Muitas
visões, uma família
Um episódio terá tantas interpretações quanto o
número de integrantes da casa
Filho: Eu acordei muito rápido, mas minha mãe não
parava de dizer que eu estava atrasado. Eu precisava arrumar minha mochila e
tinha que levar as figurinhas repetidas para trocar. Eram muitas figurinhas.
Tinha mais de mil. Peguei emprestado um saco de brinquedos da minha irmã. Coube
tudo. Eu liguei a televisão porque, logo de manhã, passa um dos meus desenhos
favoritos e eu nunca tinha visto aquele episódio! Nunca! Mas minha mãe deu um
ataque do nada. Não deixou eu assistir até o final nem tomar o café da manhã na
sala.
Ela é muito chata. Disse que eu não ia começar logo segunda-feira
assistindo TV o dia todo, porque eu tinha visto TV demais no domingo. Quando
ela falou "domingo", eu lembrei que devia ter feito o dever com meu
pai, mas a gente ficou assistindo futebol. Aí eu abri meu livro rapidinho e
comecei a fazer a lição de Matemática, sem ela ver. Mamãe ficou nervosa comigo,
porque a TV estava ligada e a lição não estava feita. Ela ficou chateada com o
papai também. Daí veio minha irmã pequena e fez um desenho no meu livro de
Matemática enquanto eu escovava os dentes.
Eu não acredito que ela fez isso.
Minha irmã é muito chata. E minha mãe brigou com ela também, mas não sei por
quê. No caminho para a escola, minha mãe
botou a mão na minha testa e disse assim: eu não acredito que esse menino está
com febre! A mão da minha mãe parece um termômetro. Só não apita. Daí ela disse
"você não vai à escola", e eu respondi "legal, posso ver
televisão então?" Daí minha irmã começou a chorar, dizendo que queria ver
televisão também. Ela é muito engraçada, porque ainda não consegue falar
televisão. Eu sempre ensino, mas não
adianta nada. A gente deixou minha irmã chorando na escola e, enquanto minha
mãe não parava de mexer no celular, eu vomitei. Eca. É muito nojento vomitar,
mas eu queria muito ver o fim do meu desenho favorito.
Filha: A
minha mãe me acorda rindo. Ela faz cosquinha e massagem. A minha mãe faz o meu
mamá. Eu gosto quando ela bota chocolate. Eu queria todo dia, mas ela diz que
tem dia de sabor de fruta. O meu pai foi trabalhar cedo, aí a minha mãe leva a
gente na escola. Eu gosto de brincar de manhã com minha mãe. Ela deixa eu
ajudar a fazer meu mamá. Quando ela manda a gente se arrumar, eu vou pro
banheiro. Sei fazer muita coisa sozinha. Eu sou uma cientista e gosto de
brincar de laboratório. Foi o meu irmão que me ensinou. Eu boto num potinho
xampu, condicionador, pasta de dente, hidratante, perfume Alfazema e também
algum creminho da minha mãe. Eu pego lá no banheiro dela sem ela ver. E misturo
tudo. Esse creminho deixa meu cabelo penteadinho. Todo lisinho. É muito
especial. Eu fico muito cheirosa para ir à escola. Hoje meu irmão não foi, só eu.
Queria ver televisão com meu irmão, mas minha mãe não deixou.
Mãe: Eu gosto de acordar meus filhos fazendo
massagem, cosquinha e carinho. Eles acordam bem dispostos, felizes e de alto
astral. Mas tem dia que não adianta. Por mais massagem que eu faça, e por mais
que eu me esforce, ninguém colabora. Hoje, por exemplo, a gente estava sem diarista. Eu levantei mais
cedo para fazer o café, preparar tudo, mas meu marido já tinha saído. Eu gosto
que todo mundo se sente junto à mesa mas tem dia que não rola. Daí, enquanto eu
preparava o café da manha, ia no quarto das crianças chamá-las. Massageava a
perna de um, a perna da outra, o braço de um, o braço da outra.
Coçava as
costas de um, as costas da outra. O menino nem se mexia. A menor abria o olho,
sorria, mas mudava de ideia em seguida, dizendo que precisava dormir. E chorava. Como era inútil continuar
chamando, fui tomar meu café sozinha até ela aparecer, querendo fazer a
vitamina comigo. A pia fica toda suja, mas, mesmo com pressa não tenho coragem
de dizer não. Ela adora. Enquanto Bia terminava de beber, avisei o mais velho
para correr. Fui no quarto deles buscar o uniforme e encontrei um monte de
brinquedos da Bia espalhados no chão. "Biaaaa!", gritei, "por
que você espalhou seus brinquedos!??"
Quando dei por mim, estávamos atrasados. Catei
aquela bagunça porque detesto voltar para casa e ter a impressão de que um
furacão passou ali na nossa ausência. Eu queria que, ao bater a porta, todas as
coisas voltassem para seus lugares, automaticamente. Gabriel estava vendo
desenho na TV! Desliguei e mandei agilizar, entregando o uniforme a ele,
enquanto eu penteava e escovava os dentes da pequena. Avisei Gabriel que era só
o tempo de eu ficar pronta pra gente sair. Ele tem que colaborar mais, não é
possível. Meu cabelo estava um horror mas não dava mais tempo de lavar e secar.
Dei um jeito. Quando terminei, flagrei Gabriel fazendo o dever de casa! Na hora
de sair! Meu marido tinha ficado de ver isso ontem à noite. Com raiva, mandei o
primeiro torpedo do dia:
“Ótimo você não ter feito o dever com o Gabriel.
Consegue imaginar a confusão agora?”
Resposta:
: /
Eu disse "Gabriel, agora não dá, vai sem
fazer, estamos atrasados e eu tenho uma reunião importante". Da porta, com
mochilas na mão, chamei Bia. Ela apareceu com o cabelo colado no couro
cabeludo, cheirando a alfazema com menta, ou algo assim, e eu perguntei “Bia, o
que aconteceu com seu cabelo?” Aí ela me diz “eu me arrumei também, mamãe. Meu
cabelinho fica mais bonito com os creminhos que eu passei não fica?”. Por um
instante, pensei em entrar no banho com ela, daí eu lavaria o meu cabelo
também. Mas tive que me contentar com a pia para tentar tirar aquele grude,
enquanto ela chorava e Gabriel me perguntava quanto era sete vezes sete.
"Gabriel, você já devia ter decorado isso, meu filho! Não é
possível". Depois ele me perguntou quanto era oito vezes sete e, enquanto
Bia chorava como se eu a estivesse torturando, gritei 54, 52, aí tive que ouvir
dele “Você já devia ter decorado isso, mamãe, é 56”. No caminho, enquanto Bia
andava saltando obstáculos imaginários, achei Gabriel muito parado. Botei a mão
na testa e, bingo, estava com febre. Genial, pensei, genial essa segunda-feira.
Enquanto tentava bolar um plano, avisei que ele não poderia ir à escola, daí
ele gritou “eba, vou ver televisão!” e Bia disse “eu também não quero ir” e
chorou. Mandei um torpedo rápido para meu marido com o mau humor de quem não
sabe o que faz e não tem ajuda de ninguém:
“Gabriel com febre. Não sei o que fazer. “
Resposta dele: “Caramba.”
“Caramba não resolve”, escrevi de volta. “Tenho reunião”.
Bia chorando, Gabriel me perguntando se podia ver
televisão, e eu pensando “esse menino está doente mesmo?
“O que você vai fazer”, me pergunta o marido, por
torpedo.
“Não sei”, respondi. “E você, o que você vai
fazer?”, retruquei, exalando irritação.
“Sou eu que vou dizer no trabalho de novo que tive
um problema com a família ou será que você já contou para o seu chefe que você
tem filhos?”. Mandei.
Deixei Bia chorando na sala de aula. Voltei.
“Você está irritada”, diz o último torpedo dele.
Foi quando Gabriel vomitou. Vi o brilho daquele
olhar infantil sempre cheio de energia evaporar. “Estou enjoado, mamãe”.
"Vai passar", eu disse, "vamos para casa". “Tá ruim...quero
ir ao banheiro”. Então eu parei de brigar com meu marido e liguei para o
pediatra. "Ele nos receberá mais tarde", aviso ao Gabriel.
"Também podemos ver desenho juntos", sugeri, mas o esboço de um
sorriso não me convenceu. Mandei uma mensagem. “Amor, Gabriel não tá bem”. Ele
respondeu: “Vou sair mais cedo. A culpa não é minha”. Esqueci da reunião.
Pai: Eu saio bem cedo de casa, antes de todo mundo
levantar, para não pegar engarrafamento. Meu trajeto é infernal. Tenho também a
esperança de chegar mais cedo em casa, mas minha mulher tem razão: a gente só
tem hora de entrar. Eu e minha mulher nos revezamos. Tem dias que é tudo
comigo, tem dias que é tudo com ela, e tem dias que temos ajuda da empregada.
Mas tem dias que a empregada falta, eu tenho reunião, ela também e um filho
aparece com febre. Hoje ela acordou da pá virada.
Ficou irritada porque esqueci
o dever. Eu faço sempre. Foi só hoje. A gente assistiu ao jogo juntos, ontem,
depois todos jantamos reunidos e quando acabou já era hora das crianças dormirem.
De manhã ela me ligou da rua desesperada, porque não podia se atrasar e quase
me xingou por que eu perguntei o que ela ia fazer.
O que eu podia fazer de
longe, no exato momento em que o torpedo dela chegou? Nada. A gente não tinha
com quem deixá-lo e nem sabia o que havia por trás da febre. Era um rotavírus.
Gabriel teve que tomar soro e ficou dois dias internado. Perdeu três quilos.
Nosso filho nunca tinha passado por isso. Dormi com ele no hospital e não fui
trabalhar. Tem dias que tudo dá errado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário