Gente
é descartável?
Emprego,
amizade e até o amor – será que tudo agora tem prazo de validade, como lata de
ervilhas?
Convidado a jantar na casa de uma
amiga, estranhei a falta de sua funcionária de muitos anos, sempre responsável
por delícias gastronômicas. Estranhei. Perguntei pela cozinheira, sempre
sorridente, que eu já cumprimentava com beijinho.
– Ah, demiti.
– Aconteceu alguma coisa?
– Ela passou do prazo de validade.
Chamei outra.
A resposta me arrepiou. Cada vez ouço
mais que alguém “passou do prazo de validade”. A expressão se inseriu no
vocabulário. Como todos os elementos da linguagem, seu significado é maior que
as palavras, simplesmente. Empresas costumam ser severas quanto ao que
consideram como prazo de validade de um funcionário. Em geral, no máximo aos 60
anos, quando não aos 40, o executivo vai para a rua. Mesmo os de alto cargo. O
argumento é sempre o mesmo, como ouvi certa vez de uma diretora de RH.
– A gente precisa renovar.
Alguém de 60 anos ou mais pode ser
papa, presidente da República, e não diretor de departamento? Idade é
necessariamente fator de renovação? Conheço jovens de cabeça fechada. Homens e
mulheres maduros sempre abertos a ideias novas. Empresas, porém, têm esta
política: envelheceu, perdeu. Quando alguém dedicou 20, 30 anos da vida a uma
grande corporação, vai fazer o quê? Inicialmente, o demitido procura novo
trabalho. Com muita frequência, seu currículo é preterido por alguém mais
jovem. Às vezes se propõe a ganhar menos, aceita até uma posição menor. Ainda
tem de ouvir o argumento:
– Achamos que era um cargo pequeno
para você, que não se adaptaria. Merece mais.
Ele ou ela agradece, ganhou um
elogio. E sai desesperado, porque o dinheiro no banco está acabando, o
condomínio do apartamento de luxo, antes fácil de pagar, agora se tornou
altíssimo, os filhos reclamam que querem grana para sair com os amigos, comprar
roupas. Muitas vezes, o demitido monta empresa própria. Um grande erro. Em
geral, acostumado a uma grande corporação, não consegue se virar com sua
pequena empresa, sem estrutura. O dinheiro escoa, porque também não consegue
diminuir o padrão de vida. Já vi o antigo CEO de uma empresa da área elétrica
transformado em motorista de táxi. Como outros, montara a própria empresa,
perdera tudo. Nunca mais conseguiu trabalho. Conheci outro motorista de táxi,
antigo gerente, de porte médio. Ao ser demitido, depois dos 40, foi rápido:
– Vi meus amigos procurando emprego e
batendo com a cara na porta durante um tempão, gastando o Fundo de Garantia, a
grana da demissão. Esperei três meses, não apareceu nada, comprei o táxi e
parti para outra.
Dei dois exemplos, a doméstica e o
executivo, porque isso acontece em todas as classes sociais. As pessoas se
tornaram descartáveis. Muitas vezes, quando entram em crise, por doença,
separação, problemas, enfim, sua produtividade cai. Dão uma resposta indevida,
demonstram nervosismo. O empregador resolve que passou do “prazo de validade”.
No momento em que mais precisam de apoio, perdem o emprego. É difícil.
O mais chocante é que também tenho
ouvido a mesma expressão para definir sentimentos e relações. Um amigo explicou
sua separação.
– Nosso casamento passou do prazo de
validade.
Como é? Então o amor é como uma lata
de ervilhas, que vem com data de vencimento na tampa? Amizade também? Há muito
tempo, quando minha avó Rosa, tão querida, morreu, fui ao enterro. Fiquei até
colocarem o último tijolo no túmulo. De noite, recebi alguns amigos em casa,
bati papo, mas com um nó no estômago, vocês sabem como é. De repente um deles
se saiu com esta:
– Hoje, você está insuportável.
Nunca me senti tão agredido. Levantei
e pedi a todos para saírem.
– Estou insuportável porque minha avó
morreu, e isso dói muito – disse. – É melhor ficar sozinho.
Pediram desculpas, mas insisti para
nos vermos outro dia. Creio que estava chato, irritado, sem sorrisos. Saíram
ofendidos. Hoje, certamente diriam que nosso “prazo de validade” tinha acabado.
Mesmo porque ficamos muito distantes a partir de então. Se eu não estava bem
para participar da alegria alheia, me tornara descartável.
Tratar funcionários, amigos, amores
como se tivessem a durabilidade de um pedaço de bacalhau, no máximo, é uma
crueldade incorporada à vida de boa parte das pessoas. Se você acha que as
pessoas têm prazo de validade, só precisa se fazer uma pergunta. Como agirá
quando alguém disser que chegou o seu?
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