domingo, 21 de dezembro de 2014

História...



Maomé, o pai do Islã

Ele viveu a maior parte da vida como um mercador analfabeto que, como tantos outros, conduzia caravanas pelos desertos da Arábia, no século 6. Aos 40 anos de idade, porém, tornou-se o profeta de uma religião revolucionária que em menos de 200 anos dominaria metade do mundo.

Na época em que Maomé nasceu, lá pelo ano de 570, a vida na Península Árabe não era nada fácil. A comida andava escassa e, ao lado da criação de cabras, da pouca agricultura e do comércio, os saques eram a forma mais comum de consegui-la. Nessa terra sem lei, onde o roubo de tão corriqueiro não era punido, as contendas mais sérias acabavam resolvidas na base do olho por olho e do dente por dente. Quem matava, morria. 

Se o criminoso não fosse encontrado, um parente dele perdia o pescoço. Desprovidas de direitos ou de poder para competir nesse mundo violento, as mulheres sofriam ainda mais. Aquelas que escapavam do infanticídio eram entregues em casamento ainda crianças. Com os homens vivendo e morrendo nos intermináveis conflitos tribais, aceitar o papel de concubina em troca de comida e proteção era, para as mulheres, uma forma legítima de sobreviver.

Limitados ao norte pelos bizantinos e ao leste pelos persas, esses homens e mulheres nômades de origem semita conhecidos como árabes jamais haviam constituído uma nação unificada, nunca foram além das diferenças tribais, nem superaram rixas regionais para enfrentarem invasores ou vizinhos poderosos como sumérios e egípcios, que ocuparam a região ao longo de mais de 3 mil anos. 

“Exceto por algumas cidades e oásis, o clima árido foi sempre um obstáculo ao estabelecimento de sociedades na Península Árabe, com 95% de sua área ocupada por desertos”, diz John Voll, historiador da Universidade de Georgetown, em Washington, Estados Unidos e autor de The History of Islam (“A História do Islã”, inédito em português). “Durante séculos os árabes viveram do pastoreio e da agricultura incipiente nos poucos lugares onde a seca lhes dava folga. Outra alternativa era levar caravanas através do deserto para comercializar com o Egito, a Mesopotâmia e o Golfo Pérsico e de lá até vale do rio Indo.”

Na época, a sociedade árabe estava dividida em grandes tribos, que por sua vez tinham subdivisões, os clãs. Maomé era da tribo dos coraixitas, os bambambãs da cidade de Meca, onde ele nasceu. Sobre sua infância, sabe-se pouco além de que era órfão de pai e que aos 6 anos perdeu a mãe. Depois de viver com o avô, que morreria pouco depois, passou à tutela do tio paterno, Abu Talib, de quem herdou a profissão: negociante.

Meca era um centro comercial para onde convergiam caravanas vindas da Pérsia e da Síria. Para lá também afluíam peregrinos de toda a região para visitar o templo da Caaba, um local sagrado já naquela época – os árabes tinham vários deuses e objetos de adoração, mas nenhum tão importante como a Pedra Negra de Meca. 

Os romeiros, ao lado do comércio, eram a principal fonte de riqueza da cidade. “Naquela região e naquela época, Meca era um exemplo único de diversidade cultural. E é bem provável que tal condição tenha influenciado Maomé, que, até por força de sua profissão, certamente tinha contato com cristãos, judeus e persas”, afirma Voll.

“Os primeiros relatos sobre Maomé o descrevem como um sujeito justo e amável, dotado de um agradável senso de humor”, diz o historiador William Graham, da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. “Apesar de ser membro de uma tribo poderosa, Maomé pertencia a um clã com poucos recursos. Chamado de Al Amin, ou ‘o confiável’, aos 25 anos ele tinha fama de bom administrador”, diz Graham. 

Uma dessas qualidades – ou todas elas – chamou a atenção de Khadija, uma rica viúva dez anos mais velha que ele. O casamento foi vantajoso para ambos. Tanto que durou. Juntos, eles tiveram seis filhos e, ao contrário do que era comum na época, Maomé não teve outras esposas enquanto esteve casado com Khadija.

“A relação dos dois era rara e especial e foi definitiva para a biografia de Maomé”, afirma Voll. Maomé chegou aos 40 anos rico, dono de caravanas, cercado por empregados e parentes. Parecia que uma velhice tranquila se avizinhava. Que nada! Por volta do ano 610, Maomé teve uma epifania, uma revelação mística. E iniciou uma revolução.


A revelação

Muhammad Ibn Ishaq, que viveu no século 8, foi um dos primeiros historiadores a fornecer um relato sobre a experiência de Maomé. Segundo Ishaq, durante um passeio pelo deserto, Maomé teria ouvido chamar seu nome. A voz se apresentou como Jibril, o mesmo que na tradição judaico-cristã é o anjo Gabriel. Ao voltar para casa, Maomé tremia. Teria se jogado nos braços da mulher e pedido para que ela o cobrisse, pois sentia frio. Ao contar a ela o ocorrido, Maomé teria dito que achava estar delirando. Ainda de acordo com Ishaq, Khadija levou o marido para conversar com um primo que era cristão e que concluiu que Maomé havia falado com Alá (nome que em árabe significa “Deus”) e recebido dele os primeiros versos do Alcorão, o livro que se tornaria sagrado para seus seguidores.

Relutante, Maomé manteve sua história circunscrita aos amigos mais próximos e parentes por quase dois anos. Finalmente, convencido de que ele era o mensageiro de uma nova fé, Maomé iniciou sua pregação. Ele dizia haver um único deus, Alá, ao qual todos deveriam se submeter (Islam, ou Islã, em árabe significa submissão). 

“Como os profetas bíblicos, ele foi um reformador que, a partir da crença em um único deus e em nome desse deus, promoveu uma série de transformações sociais”, diz o historiador americano John Esposito, da Universidade de Georgetown, autor de mais de 15 livros sobre a história do Islã. “Ele proibiu o infanticídio, estabeleceu regras para comércio e um código de ética para a guerra”, afirma Esposito.


A mensagem transformadora de Maomé atraiu muita gente, principalmente entre a população mais pobre de Meca: jovens, escravos e homens sem vínculos tribais e peregrinos. Em um mundo onde a morte era considerada o fim de tudo, ele prometia que os fiéis – pobres ou ricos, independentemente de tribos ou clãs – teriam uma vida eterna e gloriosa. Dizia, ainda, que os ricos deveriam distribuir parte de sua riqueza com os pobres e que aqueles que não se importassem com o bem-estar dos outros seriam julgados após a morte. 

Maomé reconheceu os judeus e cristãos – chamados de “os povos do livro”, mas se lançou contra a adoração de ídolos pagãos. Como boa parte dos revolucionários do mundo antigo (para a cronologia ocidental o século 7 faz parte da Idade Média, mas seguiremos a linha de tempo do mundo muçulmano, que coloca a fase antes do nascimento de Maomé como pré-história), Maomé teve uma inspiração religiosa por trás das mudanças que defendeu. “A religião era o principal – em muitos casos, o único – código de conduta na Antigüidade. 

Transformá-la, portanto, sempre foi um meio poderoso de atingir mudanças sociais, políticas ou econômicas. De Moisés a Jesus, a proposição de um novo ambiente religioso comumente está ligada à eclosão de processos revolucionários mais amplos”, diz John Voll.

Segundo Marshall Hoddgson, autor do clássico The Venture of Islam (“A Aventura do Islã”, inédito no país), as pregações de Maomé incomodaram os membros da classe dominante, em Meca. Em 616, o líder dos coraixitas proibiu que qualquer membro da tribo fizesse negócios com Maomé. Como eles dominavam quase toda a atividade econômica da cidade, isso era o mesmo que condená-lo à miséria. 

Além disso, seus amigos e fiéis, chamados muslimuus – ou muçulmanos (“aqueles que se submetem”, em árabe), passaram a ser perseguidos. Alguns biógrafos dizem que o próprio Maomé foi ameaçado. Para piorar, nessa época ele perdeu a esposa Khadija e o tio Abu Talib, seu protetor, que ainda era influente entre os coraixitas. Maomé decidiu abandonar Meca. Em 622, ele e seus amigos foram para Yathreb, um oásis de agricultores a 300 quilômetros de Meca, mais tarde rebatizado de Medina.

A viagem
A saída de Meca, porém, não acalmou os ânimos entre os líderes da cidade e os seguidores de Maomé. Pelo contrário. Os muçulmanos passaram a atacar as caravanas de Meca. Em 624, eles emboscaram e venceram o exército de Meca em Uhud. No ano seguinte, foram derrotados em Badr e perderam centenas de homens. Em quase uma década, os conflitos foram comuns, até que em 630, depois de resistir durante dois meses à ofensiva inimiga em Medina, Maomé liderou 3 mil guerreiros num decisivo contra-ataque e tomou Meca quase sem combates.

Segundo Timothy Winter, professor da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, Maomé foi tolerante com o povo de Meca. “Ele não perseguiu cristãos nem judeus, permitindo que continuassem a praticar seus ritos. No entanto, destruiu os ídolos que eram adorados na Caaba”, diz.

Diferentemente de outros religiosos que defenderam reformas radicais na sociedade em que viviam, Maomé chegou ao poder e teve a oportunidade de realizar tais transformações. “Ele estabeleceu reformas no interior das famílias e tribos, dando às mulheres, crianças e jovens direitos sociais. Os pobres foram beneficiados com a instituição do zakat, uma taxa recolhida dos mais ricos e distribuída entre eles”, diz o historiador inglês W. Montgomery Watt em Muhammad, Prophet and Statesman (“Maomé, Profeta e Estadista”, inédito no Brasil).

Maomé voltou à Medina, mas não usufruiu da sociedade que acabara de criar: ele morreu em 8 de junho de 632. “Maomé não foi apenas o fundador de uma religião. Foi um revolucionário, que mudou radicalmente as condições de vida de seu povo, trazendo unidade política, melhorias econômicas e justiça social”, afirma William Graham. “Ele tinha grande habilidade política e transformou completamente as condições de vida de seu povo, resgatando-o da violência estéril e da desintegração, dando-lhe nova e orgulhosa identidade”, afirma Karen Armstrong no livro Maomé – Uma Biografia do Profeta (Companhia das Letras).

Em menos de 200 anos, essa “nova e orgulhosa identidade” dos seguidores do Islã se espalhou do Himalaia à Europa, fundindo-se à cultura dos povos que conquistou. Logo, a sociedade árabe se tornaria a mais desenvolvida de seu tempo, esmerada nas artes, na tecnologia, na arquitetura, na matemática e na navegação. Uma verdadeira revolução, cujas repercussões influenciam boa parte do mundo, até hoje.

A pedra que veio do céu

A peregrinação ao santuário da Caaba é um dos pilares do Islã

O santuário da Caaba, em Meca, virou centro de peregrinação na Antigüidade graças à Pedra Negra. Não se sabe exatamente quem construiu um santuário em torno dela, mas é certo que, na época de Maomé, as peregrinações para lá já aconteciam. Os nômades pré-islâmicos eram politeístas e adoravam cerca de 360 deuses diferentes. 

“A Caaba era tão importante no tempo de Maomé, que era considerada um centro sagrado de tempos imemoriais”, afirma William Graham, da Universidade de Harvard. “A tradição islâmica a conecta com Abraão, mas há quem também a relacione a Adão.” 

Segundo os muçulmanos, a pedra teria sido dada por Alá ao primeiro homem, Adão. Ela era clara, quase branca, mas os pecados do mundo a tornaram negra. Os cientistas e historiadores, é claro, têm outra explicação: acreditam que a pedra seja um meteorito, embora nenhum exogeólogo (especialistas em rochas vindas de outros corpos celestes) jamais tenha tido a chance de estudá-la. Ainda segundo a crença muçulmana, o santuário em torno da pedra negra teria sido construído por Abraão, considerado o pai das religiões monoteístas – judaísmo, cristianismo e islamismo. 

“A Caaba é identificada na tradição religiosa com Abraão. Dessa forma, rezar em direção a ela é uma forma de enfatizar essa conexão com um deus único”, afirma o historiador John Voll, da Universidade de Georgetown. A Caaba lembra uma caixa, tem formato cúbico e cerca de 15 metros de altura. Dentro está guardada a pedra sagrada. 

Segundo a historiadora britânica Karen Armstrong, a antiga prática de dar sete voltas em torno da Caaba também já existia antes do islamismo e foi incorporada pela nova religião. “Hoje, a peregrinação ao santuário se transformou em um dos cinco pilares do Islã e é considerada obrigatória, pelo menos uma vez na vida, para todo muçulmano que tiver condições físicas e econômicas”, diz a historiadora inglesa.

Maomé vai às montanhas
E aos vales, planícies, desertos, rios e a todos os lugares

A expansão muçulmana ocorrida após a morte de Maomé não tem precedentes na história. Foi rápida e avassaladora. Em menos de um século, unificados pela fé na mensagem do homem que acreditavam ser um enviado de Deus, árabes – e seus exércitos – chegaram à Europa. No caminho, a revolução conquistou e converteu povos africanos, persas e turcos, dominando todo o Oriente Médio e o norte da África e atingindo o noroeste da Índia. 

É verdade que em alguns lugares a conquista foi efêmera, mas em outros, como na Península Ibérica, os muçulmanos fundaram uma civilização que durou sete séculos. Na Europa, os muçulmanos foram barrados somente em 732 na cidade de Poitiers, atualmente na França, pelas tropas de Carlos Martel. 

As cadeias montanhosas afegãs, o deserto africano e o oceano Índico foram barreiras naturais que impediram o avanço dos exércitos, mas não da fé. Graças ao intenso deslocamento dos mercadores muçulmanos, a religião chegou às ilhas que hoje formam a Indonésia, país onde se encontra a maior população muçulmana do mundo na atualidade.

1. Meca

Depois de oito anos de brigas entre os coraixitas de Meca e os muçulmanos de Medina, a cidade onde nasceu Maomé, foi conquistada pelo próprio, à frente de um exército de 3 mil homens. Por abrigar a Caaba, desde 624 o local marca o ponto para o qual os islâmicos devem direcionar suas orações.

2. Damasco

Um dos maiores centros urbanos da época de Maomé, a cidade que pertencia à Síria bizantina, foi conquistada três anos após a morte do profeta. Em 661, o quinto califa, Mu’awiyah I (661–680), mudou de Medina para lá, tornando-a a capital do Império Muçulmano.

3. Jerusalém

Apenas seis anos após a morte de Maomé, os muçulmanos conquistam a cidade, na época parte do Império Bizantino. Considerada santa por cristãos e judeus, também é sagrada para os muçulmanos, pois de lá Maomé teria ascendido aos céus.

4. Alexandria

Depois de resistir por quase cinco meses, a cidade fundada por Alexandre, o Grande, no Egito, rendeu-se aos exércitos do terceiro califa, ‘Uthman ibn ‘Affan. Os bizantinos a retomaram três anos depois, mas a cidade logo voltou ao domínio muçulmano.

5. Isfahan

A partir de 644, as principais cidades da Pérsia foram conquistadas rapidamente e, em 651, o rei da dinastia sassânida, que dominava a região, deixou a capital. Depois de se refugiar em diversos cantos do país, foi assassinado na cidade de Merv.

6. Herat

Além da cidade afegã, outras localidades da Ásia central foram tomadas por exércitos muçulmanos. As tropas do califa ‘Uthman chegaram até a província do Sind, no noroeste da Índia. A partir do século 13, surgiriam reinos muçulmanos na região.

7. Córdoba

Com a ajuda dos berberes africanos, recém-convertidos ao islamismo, e graças às fraquezas e rupturas do reino dos visigodos, os muçulmanos invadiram a Europa com facilidade e se instalaram no território que hoje pertence à Espanha. Dali só seriam expulsos em 1492, depois de muita luta.

8. Poitiers

Cem anos após a morte de Maomé, os muçulmanos foram derrotados na Batalha de Poitiers, na atual França, por Carlos Martel, líder dos francos. A vitória dos europeus interrompeu a expansão do Islã e marcou o ponto mais setentrional que os seguidores de Maomé já alcançaram.

As mulheres do profeta

E o papel delas no surgimento do islamismo

Quando Khadija morreu, Maomé não ficou sozinho por muito tempo. Ele se casou rapidinho – e com várias mulheres. “Era um costume da época ter muitas esposas para consolidar laços tribais e também por atração e amor”, diz John Esposito, da Universidade de Georgetown. Maomé teria tido pelo menos 11 mulheres, entre elas viúvas de combatentes muçulmanos que perderam a vida em batalhas contra Meca e filhas de amigos próximos, que mais tarde se tornariam os primeiros califas. 

Para o historiador John Voll, também de Georgetown, as esposas de Maomé tiveram um papel efetivo na propagação do islamismo desde os primeiros momentos da nova fé. Como exemplo disso, ele lembra que o texto do Alcorão foi totalmente memorizado por uma delas, Hafsa, que o ditou para os primeiros escribas islâmicos.“Outra delas, Umm Salamah, conseguiu evitar um motim entre as tropas. Mas coube a Aisha, a predileta, o papel de conselheira do profeta”, diz Voll. 

Aisha era conhecida por falar o que pensava. Ela era filha de Abu Bakr, sucessor de Maomé como líder dos muçulmanos e um de seus amigos mais íntimos. Aisha ainda é muito lembrada pela tradição islâmica por ter sido uma das fontes dos hadiths – os relatos sobre ditos e ações de Maomé que passaram a ter força de lei depois de sua morte. Segundo Timothy Winter, da Universidade de Cambridge, as mulheres árabes ganharam um novo status com o Islã devido ao afeto que Maomé dedicava a elas. 

“Cerca de 15% dos intelectuais medievais eram mulheres. Isso só foi possível porque Maomé recomendou que todas recebessem educação”, diz. Pela lei islâmica as mulheres podem se divorciar e conservar seus bens após o casamento, o que não ocorria na Inglaterra há 100 anos.

Post-Scriptum

Muçulmano sim, fundamentalista não

Abdelwahab Meddeb*

Para compreender o radicalismo atualmente associado ao islamismo é preciso esquecer os clichês. O fundamentalismo não é compatível com a teologia e a cultura muçulmanas. No entanto, a preponderância numérica de muçulmanos como autores da violência lastreada na intolerância religiosa não é pura coincidência. 

Por quê? A resposta pode estar em uma palavra: o wahabismo, uma violenta corrente do islã que teve origem na Arábia do século 18 e que ainda hoje é a teologia oficial de muitos Estados do Golfo. Entre outras doutrinas, os wahabis exigem castigo para os que gostam de música, defendem a morte para transgressões sexuais, punições para quem ingere álcool e condenam os que não rezam. Enfim, visões que nunca existiram no tradicional islã maometano.

Muhammad ibn ‘Abd al-Wahhab (1703-1792) foi o fundador deste islamismo totalitarista que se espalhou pela Península Arábica no século 19 sob forma de nacionalismo contra os turcos otomanos. No século 20, Ibn Saud, príncipe da Arábia, adotou o wahabismo como credo oficial. Osama Bin Laden é saudita e wahabi, assim como os terroristas suicidas de 11 de setembro. 

Professam a mesma crença o líder checheno Smail Basayev e os guerrilheiros talibãs. Além dos tradicionais alvos de suas sandices, esses senhores fazem outra vítima: a cultura árabe.

O mundo árabe vive hoje em um deserto cultural. Ser árabe é ter sentimentos contraditórios. Ao mesmo tempo em que é um orgulho pertencer a uma civilização de imensa tradição intelectual e criativa, é também frustrante perceber seu declínio e fracasso. 

Não há mais participação dos países árabes em belas invenções ou em grandes aventures do espírito. Hoje em dia, sinto-me mal ao ler os modernos escritores de língua árabe. Seus trabalhos não passam de um arremedo do que é produzido no Ocidente. Não há mais nenhuma prosa equivalente a As Mil e Uma Noites, não vejo um Proust, Joyce ou Kafka.

Ao declínio cultural soma-se o fracasso científico. Quando no fim do século 19, no Egito, professores e engenheiros quiseram dar prosseguimento à obra de seus mestres e refinar a tradução de manuais científicos franceses, bateram de frente com as autoridades do protetorado britânico, que decidiram proibir o ensino da ciência em árabe. 

A partir daí, foi interrompido o processo de modernização da línguagem científica em árabe. Ingenuamente, os árabes pensaram que seria possível reproduzir os mais modernos bens materiais se mantendo fiéis ao espírito de sua cultura religiosa, que tinha em péssima conta todas as formas de inovação tidas como prejudiciais ao espírito da tradição e à sua pureza original.

Em todo o mundo árabe, somente 330 livros são traduzidos por ano, três vezes menos que na Grécia. A miséria cultural contrasta com o poder de uma civilização e uma história rica, ainda inexplorada: existem mais de 4 milhões de manuscritos árabes, contra apenas 60 mil em grego e 400 mil em latim. 

Boa parte desses manuscritos não foi estudada nem sequer publicada. É material suficiente para alimentar gerações de pesquisadores, poetas e pensadores.

Outro sinal de decadência é a velha visão política do arabismo. No fim do século 19, a idéia de uma grande nação árabe era tão promissora que muitos a batizaram de “renascença árabe”. 

No entanto, os articuladores dessa visão eram cristãos. Para eles era importante colocar a nação em primeiro plano para evitar que a religião fosse fundadora dessa identidade pan-arábica. Como todos sabemos, o arabismo foi um fracasso, uma armadilha para ideólogos ingênuos e políticos incompetentes.

É claro que o mundo árabe é capaz de produzir indivíduos brilhantes, que analisam sua própria história nos institutos de pesquisa na Europa e nos Estados Unidos. Outros tantos produzem arte em ateliês e estúdios do Ocidente. Mas é lamentável que essa excelência árabe seja exercida em diáspora. 

O mundo árabe tem um enorme potencial: seu humanismo, um imenso território, uma língua e uma civilização ricas. Resta encontrar uma saída política para mostrar ao mundo finalmente que terrorismo e islamismo são coisas totalmente distintas.


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