Maomé, o pai do Islã
Ele viveu a maior parte da vida como um mercador
analfabeto que, como tantos outros, conduzia caravanas pelos desertos da
Arábia, no século 6. Aos 40 anos de idade, porém, tornou-se o profeta de uma
religião revolucionária que em menos de 200 anos dominaria metade do mundo.
Na época em que Maomé nasceu, lá pelo ano de 570, a
vida na Península Árabe não era nada fácil. A comida andava escassa e, ao lado
da criação de cabras, da pouca agricultura e do comércio, os saques eram a
forma mais comum de consegui-la. Nessa terra sem lei, onde o roubo de tão
corriqueiro não era punido, as contendas mais sérias acabavam resolvidas na
base do olho por olho e do dente por dente. Quem matava, morria.
Se o criminoso
não fosse encontrado, um parente dele perdia o pescoço. Desprovidas de direitos
ou de poder para competir nesse mundo violento, as mulheres sofriam ainda mais.
Aquelas que escapavam do infanticídio eram entregues em casamento ainda
crianças. Com os homens vivendo e morrendo nos intermináveis conflitos tribais,
aceitar o papel de concubina em troca de comida e proteção era, para as
mulheres, uma forma legítima de sobreviver.
Limitados ao norte pelos bizantinos e ao leste
pelos persas, esses homens e mulheres nômades de origem semita conhecidos como
árabes jamais haviam constituído uma nação unificada, nunca foram além das
diferenças tribais, nem superaram rixas regionais para enfrentarem invasores ou
vizinhos poderosos como sumérios e egípcios, que ocuparam a região ao longo de
mais de 3 mil anos.
“Exceto por algumas cidades e oásis, o clima árido foi
sempre um obstáculo ao estabelecimento de sociedades na Península Árabe, com
95% de sua área ocupada por desertos”, diz John Voll, historiador da
Universidade de Georgetown, em Washington, Estados Unidos e autor de The
History of Islam (“A História do Islã”, inédito em português). “Durante séculos
os árabes viveram do pastoreio e da agricultura incipiente nos poucos lugares
onde a seca lhes dava folga. Outra alternativa era levar caravanas através do
deserto para comercializar com o Egito, a Mesopotâmia e o Golfo Pérsico e de lá
até vale do rio Indo.”
Na época, a sociedade árabe estava dividida em
grandes tribos, que por sua vez tinham subdivisões, os clãs. Maomé era da tribo
dos coraixitas, os bambambãs da cidade de Meca, onde ele nasceu. Sobre sua
infância, sabe-se pouco além de que era órfão de pai e que aos 6 anos perdeu a
mãe. Depois de viver com o avô, que morreria pouco depois, passou à tutela do
tio paterno, Abu Talib, de quem herdou a profissão: negociante.
Meca era um centro comercial para onde convergiam
caravanas vindas da Pérsia e da Síria. Para lá também afluíam peregrinos de
toda a região para visitar o templo da Caaba, um local sagrado já naquela época
– os árabes tinham vários deuses e objetos de adoração, mas nenhum tão
importante como a Pedra Negra de Meca.
Os romeiros, ao lado do comércio, eram a
principal fonte de riqueza da cidade. “Naquela região e naquela época, Meca era
um exemplo único de diversidade cultural. E é bem provável que tal condição
tenha influenciado Maomé, que, até por força de sua profissão, certamente tinha
contato com cristãos, judeus e persas”, afirma Voll.
“Os primeiros relatos sobre Maomé o descrevem como
um sujeito justo e amável, dotado de um agradável senso de humor”, diz o
historiador William Graham, da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.
“Apesar de ser membro de uma tribo poderosa, Maomé pertencia a um clã com poucos
recursos. Chamado de Al Amin, ou ‘o confiável’, aos 25 anos ele tinha fama de
bom administrador”, diz Graham.
Uma dessas qualidades – ou todas elas – chamou
a atenção de Khadija, uma rica viúva dez anos mais velha que ele. O casamento
foi vantajoso para ambos. Tanto que durou. Juntos, eles tiveram seis filhos e,
ao contrário do que era comum na época, Maomé não teve outras esposas enquanto
esteve casado com Khadija.
“A relação dos dois era rara e especial e foi
definitiva para a biografia de Maomé”, afirma Voll. Maomé chegou aos 40 anos
rico, dono de caravanas, cercado por empregados e parentes. Parecia que uma
velhice tranquila se avizinhava. Que nada! Por volta do ano 610, Maomé teve uma
epifania, uma revelação mística. E iniciou uma revolução.
A revelação
Muhammad Ibn Ishaq, que viveu no século 8, foi um
dos primeiros historiadores a fornecer um relato sobre a experiência de Maomé.
Segundo Ishaq, durante um passeio pelo deserto, Maomé teria ouvido chamar seu
nome. A voz se apresentou como Jibril, o mesmo que na tradição judaico-cristã é
o anjo Gabriel. Ao voltar para casa, Maomé tremia. Teria se jogado nos braços
da mulher e pedido para que ela o cobrisse, pois sentia frio. Ao contar a ela o
ocorrido, Maomé teria dito que achava estar delirando. Ainda de acordo com
Ishaq, Khadija levou o marido para conversar com um primo que era cristão e que
concluiu que Maomé havia falado com Alá (nome que em árabe significa “Deus”) e
recebido dele os primeiros versos do Alcorão, o livro que se tornaria sagrado
para seus seguidores.
Relutante, Maomé manteve sua história circunscrita
aos amigos mais próximos e parentes por quase dois anos. Finalmente, convencido
de que ele era o mensageiro de uma nova fé, Maomé iniciou sua pregação. Ele
dizia haver um único deus, Alá, ao qual todos deveriam se submeter (Islam, ou
Islã, em árabe significa submissão).
“Como os profetas bíblicos, ele foi um
reformador que, a partir da crença em um único deus e em nome desse deus,
promoveu uma série de transformações sociais”, diz o historiador americano John
Esposito, da Universidade de Georgetown, autor de mais de 15 livros sobre a
história do Islã. “Ele proibiu o infanticídio, estabeleceu regras para comércio
e um código de ética para a guerra”, afirma Esposito.
A mensagem transformadora de Maomé atraiu muita
gente, principalmente entre a população mais pobre de Meca: jovens, escravos e
homens sem vínculos tribais e peregrinos. Em um mundo onde a morte era
considerada o fim de tudo, ele prometia que os fiéis – pobres ou ricos,
independentemente de tribos ou clãs – teriam uma vida eterna e gloriosa. Dizia,
ainda, que os ricos deveriam distribuir parte de sua riqueza com os pobres e
que aqueles que não se importassem com o bem-estar dos outros seriam julgados
após a morte.
Maomé reconheceu os judeus e cristãos – chamados de “os povos do
livro”, mas se lançou contra a adoração de ídolos pagãos. Como boa parte dos
revolucionários do mundo antigo (para a cronologia ocidental o século 7 faz
parte da Idade Média, mas seguiremos a linha de tempo do mundo muçulmano, que
coloca a fase antes do nascimento de Maomé como pré-história), Maomé teve uma
inspiração religiosa por trás das mudanças que defendeu. “A religião era o
principal – em muitos casos, o único – código de conduta na Antigüidade.
Transformá-la, portanto, sempre foi um meio poderoso de atingir mudanças
sociais, políticas ou econômicas. De Moisés a Jesus, a proposição de um novo
ambiente religioso comumente está ligada à eclosão de processos revolucionários
mais amplos”, diz John Voll.
Segundo Marshall Hoddgson, autor do clássico The
Venture of Islam (“A Aventura do Islã”, inédito no país), as pregações de Maomé
incomodaram os membros da classe dominante, em Meca. Em 616, o líder dos
coraixitas proibiu que qualquer membro da tribo fizesse negócios com Maomé.
Como eles dominavam quase toda a atividade econômica da cidade, isso era o
mesmo que condená-lo à miséria.
Além disso, seus amigos e fiéis, chamados
muslimuus – ou muçulmanos (“aqueles que se submetem”, em árabe), passaram a ser
perseguidos. Alguns biógrafos dizem que o próprio Maomé foi ameaçado. Para
piorar, nessa época ele perdeu a esposa Khadija e o tio Abu Talib, seu
protetor, que ainda era influente entre os coraixitas. Maomé decidiu abandonar
Meca. Em 622, ele e seus amigos foram para Yathreb, um oásis de agricultores a
300 quilômetros de Meca, mais tarde rebatizado de Medina.
A viagem
A saída de Meca, porém, não acalmou os ânimos entre
os líderes da cidade e os seguidores de Maomé. Pelo contrário. Os muçulmanos
passaram a atacar as caravanas de Meca. Em 624, eles emboscaram e venceram o
exército de Meca em Uhud. No ano seguinte, foram derrotados em Badr e perderam
centenas de homens. Em quase uma década, os conflitos foram comuns, até que em
630, depois de resistir durante dois meses à ofensiva inimiga em Medina, Maomé
liderou 3 mil guerreiros num decisivo contra-ataque e tomou Meca quase sem
combates.
Segundo Timothy Winter, professor da Universidade
de Cambridge, na Inglaterra, Maomé foi tolerante com o povo de Meca. “Ele não
perseguiu cristãos nem judeus, permitindo que continuassem a praticar seus
ritos. No entanto, destruiu os ídolos que eram adorados na Caaba”, diz.
Diferentemente de outros religiosos que defenderam
reformas radicais na sociedade em que viviam, Maomé chegou ao poder e teve a
oportunidade de realizar tais transformações. “Ele estabeleceu reformas no
interior das famílias e tribos, dando às mulheres, crianças e jovens direitos
sociais. Os pobres foram beneficiados com a instituição do zakat, uma taxa
recolhida dos mais ricos e distribuída entre eles”, diz o historiador inglês W.
Montgomery Watt em Muhammad, Prophet and Statesman (“Maomé, Profeta e
Estadista”, inédito no Brasil).
Maomé voltou à Medina, mas não usufruiu da
sociedade que acabara de criar: ele morreu em 8 de junho de 632. “Maomé não foi
apenas o fundador de uma religião. Foi um revolucionário, que mudou radicalmente
as condições de vida de seu povo, trazendo unidade política, melhorias
econômicas e justiça social”, afirma William Graham. “Ele tinha grande
habilidade política e transformou completamente as condições de vida de seu
povo, resgatando-o da violência estéril e da desintegração, dando-lhe nova e
orgulhosa identidade”, afirma Karen Armstrong no livro Maomé – Uma Biografia do
Profeta (Companhia das Letras).
Em menos de 200 anos, essa “nova e orgulhosa
identidade” dos seguidores do Islã se espalhou do Himalaia à Europa,
fundindo-se à cultura dos povos que conquistou. Logo, a sociedade árabe se
tornaria a mais desenvolvida de seu tempo, esmerada nas artes, na tecnologia,
na arquitetura, na matemática e na navegação. Uma verdadeira revolução, cujas
repercussões influenciam boa parte do mundo, até hoje.
A pedra que veio do céu
A peregrinação ao santuário da Caaba é um dos
pilares do Islã
O santuário da Caaba, em Meca, virou centro de
peregrinação na Antigüidade graças à Pedra Negra. Não se sabe exatamente quem
construiu um santuário em torno dela, mas é certo que, na época de Maomé, as
peregrinações para lá já aconteciam. Os nômades pré-islâmicos eram politeístas
e adoravam cerca de 360 deuses diferentes.
“A Caaba era tão importante no tempo
de Maomé, que era considerada um centro sagrado de tempos imemoriais”, afirma
William Graham, da Universidade de Harvard. “A tradição islâmica a conecta com
Abraão, mas há quem também a relacione a Adão.”
Segundo os muçulmanos, a pedra
teria sido dada por Alá ao primeiro homem, Adão. Ela era clara, quase branca,
mas os pecados do mundo a tornaram negra. Os cientistas e historiadores, é
claro, têm outra explicação: acreditam que a pedra seja um meteorito, embora
nenhum exogeólogo (especialistas em rochas vindas de outros corpos celestes)
jamais tenha tido a chance de estudá-la. Ainda segundo a crença muçulmana, o
santuário em torno da pedra negra teria sido construído por Abraão, considerado
o pai das religiões monoteístas – judaísmo, cristianismo e islamismo.
“A Caaba
é identificada na tradição religiosa com Abraão. Dessa forma, rezar em direção
a ela é uma forma de enfatizar essa conexão com um deus único”, afirma o
historiador John Voll, da Universidade de Georgetown. A Caaba lembra uma caixa,
tem formato cúbico e cerca de 15 metros de altura. Dentro está guardada a pedra
sagrada.
Segundo a historiadora britânica Karen Armstrong, a antiga prática de
dar sete voltas em torno da Caaba também já existia antes do islamismo e foi
incorporada pela nova religião. “Hoje, a peregrinação ao santuário se
transformou em um dos cinco pilares do Islã e é considerada obrigatória, pelo
menos uma vez na vida, para todo muçulmano que tiver condições físicas e
econômicas”, diz a historiadora inglesa.
Maomé vai às montanhas
E aos vales, planícies, desertos, rios e a todos os
lugares
A expansão muçulmana ocorrida após a morte de Maomé
não tem precedentes na história. Foi rápida e avassaladora. Em menos de um
século, unificados pela fé na mensagem do homem que acreditavam ser um enviado
de Deus, árabes – e seus exércitos – chegaram à Europa. No caminho, a revolução
conquistou e converteu povos africanos, persas e turcos, dominando todo o
Oriente Médio e o norte da África e atingindo o noroeste da Índia.
É verdade
que em alguns lugares a conquista foi efêmera, mas em outros, como na Península
Ibérica, os muçulmanos fundaram uma civilização que durou sete séculos. Na
Europa, os muçulmanos foram barrados somente em 732 na cidade de Poitiers,
atualmente na França, pelas tropas de Carlos Martel.
As cadeias montanhosas
afegãs, o deserto africano e o oceano Índico foram barreiras naturais que
impediram o avanço dos exércitos, mas não da fé. Graças ao intenso deslocamento
dos mercadores muçulmanos, a religião chegou às ilhas que hoje formam a
Indonésia, país onde se encontra a maior população muçulmana do mundo na
atualidade.
1. Meca
Depois de oito anos de brigas entre os coraixitas
de Meca e os muçulmanos de Medina, a cidade onde nasceu Maomé, foi conquistada
pelo próprio, à frente de um exército de 3 mil homens. Por abrigar a Caaba,
desde 624 o local marca o ponto para o qual os islâmicos devem direcionar suas
orações.
2. Damasco
Um dos maiores centros urbanos da época de Maomé, a
cidade que pertencia à Síria bizantina, foi conquistada três anos após a morte
do profeta. Em 661, o quinto califa, Mu’awiyah I (661–680), mudou de Medina
para lá, tornando-a a capital do Império Muçulmano.
3. Jerusalém
Apenas seis anos após a morte de Maomé, os
muçulmanos conquistam a cidade, na época parte do Império Bizantino. Considerada
santa por cristãos e judeus, também é sagrada para os muçulmanos, pois de lá
Maomé teria ascendido aos céus.
4. Alexandria
Depois de resistir por quase cinco meses, a cidade
fundada por Alexandre, o Grande, no Egito, rendeu-se aos exércitos do terceiro
califa, ‘Uthman ibn ‘Affan. Os bizantinos a retomaram três anos depois, mas a
cidade logo voltou ao domínio muçulmano.
5. Isfahan
A partir de 644, as principais cidades da Pérsia
foram conquistadas rapidamente e, em 651, o rei da dinastia sassânida, que
dominava a região, deixou a capital. Depois de se refugiar em diversos cantos
do país, foi assassinado na cidade de Merv.
6. Herat
Além da cidade afegã, outras localidades da Ásia
central foram tomadas por exércitos muçulmanos. As tropas do califa ‘Uthman
chegaram até a província do Sind, no noroeste da Índia. A partir do século 13,
surgiriam reinos muçulmanos na região.
7. Córdoba
Com a ajuda dos berberes africanos,
recém-convertidos ao islamismo, e graças às fraquezas e rupturas do reino dos
visigodos, os muçulmanos invadiram a Europa com facilidade e se instalaram no
território que hoje pertence à Espanha. Dali só seriam expulsos em 1492, depois
de muita luta.
8. Poitiers
Cem anos após a morte de Maomé, os muçulmanos foram
derrotados na Batalha de Poitiers, na atual França, por Carlos Martel, líder
dos francos. A vitória dos europeus interrompeu a expansão do Islã e marcou o
ponto mais setentrional que os seguidores de Maomé já alcançaram.
As mulheres do profeta
E o papel delas no surgimento do islamismo
Quando Khadija morreu, Maomé não ficou sozinho por
muito tempo. Ele se casou rapidinho – e com várias mulheres. “Era um costume da
época ter muitas esposas para consolidar laços tribais e também por atração e
amor”, diz John Esposito, da Universidade de Georgetown. Maomé teria tido pelo
menos 11 mulheres, entre elas viúvas de combatentes muçulmanos que perderam a
vida em batalhas contra Meca e filhas de amigos próximos, que mais tarde se
tornariam os primeiros califas.
Para o historiador John Voll, também de
Georgetown, as esposas de Maomé tiveram um papel efetivo na propagação do
islamismo desde os primeiros momentos da nova fé. Como exemplo disso, ele
lembra que o texto do Alcorão foi totalmente memorizado por uma delas, Hafsa,
que o ditou para os primeiros escribas islâmicos.“Outra delas, Umm Salamah,
conseguiu evitar um motim entre as tropas. Mas coube a Aisha, a predileta, o
papel de conselheira do profeta”, diz Voll.
Aisha era conhecida por falar o que
pensava. Ela era filha de Abu Bakr, sucessor de Maomé como líder dos muçulmanos
e um de seus amigos mais íntimos. Aisha ainda é muito lembrada pela tradição
islâmica por ter sido uma das fontes dos hadiths – os relatos sobre ditos e
ações de Maomé que passaram a ter força de lei depois de sua morte. Segundo
Timothy Winter, da Universidade de Cambridge, as mulheres árabes ganharam um
novo status com o Islã devido ao afeto que Maomé dedicava a elas.
“Cerca de 15%
dos intelectuais medievais eram mulheres. Isso só foi possível porque Maomé
recomendou que todas recebessem educação”, diz. Pela lei islâmica as mulheres
podem se divorciar e conservar seus bens após o casamento, o que não ocorria na
Inglaterra há 100 anos.
Post-Scriptum
Muçulmano sim, fundamentalista não
Abdelwahab Meddeb*
Para compreender o radicalismo atualmente associado
ao islamismo é preciso esquecer os clichês. O fundamentalismo não é compatível
com a teologia e a cultura muçulmanas. No entanto, a preponderância numérica de
muçulmanos como autores da violência lastreada na intolerância religiosa não é
pura coincidência.
Por quê? A resposta pode estar em uma palavra: o wahabismo,
uma violenta corrente do islã que teve origem na Arábia do século 18 e que
ainda hoje é a teologia oficial de muitos Estados do Golfo. Entre outras
doutrinas, os wahabis exigem castigo para os que gostam de música, defendem a
morte para transgressões sexuais, punições para quem ingere álcool e condenam
os que não rezam. Enfim, visões que nunca existiram no tradicional islã
maometano.
Muhammad ibn ‘Abd al-Wahhab (1703-1792) foi o
fundador deste islamismo totalitarista que se espalhou pela Península Arábica
no século 19 sob forma de nacionalismo contra os turcos otomanos. No século 20,
Ibn Saud, príncipe da Arábia, adotou o wahabismo como credo oficial. Osama Bin
Laden é saudita e wahabi, assim como os terroristas suicidas de 11 de setembro.
Professam a mesma crença o líder checheno Smail Basayev e os guerrilheiros
talibãs. Além dos tradicionais alvos de suas sandices, esses senhores fazem
outra vítima: a cultura árabe.
O mundo árabe vive hoje em um deserto cultural. Ser
árabe é ter sentimentos contraditórios. Ao mesmo tempo em que é um orgulho
pertencer a uma civilização de imensa tradição intelectual e criativa, é também
frustrante perceber seu declínio e fracasso.
Não há mais participação dos
países árabes em belas invenções ou em grandes aventures do espírito. Hoje em
dia, sinto-me mal ao ler os modernos escritores de língua árabe. Seus trabalhos
não passam de um arremedo do que é produzido no Ocidente. Não há mais nenhuma
prosa equivalente a As Mil e Uma Noites, não vejo um Proust, Joyce ou Kafka.
Ao declínio cultural soma-se o fracasso científico.
Quando no fim do século 19, no Egito, professores e engenheiros quiseram dar
prosseguimento à obra de seus mestres e refinar a tradução de manuais
científicos franceses, bateram de frente com as autoridades do protetorado
britânico, que decidiram proibir o ensino da ciência em árabe.
A partir daí,
foi interrompido o processo de modernização da línguagem científica em árabe.
Ingenuamente, os árabes pensaram que seria possível reproduzir os mais modernos
bens materiais se mantendo fiéis ao espírito de sua cultura religiosa, que tinha
em péssima conta todas as formas de inovação tidas como prejudiciais ao
espírito da tradição e à sua pureza original.
Em todo o mundo árabe, somente 330 livros são
traduzidos por ano, três vezes menos que na Grécia. A miséria cultural
contrasta com o poder de uma civilização e uma história rica, ainda
inexplorada: existem mais de 4 milhões de manuscritos árabes, contra apenas 60
mil em grego e 400 mil em latim.
Boa parte desses manuscritos não foi estudada
nem sequer publicada. É material suficiente para alimentar gerações de
pesquisadores, poetas e pensadores.
Outro sinal de decadência é a velha visão política
do arabismo. No fim do século 19, a idéia de uma grande nação árabe era tão
promissora que muitos a batizaram de “renascença árabe”.
No entanto, os
articuladores dessa visão eram cristãos. Para eles era importante colocar a
nação em primeiro plano para evitar que a religião fosse fundadora dessa
identidade pan-arábica. Como todos sabemos, o arabismo foi um fracasso, uma
armadilha para ideólogos ingênuos e políticos incompetentes.
É claro que o mundo árabe é capaz de produzir
indivíduos brilhantes, que analisam sua própria história nos institutos de
pesquisa na Europa e nos Estados Unidos. Outros tantos produzem arte em ateliês
e estúdios do Ocidente. Mas é lamentável que essa excelência árabe seja
exercida em diáspora.
O mundo árabe tem um enorme potencial: seu humanismo, um
imenso território, uma língua e uma civilização ricas. Resta encontrar uma
saída política para mostrar ao mundo finalmente que terrorismo e islamismo são
coisas totalmente distintas.
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