cabelo penteadinho. Todo lisinho. É muito especial. Eu fico muito cheirosa para ir à escola. Hoje meu irmão não foi, só eu. Queria ver televisão com meu irmão, mas minha mãe não deixou.


Mãe: Eu gosto de acordar meus filhos fazendo massagem, cosquinha e carinho. Eles acordam bem dispostos, felizes e de alto astral. Mas tem dia que não adianta. Por mais massagem que eu faça, e por mais que eu me esforce, ninguém colabora. Hoje, por exemplo, a  gente estava sem diarista. Eu levantei mais cedo para fazer o café, preparar tudo, mas meu marido já tinha saído. Eu gosto que todo mundo se sente junto à mesa mas tem dia que não rola. Daí, enquanto eu preparava o café da manha, ia no quarto das crianças chamá-las. Massageava a perna de um, a perna da outra, o braço de um, o braço da outra. 

Coçava as costas de um, as costas da outra. O menino nem se mexia. A menor abria o olho, sorria, mas mudava de ideia em seguida, dizendo que precisava dormir.  E chorava. Como era inútil continuar chamando, fui tomar meu café sozinha até ela aparecer, querendo fazer a vitamina comigo. A pia fica toda suja, mas, mesmo com pressa não tenho coragem de dizer não. Ela adora. Enquanto Bia terminava de beber, avisei o mais velho para correr. Fui no quarto deles buscar o uniforme e encontrei um monte de brinquedos da Bia espalhados no chão. "Biaaaa!", gritei, "por que você espalhou seus brinquedos!??"


Quando dei por mim, estávamos atrasados. Catei aquela bagunça porque detesto voltar para casa e ter a impressão de que um furacão passou ali na nossa ausência. Eu queria que, ao bater a porta, todas as coisas voltassem para seus lugares, automaticamente. Gabriel estava vendo desenho na TV! Desliguei e mandei agilizar, entregando o uniforme a ele, enquanto eu penteava e escovava os dentes da pequena. Avisei Gabriel que era só o tempo de eu ficar pronta pra gente sair. Ele tem que colaborar mais, não é possível. Meu cabelo estava um horror mas não dava mais tempo de lavar e secar. Dei um jeito. Quando terminei, flagrei Gabriel fazendo o dever de casa! Na hora de sair! Meu marido tinha ficado de ver isso ontem à noite. Com raiva, mandei o primeiro torpedo do dia:

“Ótimo você não ter feito o dever com o Gabriel. Consegue imaginar a confusão agora?”
Resposta:    : /

Eu disse "Gabriel, agora não dá, vai sem fazer, estamos atrasados e eu tenho uma reunião importante". Da porta, com mochilas na mão, chamei Bia. Ela apareceu com o cabelo colado no couro cabeludo, cheirando a alfazema com menta, ou algo assim, e eu perguntei “Bia, o que aconteceu com seu cabelo?” Aí ela me diz “eu me arrumei também, mamãe. Meu cabelinho fica mais bonito com os creminhos que eu passei não fica?”. Por um instante, pensei em entrar no banho com ela, daí eu lavaria o meu cabelo também. Mas tive que me contentar com a pia para tentar tirar aquele grude, enquanto ela chorava e Gabriel me perguntava quanto era sete vezes sete.

 "Gabriel, você já devia ter decorado isso, meu filho! Não é possível". Depois ele me perguntou quanto era oito vezes sete e, enquanto Bia chorava como se eu a estivesse torturando, gritei 54, 52, aí tive que ouvir dele “Você já devia ter decorado isso, mamãe, é 56”. No caminho, enquanto Bia andava saltando obstáculos imaginários, achei Gabriel muito parado. Botei a mão na testa e, bingo, estava com febre. Genial, pensei, genial essa segunda-feira. Enquanto tentava bolar um plano, avisei que ele não poderia ir à escola, daí ele gritou “eba, vou ver televisão!” e Bia disse “eu também não quero ir” e chorou. Mandei um torpedo rápido para meu marido com o mau humor de quem não sabe o que faz e não tem ajuda de ninguém:

“Gabriel com febre. Não sei o que fazer. “
Resposta dele: “Caramba.”
“Caramba não resolve”, escrevi de volta.  “Tenho reunião”.
Bia chorando, Gabriel me perguntando se podia ver televisão, e eu pensando “esse menino está doente mesmo?
“O que você vai fazer”, me pergunta o marido, por torpedo.
“Não sei”, respondi. “E você, o que você vai fazer?”, retruquei, exalando irritação.
“Sou eu que vou dizer no trabalho de novo que tive um problema com a família ou será que você já contou para o seu chefe que você tem filhos?”. Mandei.
Deixei Bia chorando na sala de aula. Voltei.
“Você está irritada”, diz o último torpedo dele.

Foi quando Gabriel vomitou. Vi o brilho daquele olhar infantil sempre cheio de energia evaporar. “Estou enjoado, mamãe”. "Vai passar", eu disse, "vamos para casa". “Tá ruim...quero ir ao banheiro”. Então eu parei de brigar com meu marido e liguei para o pediatra. "Ele nos receberá mais tarde", aviso ao Gabriel. "Também podemos ver desenho juntos", sugeri, mas o esboço de um sorriso não me convenceu. Mandei uma mensagem. “Amor, Gabriel não tá bem”. Ele respondeu: “Vou sair mais cedo. A culpa não é minha”. Esqueci da reunião.

Pai: Eu saio bem cedo de casa, antes de todo mundo levantar, para não pegar engarrafamento. Meu trajeto é infernal. Tenho também a esperança de chegar mais cedo em casa, mas minha mulher tem razão: a gente só tem hora de entrar. Eu e minha mulher nos revezamos. Tem dias que é tudo comigo, tem dias que é tudo com ela, e tem dias que temos ajuda da empregada. Mas tem dias que a empregada falta, eu tenho reunião, ela também e um filho aparece com febre. Hoje ela acordou da pá virada. 

Ficou irritada porque esqueci o dever. Eu faço sempre. Foi só hoje. A gente assistiu ao jogo juntos, ontem, depois todos jantamos reunidos e quando acabou já era hora das crianças dormirem. De manhã ela me ligou da rua desesperada, porque não podia se atrasar e quase me xingou por que eu perguntei o que ela ia fazer. 

O que eu podia fazer de longe, no exato momento em que o torpedo dela chegou? Nada. A gente não tinha com quem deixá-lo e nem sabia o que havia por trás da febre. Era um rotavírus. Gabriel teve que tomar soro e ficou dois dias internado. Perdeu três quilos. Nosso filho nunca tinha passado por isso. Dormi com ele no hospital e não fui trabalhar. Tem dias que tudo dá errado.

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