Ato
de ambulante que morreu no metrô foi 'trangressão' a nosso modo covarde de
existir, diz psicanalista
Ambulante Luiz Carlos Ruas foi
espancado depois de tentar defender duas travestis.
Um crime que chocou o país: o
vendedor ambulante Luiz Carlos Ruas morreu na noite de Natal, depois de ser
espancado por dois homens no chão de uma estação de metrô em São Paulo - diante
de dezenas de testemunhas.
Para o psicanalista, professor e
escritor Christian Dunker, Ruas morreu porque não se calou. Ao contrário das
pessoas que viram seu espancamento, Índio, como era conhecido, falou com seus
agressores, tentando impedir que os jovens batessem em duas travestis do lado
de fora da estação. Ao intervir, Índio tornou-se o alvo da violência.
Dias após o assassinato, Alípio
Rogério Belo dos Santos e Ricardo Martins do Nascimento estão presos e devem
ser denunciados por homicídio triplamente qualificado - eles dizem que reagiram
após um deles ser agredido por Ruas com uma garrafada, versão que, segundo o
delegado Osvaldo Nico, "não convence".
Em entrevista à BBC, Dunker, que
ganhou o Prêmio Jabuti pela obra sobre psicologia, psicanálise e comportamento,
classifica o ato do ambulante como uma "transgressão ao nosso modo muito
covarde de existir". Apegadas apenas à letra da lei, diz o psicanalista,
as pessoas não fazem nada além do que se espera delas, ficando em silêncio em
situações de injustiça.
"Diante do violento, a
gente não fala. Isso é uma característica de todos os sistemas de aceleração da
violência: nas corporações, na polícia, dentro das comunidades. Em todos esses
lugares, há uma cultura do silêncio. E quando alguém rompe a lei do silêncio
tem que pagar, como no caso do Índio."
Para psicanalista Christian
Dunker, ato de ambulante para defender duas travestis foi 'heróico'.
Leia a seguir os principais
trechos da conversa.
BBC
Brasil - Por que a morte do Índio chocou tanto os brasileiros?
Christian Dunker - O gesto do
Índio foi trágico, no sentido mais próprio do termo. Ele fez aquilo que todos
nós sabemos que devemos fazer numa situação de violência e não fazemos.
Ele se meteu na briga alheia.
Viu duas travestis sendo atacadas e rompeu essa barreira tácita do silêncio,
que nos envolve, nos acovarda e faz com que a gente sinta permanentemente uma
sensação de impotência diante daquilo que sabemos que está errado. Então, o
gesto do Índio falou por todos nós.
Isso é mobilizador e o torna, de
fato, um grande herói, porque ele faz o que todos nós devíamos fazer, inclusive
aqueles que são profissionalmente responsáveis.
Quando a gente nota que o
sistema de segurança do metrô não agiu a tempo, percebemos essa cegueira, e a
atitude do pequeno corrupto, que é aquele está permanentemente dizendo 'tem
alguém que deve estar encarregado desse problema' e tenta transferir sua
responsabilidade pessoal para o sistema. Muito provavelmente, a equipe do metrô
pensou dessa forma: 'alguém chamou a polícia'.
BBC
Brasil - E o aspecto de gênero nesse caso? Afinal, Índio defendeu duas
travestis de um ataque.
Christian Dunker - Foi uma
violência homofóbica. A gente não conhece (os jovens) e não pode exercer juízos
clínicos, mas vamos considerar uma situação de exibição de virilidade.
Isso costuma ser induzido por
grupos, grupos grandes que se organizam para linchar alguém, e também pelos
pequenos grupos, formados por dois, três. Neles, um incita ao outro a uma
demonstração de virilidade que é, no fundo, exibicionista. 'Preciso ser mais
violento, porque mostro que sou muito macho'.
Assim como, no início do
processo, no ataque homofóbico, há aquele que olha para outra experiência de
gênero e se sente agredido, aquilo toca seu senso de masculinidade. Isso regra
o processo de virilidade, que se torna muito instável. A gente pensa que o
travesti tem dificuldade com sua própria sexualidade, mas no fundo os que
atacam essas pessoas é que têm necessidades muito mais salientes, incontidas.
Homenagem ao ambulante na
estação Dom Pedro II, onde ocorreu a agressão; para entrevistado, crime teve
aspecto homofóbico.
BBC
Brasil - Você disse que o ambulante teve uma ação heróica, mas ele pagou por
isso. O caso não passa uma mensagem que, na nossa sociedade, quem age para
impedir situações de injustiça é punido?
Christian Dunker - Exatamente.
Ele, ao que parece, era uma pessoa pacata, querida, que conhecia as pessoas da
região, inclusive os que foram primeiro agredidos pelos dois jovens.
O ato dele está regido por uma
circunstância que chamamos de contingente. Ele não tinha que intervir, não
tinha nenhuma lei, nada que o obrigasse a fazer aquilo. E, ao mesmo tempo, não
tinha nenhuma circunstância que o impedisse de agir, como se fosse proibido ou
indesejado. É esse espaço no qual a gente pode agir para além da lei, para além
do que as pessoas esperam dos nossos papéis sociais funcionais.
Hoje, cada qual se restringe a
fazer aquilo que se espera dele ou dela. O que Índio representa? Outro tipo de ação, que tem a ver com uma
ligação com as pessoas que passam por aquele lugar.
Índio não chama o responsável,
não fala 'alguém tem que cuidar disso, vou ligar para a polícia'. Ele podia ter
feito isso, mas vai pessoalmente. No fundo, é como se tivesse fazendo uma
transgressão ao nosso modo básico, muito covarde, de existir. Ele ultrapassou
isso, e é o ato dos heróis. É aquilo que chamamos do verdadeiro ato ético, que
está para além da lei instituída.
O Brasil está num impasse ético
e político, porque a gente só consegue pensar em transformações baseadas na
coação da lei. A gente acha que precisa de mais leis, mais polícia, mais
punição, o que agora se voltou contra os dois rapazes. Isso por um lado é
necessário, mas por outro vai obscurecendo a força do ato ético, como foi o do
Índio.
BBC
Brasil - O que a forma como algumas pessoas reagiram ao caso, ameaçando os
agressores, fala sobre as motivações do assassinato? Não é o mesmo tipo de
violência?
Christian Dunker - Esse empuxo
ao linchamento segue a mesma lógica dos dois garotos, a mesma lógica do grupo.
Em grupo, me torno mais corajoso, começo a gritar, a enfrentar. Por quê? Porque
a gente se vê numa posição de vantagem em relação aos dois (agressores).
A gente começa a nutrir
pensamentos do tipo 'tomara que sejam estuprados na prisão', 'tomara que alguém
faça com eles o que fizeram com o Índio'. É um tipo de uso violento da lei, é a
lei de Talião: você foi violento, então espero sejam violentos com você também.
Isso, no fundo, é trair a
memória do Índio, que respondeu numa outra lógica. Esses que estão falando
'vamos linchar' também estão jogando com a lógica do 'alguém tem que fazer
isso'. Estão incitando a violência e no fundo acabam colaborando com esse
ciclo.
BBC
Brasil - Nesse contexto de banalização da violência, como se destaca o modo de
agir do Índio, que, segundos as testemunhas, tentou conversar com os jovens e
não agredi-los?
Christian Dunker - O verdadeiro
ato de combate à violência foi o do Índio que, sozinho, em desvantagem, quis
usar a palavra. É o que está faltando é o que a gente, mesmo num episódio como
esse, não consegue valorizar. Qual é a "arma" que o Índio tinha? A palavra.
Ele foi falar com as pessoas. Ele podia ter algum instrumento de ameaça, mas
não o usou.
A gente desaprendeu a potência simbólica, mediadora, da palavra, porque é só lei contra lei, força contra
força, e aí a violência vai se banalizando na mesma medida em que vai se
silenciando.
Diante do violento, a gente não
fala, não negocia mais com a palavra. Isso é uma característica de todos os
sistemas de aceleração da violência: nas corporações, na polícia, dentro das
comunidades. Em todos esses lugares, o que vai acontecer é uma cultura do
silêncio: não se fala. E quando alguém rompe a lei do silêncio tem que pagar,
como no caso do Índio.
Policiais tentam conter multidão
durante reconhecimento de agressores.
Agressores do ambulante foram
hostilizados durante reconhecimento de testemunhas; para Dunker, agir assim é
'trair memória' de Índio.
BBC
Brasil - Muita gente ficou surpresa com a falta de ação das pessoas que
testemunharam o espancamento, já que o metrô é um espaço movimentado. Essa
inércia tem a ver com a pressa das grandes cidades, com uma apatia crescente na
sociedade, ou possui motivações instintivas, de proteção?
Christian Dunker - Isso é uma
coisa que estudei no meu livro Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma: a demissão do Estado em relação ao espaço
público. É um processo histórico que acontece a partir dos anos 1970, na
ditadura militar, quando o Estado brasileiro percebe que não tem recursos para
civilizar o país inteiro, e se vê impotente.
Então
ele se demite de administrar uma série de áreas públicas: favelas, condomínios
- que ficam em mãos de grupos privados -, prisões.
Eles
se tornaram espaços anônimos, nos quais a gente não sente que aquilo é nosso,
mas que pertence a um grupo. É um grupo que não sabemos quem é, que zela por
aquele espaço sem que a gente os veja.
Isso faz com que um lugar como o
metrô, que devia ser um espaço pelo qual todo mundo se sente um pouco
responsável, se torne apenas uma zona de passagem. Nesse espaço, a regra é:
tenho que ganhar velocidade. Vou usar um iPhone, recolher-me numa espécie de
bolha defensiva, para que nada me perturbe.
Sendo um espaço intervalar, nada
do que acontece ali me diz respeito, tanto que quem reagiu não era alguém que
estava de passagem, era alguém que habitava aquele espaço, que o tinha como
parte de sua comunidade.
O passante perdeu a capacidade
de se sensibilizar com o outro, de mudar a rota para fazer algo que esteja além
do que se espera dele.
Grupo de jovens em escola
ocupada de São Paulo.
Psicanalista diz que uma nova
geração, que hoje tem menos de 20 anos, deve negar a banalização da violência.
BBC
Brasil - Há uma nova geração que está reivindicando a ocupação do espaço
público, e uma relação mais próxima com a cidade - e com os outros. Podemos
acreditar que essa apatia tende a arrefecer no futuro?
Christian Dunker - Hoje há
movimentos de uma nova geração, que tem menos de vinte anos, e é completamente
avessa a tudo isso. Ela gosta de bicicleta, não quer comprar uma casa num
condomínio, mas viajar, quer ocupar escolas, tem uma aversão completa do ódio
como aspecto político e está inventando outras maneiras de lidar com a
diferença.
O contraste que você tem entre a
homofobia de um menino de 16 anos e de um jovem de 25 anos é muito grande.
Porque quem tem hoje 16 anos teve contato com alguma coisa do tipo um coletivo
feminista na escola. Isso é extremamente recente e importante.
Você chegou num ponto de
maus-tratos da diferença que opções orgânicas estão surgindo. É uma geração que
vai por no chinelo a geração pré-condomínio (as pessoas nascidas antes da
explosão dos condomínios no Brasil).