"Você
é trouxa". Por Juliana Doretto
Na 'Visita' de hoje, Juliana, que mora em Lisboa,
se encontra com jovens de boa família e péssima educação
O bumbo da discórdia
Domingo, 6h50. Da manhã. Eu dormia meu justo sono
do fim de semana quando batidas de bumbo e outros mais me acordaram em
sobressalto. Estava em São Paulo.
Olho pela janela: na praça, em frente ao meu
prédio, um grupo de jovens, com gravatas afrouxadas, camisas desabotoadas e
vestidos justos, é responsável pela balbúrdia.
Saíram de alguma festa de formatura e acharam por
bem acordar os moradores da rua perto de sua grande universidade privada.
Barulho ali é comum de madrugada, mas antes das 7 da manhã de um domingo
pareceu-me um pouco demais.
Enfurecida, visto um roupão sobre o pijama e saio
de casa, com chinelo de quarto e cara amassada. O porteiro me olha assustado.
Atravesso a rua, e chamo a atenção, muito educadamente, dos jovens rebeldes sem
causa. “Minha gente, não são nem sete da manhã. Eu trabalhei ontem, estou
cansada...”
Eles estavam revoltados porque algum vizinho
enfurecido como eu resolveu jogar ovos nos moços barulhentos. Acharam que tinha
sido eu. Não, meus queridos: eu seria muito idiota se tivesse lançado ovos
primeiro e conversado depois...
Tudo ia razoavelmente bem até que um dos fulanos
pede, dentro de sua embriaguez matinal, para falar comigo: “Você quer mudar o
sistema? Chama a polícia”. Ao que respondo: “Eu já cansei de chamar a polícia
para conter a bagunça dessa universidade”.
(Parêntesis: há casos absurdos, em que os estudantes
ocupam a rua -- uma via que dá acesso a um importante hospital --, e não deixam
mais nenhum carro passar. Um PM já me disse que eles "não mexem com os
estudantes, porque ali tem muito filho de juiz e advogado”)
Pois bem: estávamos na parte em que disse que já
tinha tentado a polícia inúmeras vezes. E ele então me diz: “Você é trouxa”.
Sabe, caro leitor, paciência tem limite. Mas, em
vez de falar “trouxa é você”, ainda me dispus a falar: “Trouxa é quem acha que
o sistema não pode ser mudado”.
E a coisa esquentou. O menino quis dizer que ele
podia fazer barulho, porque estudava “naquela faculdade grande ali, ó” e que
fazia “pós- graduação”.
Quando respondi que tinha cursado uma universidade
maior que a dele, e pública (o que pouca diferença fazia, porque ninguém é
melhor que ninguém por ter estudado aqui ou ali, mas na hora foi o que
saiu...), choveram vaias e gritos de “Vai casar, seu problema é falta de
homem”.
Nenhum respeito pelo espaço público e pelo direito
do outro. Zero bom senso. Arrogância. Machismo. E, convenhamos, certo
anacronismo, porque “vai casar” foi um pouco demais.
Pela camiseta que alguns traziam por cima das
camisas sociais, via-se que eles serão engenheiros civis. Que projetos farão
esses profissionais? Pensarão nos danos que causarão quando arquitetarem um
shopping center? Tratarão com respeito mulheres que forem suas colegas de
trabalho? Tratarão com respeito os operários, que, ao contrário deles, não
estudaram naquela universidade e não têm pós-graduação?
Pode-se pensar que eles ainda são crianças,
imaturos, que com o tempo entenderão. Posso ser trouxa, mas acho que milagres
não acontecem – pelo menos não assim. Acho que eles continuarão a achar que os
outros – os que querem retidão, os que pedem consideração, os que acolhem o bom
senso -- são os trouxas. E não eles mesmos. Mas, enfim, o que uma trouxa como
eu pode saber, não é?
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