terça-feira, 8 de abril de 2014

Dinheiro público entrando em bolsos privados...


Capa home - edição 827 (Foto: reprodução)

Propina na Petrobras

As empresas de fachada, as contas em paraísos fiscais, a lista de empreiteiras – e os indícios de corrupção que o ex-diretor Paulo Roberto Costa não conseguiu destruir antes de ser preso

Desde que a Polícia Federal prendeu Paulo Roberto Costa, o ex-executivo mais poderoso da Petrobras, há duas semanas, Brasília não dorme. Dezenas de grandes empresários, entre eles diretores das maiores empreiteiras do país e das gigantes mundiais do comércio de combustíveis, todas com negócios na Petrobras, também não. 

Paulo Roberto Costa era diretor de Abastecimento da Petrobras entre 2004 e 2012. Era bancado no cargo por um consórcio entre PT, PMDB e PP, com o aval direto do ex-presidente Lula, que o chamava de “Paulinho”. Paulo Roberto Costa detém muitos dos segredos da República – aqueles que nascem da união entre o interesse de empresários em ganhar dinheiro público e do interesse de políticos em cedê-lo, mediante aquela taxa conhecida vulgarmente como propina. 

E se Paulo Roberto fosse descuidado e guardasse provas desses segredos? E se, uma vez descobertas pela PF, elas viessem a público? Pois Paulo Roberto guardou. Tentava destruí-las quando a Polícia Federal chegou a sua casa, há duas semanas. Mas não conseguiu se livrar de todas a tempo.

ÉPOCA obteve cópia, com exclusividade, dos principais documentos desse lote. Foram apreendidos nos endereços de Paulo Roberto no Rio de Janeiro, onde ele mora. Esses documentos – e outros que faziam parte da denúncia que levou Paulo Roberto à cadeia e ainda não tinham vindo a público – parecem confirmar os piores temores de Brasília. 

Paulo Roberto e o doleiro Alberto Youssef, também preso pela PF e parceiro dele, acusado de toda sorte de crime financeiro na Operação Lava Jato, eram meticulosos. Guardavam registros pormenorizados de suas operações financeiras, sem sequer recorrer a códigos. Era tudo em português claro, embora gramaticalmente sofrível. Anotavam os nomes de lobistas e empresários, quase sempre os associavam a negócios e a valores em dólares, euros e reais. 

Os registros continham até explicações técnicas e financeiras das operações. Os valores milionários mencionados nos documentos, suspeita a PF – uma suspeita confirmada por três envolvidos ouvidos por ÉPOCA –, referem-se a propinas pagas pelas empresas, nacionais e estrangeiras, que detinham contratos com a área da Petrobras comandada por Paulo Roberto. Os papéis já analisados pela PF (há muitos outros que ainda serão periciados) sugerem que as maiores empreiteiras do país e as principais vendedoras de combustível do planeta pagavam comissão para fazer negócio com a Petrobras.

 ARQUIVO Paulo Roberto Costa, ex-executivo  da Petrobras.  Ele guardava provas de suas transações (Foto: Blenda Souto Maior/DP/D.A Press)
ARQUIVO Paulo Roberto Costa, ex-executivo da Petrobras.  Ele guardava provas de suas transações

Para compreender o esquema, cuja vastidão apenas começa a ser desvendada pela PF, é necessário entender a função desempenhada por cada um dos principais integrantes dele. Como diretor de Abastecimento da Petrobras, Paulo Roberto fechava, entre outros, contratos de construção e reforma de refinarias (do interesse das empreiteiras brasileiras) e de importação de combustível (do interesse das multinacionais que vendem derivados de petróleo). 

Paulo Roberto assinava os contratos, mas devia, em muitos momentos, fidelidade aos três partidos que o bancavam no cargo (PT, PP e PMDB). Paulo Roberto garantia a Petrobras; lobistas como Fernando Soares, conhecido como Fernando Baiano, e Jorge Luz, ligado ao PT e ao PMDB, cujos nomes aparecem nos papéis apreendidos, garantiam as oportunidades de negócio com as grandes fornecedoras da Petrobras – e, suspeita a PF, garantiam também possíveis repasses aos políticos desses partidos. 

Para a PF, a Youssef cabia cuidar do dinheiro. Segundo envolvidos, essa tarefa também cabia a Humberto Sampaio de Mesquita, conhecido como Beto, genro de Paulo Roberto. Ele o ajudava nos negócios e é sócio de uma empresa que tem contrato de R$ 2,5 milhões com a Petrobras. Eram uma espécie de banco do esquema, ao providenciar empresas de fachada para receber as propinas no Brasil e nos paraísos fiscais, ao gerenciar as contas secretas e a contabilidade e ao pagar no Brasil, quando necessário, a quem de direito.

Essa divisão de tarefas funcionou por muito tempo. E, suspeita a PF, enriqueceu essa turma. Entre os documentos que serviram de base para a prisão de Paulo Roberto, ÉPOCA revela com exclusividade as planilhas com pagamentos de grandes empreiteiras brasileiras à MO Consultoria, uma das empresas de fachada de Youssef. 

Foram feitos enquanto Paulo Roberto ainda estava no cargo, celebrando ou renegociando contratos com algumas dessas empreiteiras, responsáveis por construir refinarias no Brasil, notadamente a Abreu e Lima, em Pernambuco.

Além de pagamentos da Camargo Corrêa e da Sanko, que já vieram a público, as planilhas revelam, de acordo com as suspeitas da PF, transferências milionárias de OAS, Galvão Engenharia e Jaraguá. No total, a PF identificou até o momento cerca de R$ 31 milhões em “pagamento com suspeita de ilicitude”. Algumas dessas empreiteiras ganharam grandes contratos nas refinarias enquanto Paulo Roberto era diretor. A Jaraguá, conforme revelou ÉPOCA, foi a maior doadora da campanha dos deputados do PP em 2010.

Em 2012, quando Paulo Roberto foi demitido, tudo mudou. A presidente Dilma Rousseff e a presidente da Petrobras, Maria das Graças Foster, nunca suportaram Paulo Roberto. Segundo interlocutores próximos das duas, ambas enfrentaram dificuldades para apeá-lo do cargo. Para ter uma noção da relevância da Petrobras na política do país, Dilma e Graça não tiveram força suficiente para nomear o sucessor de Paulo Roberto. 

No lugar dele, por indicação do PMDB, ficou José Carlos Cosenza, número dois de Paulo Roberto e homem de sua confiança. Nesse momento, os documentos apreendidos sugerem que o esquema tenha começado a enfrentar problemas. Tal versão é confirmada por cinco pessoas com conhecimento dessas operações, entre integrantes desse grupo, lobistas e deputados que sustentavam Paulo Roberto.

É sob essa luz que podem ser interpretados alguns dos documentos mais valiosos apreendidos pela PF com Paulo Roberto. Trata-se dos relatórios mensais entregues por “Beto” a Paulo Roberto. Para a PF, “Beto” é Alberto Youssef. Segundo outros envolvidos, “Beto” é Humberto, genro de Paulo Roberto. 

Os documentos são uma espécie de extrato de conta-corrente preparado por Youssef, que funciona como um “banquinho”. Em vez de siglas incompreensíveis e taxas abusivas, aparecem neles não apenas valores atribuídos a depósitos e retiradas das contas, mas também o contexto das operações. Procurado por ÉPOCA, Humberto Mesquita afirmou que estava no trânsito e não poderia falar. “Não tenho nada a ver com isso, amigo”, disse.

Os relatórios de 2013 sugerem que “Beto”, seja ele o genro ou o doleiro, e Paulo Roberto gradualmente se afastavam. No mesmo momento, Youssef montava uma nova estrutura financeira para Paulo Roberto no exterior, com empresas de fachada offshore. Youssef buscava fechar contas nos paraísos fiscais que recebiam dinheiro de multinacionais. 

Apesar da saída de Paulo Roberto da Petrobras, contribuições ainda eram pagas – pois alguns dos contratos seguiam valendo. Ao fechar as contas que comandava em nome de Paulo Roberto – e das quais, suspeita a PF, retirava uma comissão –, Youssef montava uma operação independente para Paulo Roberto, com empresas de fachada offshore e outras contas secretas.

Em maio de 2013, segundo o relatório, Youssef ainda comandava quatro contas secretas em conjunto com Paulo Roberto: uma no banco UBS de Luxemburgo; outra no banco Lombard Odier, na Suí­ça; uma terceira no banco Itaú, não se sabe em que país; e a última no banco RBC, nas Ilhas Cayman. 

O relatório não é exato sobre o valor acumulado nessas contas. Somando apenas o saldo de algumas delas com os depósitos pagos naquele momento pelas empresas com negócios na Petrobras, chega-se ao total de US$ 3,7 milhões. 

A conta com maior saldo – US$ 2,42 milhões – está no RBC das Ilhas Cayman. A conta no Itaú referia-se, segundo o relatório, à empreiteira Alusa e tinha saldo de R$ 127.400 em agosto de 2011, quando Paulo Roberto estava na Petrobras. A Alusa firmou contratos de R$ 3,5 bilhões com a Petrobras nos últimos anos. O maior deles, de R$ 1,5 bilhão, foi firmado em 2010. Em 2008, a Alusa fechara um contrato de R$ 966 milhões para fazer obras na Refinaria Abreu e Lima.

 "Extrato" e A empresa (Foto: Carlos Moura/CB/D. A Press)
"Extrato" e A empresa
Segundo “Beto” afirma nos documentos, a conta no UBS de Luxemburgo fora aberta em nome da empresa de fachada BS Consulting, com o propósito principal de receber dinheiro da GB Maritime, empresa que intermedeia o aluguel de navios para a Petrobras – área de Paulo Roberto. Naquele ano, a conta no UBS recebera US$ 560 mil da GB Maritime – o valor variava mês a mês, diz “Beto” nos documentos, em razão dos dias parados dos navios. 

“Beto” afirma que já dissera aos “gregos” que, a partir daquele momento, os depósitos na conta do UBS seriam apenas relativos à parte de Paulo Roberto; o que coubesse ainda a ele deveria ser pago em outra conta. Sugere ainda transferir a BS Consulting para o nome de Paulo Roberto. Quem são os gregos? Um é chamado de “Konstantinos”. O outro de “Georgeus”. 

A PF suspeita – e executivos da Petrobras corroboram essa suspeita – de que se trata de Georgios Kotronakis, um dos diretores da GB Maritime, que já trabalhou na Petrobras, e do pai dele, o cônsul honorário da Grécia no Brasil há mais de 30 anos, Konstantinos Kotronakis.

Konstantinos afirma que conheceu Paulo Roberto há seis anos, devido aos negócios da Petrobras com armadores gregos. “Inclusive fui muitas vezes à Petrobras tratar de navios, é tudo normal. Tenho de incentivar negócios entre Brasil e Grécia”, diz. “O diretor costumava ir a cada dois anos a um evento de armadores de navios na Grécia.”

De acordo com os registros de “Beto”, a conta no UBS de Luxemburgo também recebia dinheiro da Glencore Trading, uma das maiores vendedoras de derivados de petróleo do mundo. A Petrobras compra muito dela. Naquele mês de maio, o depósito da Glencore, segundo o relatório, foi módico: US$ 9.973,29. 

“Só houve um negócio realizado”, escreveu “Beto”. A Petrobras também compra muito do combustível vendido no Brasil da Trafigura, a maior empresa independente de vendas de petróleo e minério do mundo. Ela tem escritório em 58 países e faturou em 2013 o equivalente a US$ 113 bilhões. No ano passado, seu lucro foi de US$ 2,2 bilhões, resultado influenciado pelos bons negócios que mantém no Brasil.

Os volumes atribuídos à Trafigura no relatório são bem maiores. Na posição consolidada em maio, Paulo Roberto tinha um saldo de US$ 446.800 e € 52.800 com a Trafigura. No caso da Trafigura, a conta que aparece está no banco Lombard Odier de Genebra. Segundo as investigações da PF, o saldo deve-se sobretudo à compra de combustível da Trafigura. 

Naquele momento, o relatório diz que a Trafigura ainda tinha de pagar pelo contrato que a Petrobras tinha de aluguel de um terminal de tancagem de combustível em Suape, Pernambuco.

No relatório, “Beto” reclama da Trafigura. “Está inadimplente em 2013”, escreveu. “Estou cobrando o Mariano. Disse que resolveu, mas ainda não tive confirmação do banco.” Mariano, segundo as investigações, é Mariano Marcondez Ferraz, um brasileiro que ascendeu velozmente na hierarquia da Trafigura ao garantir contratos da empresa na África, sobretudo em Angola. Foi recentemente alçado à diretoria da empresa.

“Beto” não cuidava sozinho das relações com a Trafigura e da conta em Genebra. Aqui, segundo ele, entram o lobista Jorge Luz e seu filho, Bruno Luz – ambos o ajudavam. Jorge Luz é um dos mais antigos lobistas da Petrobras. No governo Lula, construiu boas relações com chefes do PMDB e do PT. No PMDB, é próximo do senador Jader Barbalho e do empresário Álvaro Jucá, irmão do senador Romero Jucá, dono de uma empresa que tem contratos na Petrobras. 

Também tinha boas relações com o presidente do Senado, Renan Calheiros. No PT, é ligado ao deputado Cândido Vaccarez­za, um dos expoentes da ala conhecida como “PMDB do PT”, que inclui os deputados André Vargas, José Mentor e Vander Loubet – um grupo que ainda tem influência na Petrobras, por meio de indicações políticas na BR Distribuidora, subsidiária da empresa. O que todos esses políticos têm em comum? O medo de uma CPI da Petrobras. Por isso atuam energicamente para derrubá-la.

 Pode sobrar para eles  (Foto: Monique Renne/CB/D.A Press, Dida Sampaio/Estadão  Conteúdo/AE, Juliana Knobel/FRAME/AE e Marcelo Camargo/Folhapress)
Pode sobrar para eles 
A eficiência de Jorge Luz e “Beto” é inquestionável. Meses depois, em setembro de 2013, “Beto” informa, em novo relatório a Paulo Roberto, que a “inadimplência” da Trafigura foi resolvida. 

De US$ 446.800, o saldo da conta sobe para US$ 800 mil. “Depois de muita insistência e cobrança minha, o Mariano acertou o primeiro semestre de 2013”, escreve. “Beto” aconselha Paulo Roberto a manter Bruno Luz, que assume os negócios do pai, como responsável diante da Trafigura. 

Naquele mês, ele afirma que, de todos os negócios de que eles se desfaziam, faltavam apenas aquelas duas contas – a conta que recebia dinheiro da Trafigura e a conta que recebia dinheiro da GB Maritime. “Se fosse possível resolver este ano (as duas últimas contas) seria bom, pois acabaria esta questão de relatório e, principalmente, não teria mais nada seu comigo”, escreve no relatório.

O Range Rover que Youssef comprou para Paulo Roberto deve ser atribuído, de acordo com as investigações, a esse acerto de contas. Não se trata de um presente. Trata-se de dinheiro dele, Paulo Roberto, que tinha saldo no “banquinho” de Youssef. Apesar de liquidar as operações que tinha com Paulo Roberto, Youssef criou para ele, em 21 de abril do ano passado, uma empresa offshore no Panamá: a Sunset Global. 

Os documentos de constituição da offshore foram encontrados no escritório de Youssef e obtidos por ÉPOCA. A mulher de Paulo Roberto, Marici da Silva Azevedo Costa, representa o marido na offshore. Com Youssef, a PF também apreendeu um instrumento particular por meio do qual a Sunset Global compra uma bela casa em Mangaratiba, no Rio. A casa custava R$ 3,2 milhões. 

A PF ainda não sabe se a operação foi feita. Sabe apenas que Youssef pretendia bancá-la, com dinheiro do próprio Paulo Roberto – uma maneira de esquentar os recursos.

Em depoimento à PF, Paulo Roberto nega qualquer irregularidade. Afirmou que conhecia o doleiro Youssef “quando ainda estava em atividade na Petrobras, mas apenas após sua aposentadoria (em abril de 2012) foi procurado por Youssef para prestação de serviço de consultoria no mercado futuro”. 

Paulo Roberto insistiu ter recebido de Youssef o carrão somente por ter “prestado serviços”. E Paulo Roberto produziu, durante a consultoria, algum tipo de relatório ou documento para Youssef? Ele respondeu que “a consultoria teria se dado principalmente por meio de reuniões presenciais e debates verbais”.

Como acontece em investigações desse tipo, o essencial é seguir o caminho do dinheiro. Nesse caso, seguir o dinheiro recebido e pago por Youssef. No Congresso, Youssef é tido como “banquinho” de vários políticos. Na semana passada, o jornal Folha de S.Paulo revelou que André Vargas pegou carona num jatinho fretado por Youssef. 

O deputado se enrolou todo para explicar a relação com ele. Não é o único deputado que goza da amizade de Youssef. Segundo o depoimento de Leonardo Meireles, que trabalhava com Youssef e fez um acordo de delação premiada com a PF, Adarico Negromonte, irmão do ex-ministro e deputado do PP Mário Negromonte, trabalhava no escritório de Youssef em São Paulo. Outros depoimentos confirmam o bico do irmão do ministro.

Seguindo o caminho do dinheiro de Youssef, a PF e uma possível CPI chegarão não apenas ao passado da Petrobras, mas também ao presente. Em 19 de setembro de 2012, a Investminas, do empresário Pedro Paulo Leoni Ramos, conhecido como PP, depositou R$ 4,3 milhões na conta da MO Consultoria – empresa de fachada usada pelo doleiro Youssef. 

Por que isso é relevante? ÉPOCA mostrou, na semana passada, como PP, secretário de Assuntos Estratégicos no governo de Fernando Collor de Mello, intermedeia negócios envolvendo a BR Distribuidora. PP defende interesses de Collor e de políticos petistas – como o deputado André Vargas – que indicaram dirigentes para a empresa.
 DIRETO NA CONTA Trecho de laudo  da Polícia Federal. O documento mostra empresas suspeitas de ter depositado dinheiro na conta de consultoria de Alberto Youssef – entre elas, estão fornecedoras da Petrobras  (Foto: Reprodução)
DIRETO NA CONTA
Trecho de laudo da Polícia Federal. O documento mostra empresas suspeitas de ter depositado dinheiro na conta de consultoria de Alberto Youssef – entre elas, estão fornecedoras da Petrobras.

Descobriu-se, também na semana passada, que os tentáculos de PP e de seus sócios se estendem para além da área do petróleo. Em parceria com o governo federal, por meio da elétrica Furnas, empresas ligadas a PP arremataram um leilão para administrar a Usina de Três Irmãos, em São Paulo. 

A revelação dos sócios do fundo que se juntou a Furnas só ocorreu dias depois da concorrência. No dia do leilão, ninguém sabia quem estava por trás das empresas. O TCU suspendeu a assinatura do contrato atendendo a um pedido do governo paulista. Um dos sócios de PP na empreitada chama-se João Mauro Boschiero, colega de PP no governo Collor e número dois nas empresas de PP.

Todos os caminhos convergem para Youssef. As investigações da PF na Operação Lava Jato revelaram que Boschiero era próximo de Youssef. Boschiero foi flagrado em escutas telefônicas sugerindo que duas pessoas apagassem e-mail, também encaminhado a PP, sobre o laboratório Labogen, que tem Youssef como sócio oculto. “Pedro e Leonardo (além de todos os outros que receberam os e-mails abaixo). 

Deletem-no urgentemente. As citações que foram feitas derrubam nosso projeto”, afirmou. O Labogen, que contava com laranjas de Youssef, estava prestes a firmar um contrato com o Ministério da Saúde para fornecimento de remédios. Boschiero, segundo o advogado de Youssef, é diretor do Labogen.

A Sanko informou que as datas e os valores de contratos não podem ser fornecidos, por questões de confidencialidade. A MO, segundo a Sanko, foi contratada para a execução de trabalhos técnicos, e a GFD para representação comercial. “Não vendemos diretamente à Petrobras nem a empresas estatais, mas a empresas e consórcios privados, que com frequência utilizam os tubos e conexões que lhes são fornecidos para obras da Petrobras.” 

A Sanko não revela o nome de seus clientes. Por meio de sua assessoria de imprensa, a Alusa Engenharia afirma que jamais fez repasses ou recebeu recursos de Paulo Roberto. “A empresa rechaça qualquer ligação com esse senhor.” Afirma, também, não ter relação comercial ou pessoal com Youssef. 

O grupo GPI, do empresário PP, informou que não se manifestaria até que seus advogados tenham acesso às informações em poder da PF. Galvão Engenharia, Jaraguá, OAS e Trafigura não responderam até o fechamento desta edição. A Petrobras preferiu não se manifestar.
Diante de um esquema dessa magnitude, como alguém em Brasília poderia dormir?

Mancha suja na história...

 

A ditadura que persiste

Países vizinhos já julgaram seus comandantes ditatoriais. Aqui, continuamos pisando em ovos

O golpe militar de 31 de março de 1964 completa 50 anos. Cada um lembrará a data segundo lhe convém. Uns poucos – ainda bem que poucos – festejarão o crime contra a democracia como se fosse um ato de heroísmo. Os demais criticarão sem piedade a quartelada que ganhou o apelido de “redentora”. Estarão por aí em seminários acadêmicos, atos partidários, ou simplesmente escrevendo a respeito, como é o caso deste colunista.

Passado meio século da página infeliz – que contou com o apoio decisivo do empresariado, dos Estados Unidos, das ditas autoridades eclesiásticas, da imensa maioria dos meios de comunicação e de um contingente avassalador de professores de Direito em suas egrégias congregações –, ninguém mais gosta de dizer que foi a favor. Há também quem declare arrependimento, algo que não prejudica.

A ditadura militar irrompeu como sintoma e se fixou como doença. Debilitou a saúde nacional em todos os campos (por favor, não venha dizer que “a economia melhorou”, porque mesmo os índices do tal “milagre econômico” foram vilipendiados, usurpados e destroçados por um custo civilizatório superior a qualquer ganho contábil). Não temos o direito de esquecê-la. Quanto mais nos lembramos, mais nos prevenimos contra atrocidades semelhantes.

As viúvas do golpismo têm garantido seu direito de adular a memória dos que tomaram de assalto a capital federal, mas não têm mais a prerrogativa ilegítima de calar os que discordam deles. Nunca mais. O pior presidente eleito é infinitamente melhor do que o mais competente e virtuoso ditador. Em todos os sentidos.

Absolutamente todos.

O esforço de manter viva a memória do trauma também ajuda a enxergar o que resta da ditadura em nossos dias. Essa é a parte mais chata, mas talvez seja a mais imprescindível na efeméride que se aproxima. A tortura, cujas técnicas ultramodernas foram aprendidas com obediência e servilismo pelas forças de repressão já nos anos 1960, continua aí como um impávido colosso. 

Policiais intimidam ilegalmente, seviciam e matam gente indefesa em todas as margens expandidas do Ipiranga. Depois, dão sumiço nos cadáveres. Amarildo não é um só. Amarildo é o nome de uma multidão de brasileiros.

A impunidade também continua incólume, como se fosse cláusula pétrea da negociação que, dizem, permitiu a transição pacífica para a democracia. 

A impunidade dos torturadores – ou, digamos com mais clareza, a impunidade dos civis e militares de alta patente que ordenaram ou permitiram que a tortura acontecesse em instalações sob seus comandos – impera ainda hoje sob o céu da pátria. Por meio da impunidade, o presente bate continência eterna para o passado.


Países vizinhos já julgaram e condenaram à prisão os comandantes ditatoriais. Enquanto isso, as instituições daqui seguem pisando em ovos. Há coisa de duas semanas, a Comissão da Verdade divulgou o nome dos oficiais responsáveis pela tortura e pelo assassinato (seguido de ocultação do cadáver) do deputado Rubens Paiva. A acusação foi lançada, a nação ficou em choque e... nada, nenhuma reação das Forças Armadas. Nenhuma esperança de justiça.

Além da prática da tortura e da impunidade perpétua, há uma face ainda mais perversa que se mantém fulgurante no florão da América. Essa face é a herança mais caprichosa que a ditadura nos legou: a propaganda ufanista. 

É realmente incrível, mas os governos brasileiros não aprenderam, até hoje, que o ufanismo é um recurso útil apenas aos regimes autoritários, pois serve acima de tudo para inibir a divergência. Ora, a democracia se alimenta de dissenso. Logo, a comunicação social de democracia deveria estimulá-lo, pois um ambiente de obediência social favorece não a liberdade, mas a tentação totalitária.

No tempo dos militares, tivemos aquele infame “Brasil, ame-o ou deixe-o” (mal traduzido do slogan americano “Love it or leave it”). Tínhamos também o “Este é um país que vai pra frente” e o “90 milhões em ação”, uma espécie de “marcha soldado” futebolístico. 

Agora, preste atenção. Hoje é tudo igual. “Eu sou brasileiro e não desisto nunca.” Tem cabimento? Os filipinos por acaso desistem logo? Os uruguaios? Os alemães? Será que estão insinuando que o brasileiro tem mais fibra que os outros povos?

A propaganda ufanista afirma subliminarmente que o governo é sinônimo do lábaro estrelado e que quem é contra ele é contra o Brasil. Essa comunicação oficial – autoritária, ética e esteticamente antidemocrática – prossegue imutável. É espantoso. É como se o imaginário da ditadura habitasse os palácios.

Ação imediata...


Presidente Dilma, põe no rótulo, por favor!

Famílias brasileiras se unem em torno da campanha pela identificação de substâncias causadoras de alergia que, em alguns casos, pode ser fatal.

Cara presidente,

Como avó de um menino de três anos, a senhora voltou a se inteirar do universo infantil. Mesmo sendo tão ocupada, a senhora não só brinca com ele, mas ouve de sua filha as últimas do Gabriel. 

A senhora obviamente já conhece músicas da Galinha Pintadinha, deve ter sido apresentada à porquinha Pepa, esses personagens que as crianças pequenas adoram. 

A essa altura, a senhora também deve ter ouvido falar de uma criança ou outra com algum tipo de alergia alimentar, talvez um amiguinho do seu neto, um primo... É muito comum. Parece uma epidemia. É um tal de criança que não pode tomar leite, ou leite de soja, ou amendoim, ou ovo, ou outra coisa qualquer sob risco de apresentar muitos efeitos colaterais. 

Estima-se que 30% dos brasileiros apresentem algum tipo de alergia, desses aproximadamente 20% são crianças. Estamos falando, presidente, de 12 milhões de crianças.

O pior é que muitas dessas crianças manifestam a versão grave da alergia, a anafilaxia. Provocada por alimentos, remédios e até picada de insetos, pode evoluir para choque anafilático em questão de segundos e levar à morte. 

Os pais precisam estar muito atentos. Eles são obrigados a ler rótulos para identificar se naquele biscoito, naquele bolo, naquele hambúrguer tem algo que o filho não pode comer. O problema é que nossos rótulos não falam o suficiente. Mentem e pecam por omissão.  

Descobri isso na prática. Minha filha mais velha tem oito anos e desde os quatro tentamos evitar que ela coma alimentos com traços de leite, soja e carne vermelha. Ela é o que se chama alérgica não mediada, porque apresentará os sintomas dias depois da ingestão do alimento proibido. 

Eles não são graves, mas, como ela mesma diz, “são muito chatos“ por incluir cólica, gases, dor de barriga. Há casos de crianças que vomitam e apresentam sangue nas fezes. Eu já vi minha filha chorar de dor e, como mãe, a senhora deve imaginar como isso me feriu por dentro. Muitas vezes eu fico me perguntando o que causou a última crise. 

E muitas vezes eu não sei. Soube por outra mãe mais bem informada que o fermento usado lá em casa contém traços de leite, embora o rótulo não diga. Toda vez que eu compro um biscoito novo para ela experimentar, fico na dúvida se a “margarina vegetal“ listada entre os ingredientes é simplesmente gordura vegetal ou alguma daquelas margarinas de mercado vetadas na dieta dela por conter leite. 

A senhora sabia que margarina, produzida a partir de gordura vegetal, leva leite? Eu só descobri depois de ser obrigada a ler rótulos. E manter uma dieta correta é um primeiro passo essencial rumo à cura. Sem limpar o organismo dela, não vou conseguir desensibilizá-la. Há chances que isso aconteça.

A vida de mãe que lê rótulo não é fácil. A Mariana, mãe do Mateus, precisa ficar mais atenta do que eu. O caso desta criança é grave. Um dia, ligaram da escola para a Mariana porque Teteu teve um pré-choque com giz. Não é um telefonema que mães gostam de receber, presidente, a senhora deve imaginar. 

Mariana não apenas lê todas as letras miúdas da embalagem. Ela telefona para os SACs e percebe como tem gente despreparada do outro lado da linha para responder às dúvidas dela. O risco é levar o inimigo para dentro de casa. Imagine uma criança alérgica a ovo comendo um arroz caseiro que contém… Ovo na fórmula! 

Essa marca existe, presidente. E não diz nada na embalagem. Sabia que o aviso “sem lactose“ não é atestado de ausência total de leite? A lactose é o açúcar do leite, mas o que causa alergia é a proteína. Eu comprei muito produto “sem lactose“ confiando, presidente. Olha só que dificuldade.

Cecília Cury, uma advogada paulista especializada em infraestrutura, mudou o tema da tese de doutorado para estudar a falta de normas no país sobre o assunto depois de mergulhar no caso do filho menor. A tese foi defendida ano passado, na PUC-SP. 

Para esta pesquisadora, presidente, "a não rotulagem de alérgenos afronta contra o direito à informação, à saúde e à alimentação adequada“. Ela me contou ainda que as mesmas empresas que fazem tudo certo na Europa e nos Estados Unidos não fazem o mesmo aqui. Cecília é mãe de duas crianças.

É revoltante, não é presidente, imaginar que a empresa que na Europa se esmera em produzir alimentos seguros e rotulagem precisa, aqui apenas bote no rótulo que o biscoito tal “pode conter traços de leite“? Sabe por que faz isso, presidente? Porque assim eles se livram de eventuais processos. Fica nas mãos do consumidor correr o risco. E investir em maquinário exclusivo para processar alimentos sem contaminação cruzada custa dinheiro, a gente pode imaginar. Mas não fazer direito, pode custar muito mais.

A Mariana, a Cecília e muitas outras mães e pais lançaram há menos de dois meses uma campanha na internet chamada #poenorotulo. É uma tentativa de convencer a indústria alimentícia sobre a importância de um rótulo bem feito. Estamos falando aqui de segurança alimentar.  A página da campanha já conta com quase 30 mil curtis, presidente. 

Até o Zico aderiu à luta. Tem muita gente atenta à importância do assunto mas decisão que é bom, nada. Para ampliar a conscientização sobre a necessidade de uma rotulagem adequada e fiel dos ingredientes de alimentos, a Organização Mundial de Alergia (WAO) vai realizar a Semana Mundial de Alergia, a partir de amanhã, com eventos no mundo inteiro. 

No Brasil, a iniciativa está representada pela Associação Brasileira de Alergia e Imunopatologia. O tema deste ano é justamente a anafilaxia, a versão fatal da alergia.

É preciso lembrar que a multidão refém de rótulos inclui ainda diabéticos, hipertensos, portadores de doenças renais. Todos precisam saber direitinho o que estão comendo. O pleito desse pessoal é comer com segurança. Hoje, todos os produtos alimentícios brasileiros são obrigados por lei a informar se há glúten, uma vitória conquistada por um movimento de portadores de doença celíaca.

Lei para identificar alérgenos seria uma excelente solução, mas uma resolução da Anvisa ajudaria bastante. Crianças como o Mateus, presidente, que tem quase a idade do seu neto Gabriel, agradecem de coração.

Enganos desastrosos...

A maioria está errada

Uma campanha na internet reage contra os 65% que apoiam o estupro - e mostra que o país não pertence a eles

Aos trancos e barrancos, o Brasil vai se tornando um país melhor para quem vive aqui. Um dia depois da pesquisa do IPEA que mostrou que 65% dos homens e mulheres brasileiros acreditam que mulheres que “usam roupa que mostra o corpo merecem ser atacadas” – quer dizer, sexualmente violentadas, estupradas, abusadas – entrou no ar, nas redes sociais, uma reação espontânea contra essa barbaridade.

O movimento chama-se “Não mereço ser estuprada”, foi criado pela jornalista Nana Queiroz, de 28 anos, e tem a cara da internet: quem apoia faz uma foto de si mesmo com uma placa repetindo o mote da campanha. É um selfie com conteúdo. As mulheres aderiram em peso, muitos homens entraram na onda e a página do Facebook do movimento conseguiu – além de centenas de fotos - quase 53 mil apoios. No domingo, o Fantástico entrevistou Nana Queiroz, falou da campanha e abriu as páginas do programa na internet para quem quisesse apoiar o protesto. Valeu Fantástico! Curti!

Muita gente ficou compreensivelmente amargurada com o resultado da pesquisa do IPEA. É duro descobrir que 58,5% das pessoas ao nosso redor (inclusive as mulheres, que foram 66% das pessoas entrevistadas pela pesquisa), acham que se as mulheres “soubessem se comportar” haveria menos estupros. Essa lógica é fruto da mais profunda ignorância.

Na Arábia Saudita, talvez o país mais atrasado do mundo em termos de costumes, onde as mulheres não podem guiar automóveis ou andar sozinhas nas ruas, uma pesquisa entre homens concluiu que a culpa dos estupros é da maquiagem. Como as mulheres sauditas andam cobertas dos pés à cabeça, e os homens só lhes veem os olhos, disseram que elas são estupradas porque usam rímel. Quer dizer: ao exibir apenas os olhos maquiados, elas não estão se comportando, por isso são violentadas.
Faz sentido essa conversa de má fé? Faz sentido atribuir às mulheres a culpa pela violência criminosa dos homens? Claro que não. Nem lá, nem aqui. No mundo inteiro, sabe-se que as mulheres são estupradas usando todo tipo de roupa - inclusive o uniforme militar, quando servem o exército.

A alegação de que “a culpa do estupro é delas” - por estarem usando saia curta, ou por estarem sozinhas na rua, ou por andarem de trem, voltando do trabalho – é uma ladainha machista que serve de desculpa para criminosos. No Brasil, os números do IPEA mostram que essa visão distorcida da realidade prolifera sobretudo entre pessoas de pouca instrução, assim como entre alguns grupos religiosos.

“Chama atenção o fato de que os católicos têm chance 1,4 vez maior de  concordarem total ou parcialmente com essa afirmação (a culpabilização do comportamento feminino pela violência sexual), e evangélicos 1,5 vez maior”, diz o estudo. Eu, que não sou religioso, mas cresci entre uma família católica e outra batista, não reconheço esse cristianismo do “estupro merecido”.

O que mais me chocou na pesquisa, porém, foi o apoio das mulheres à ideias que vão contra elas mesmas. Devem ser mulheres tristes, recalcadas, que foram ensinadas a difamar aquelas que agem com liberdade em relação ao próprio corpo. Por exibir pernas e decote, as “exibidas” mereceriam ser estupradas. O problema com essa ideia – além do preconceito sem justificativa contra a roupa e o comportamento dos outros - é que estuprador não escolhe assim.

Segundo o IPEA, 70% das vítimas de estupro são crianças e adolescentes. E 11% são do sexo masculino, adultos ou meninos. Diante desses números, como fica a conversa sobre roupas? Vamos esconder as pernas dos nossos meninos de 10 anos ou seria melhor proibir as meninas de 12 anos de usarem vestidos? Da minha parte, acho mais produtivo denunciar à polícia os caras que andam pelas ruas assediando mulheres e meninas. Ou defendendo na internet o estupro e o encoxamento no transporte público. Esses são os verdadeiros culpados. As mulheres, adolescentes e crianças são vítimas.

Um dos efeitos surpreendentes da campanha de Nana Queiroz foi a reação direta dos grupos pró-estupro contra ela. Os amigos e simpatizantes dos estupradores foram à página dela no Facebook (homens e mulheres, vejam bem) para ameaçar, xingar e se gabar de já ter estuprado. Formou-se uma corrente de baixaria e ignorância de dar asco, que teve a resposta que merecia: mais apoio à atitude de Nana, mais repercussão na imprensa (inclusive internacional) e mais gente, muito mais gente, postando fotos e aderindo ao movimento.

É por isso que eu acho que o Brasil tem jeito.

No passado, uma pesquisa como essa do IPEA teria ficado apenas na constatação de que a maioria dos brasileiros (inclusive as mulheres) é moralmente a favor do estupro, desde que as mulheres estejam usando saia curta. Não haveria uma voz para rebater esse absurdo. Os machistas, os ignorantes e os moralistas teriam, por assim dizer, a última palavra. Agora, não.

Uma moça valente ficou indignada, fez um post no Facebook, e, de repente, abriu espaço para que milhares de pessoas mostrassem a sua indignação com a barbaridade exibida pela pesquisa. E isso acabou na TV, em horário nobre. Quer dizer, a turma do estupro pode ser maioria estatística, mas eles foram acuados pela reação da minoria moral – que, neste caso, acima de qualquer dúvida, representa não apenas a Lei, mas a Justiça e a Civilização como nós a entendemos no século XXI. Tudo em letras maiúsculas.

ATUALIZAÇÃO:
Soube esta tarde, sexta-feira 4 de abril, que o IPEA errou feio na pesquisa que deu origem à coluna desta semana, com o título "A maioria está errada".  Agora, o órgão que fornece estatísticas para o governo diz que 26% dos brasileiros acham que mulheres que "usam roupa que  mostre o corpo merecem ser atacadas". 

O número ainda é alto, mas está longe dos aberrantes 65% divulgados antes. Mas o IPEA insiste que o outro dado chocante - que 58,5% dos entrevistados acham que se as mulheres "soubessem se comportar" haveria menos estupros - continua válido. Eu acho incongruente: se "apenas" 26% culpam a roupa das mulheres pelos estupros, por que 58,5% acreditam que o estupro é culpa do comportamento das mulheres? 

Talvez a pesquisa do IPEA não tenha um só erro, mas vários. De qualquer forma, com a revisão do percentual de pessoas que acha que as mulheres merecem ser atacadas, algumas coisas que eu disse na coluna perderam a validade, a começar pelo título. 

É a minoria que está errada, não a maioria. 

Ainda bem. O que permanece firme é o meu otimismo em relação à capacidade de reação da parte saudável do país. Confrontada com um aparente absurdo machista, pessoas de bem como a jornalista Nana Queiroz se mobilizaram em defensa da decência, da liberdade e contra o obscurantismo. Isso demonstra que o país melhorou. Isso mostra que o Brasil tem jeito.

Sem profundidade...

 
Gente que comenta sem ler
Reflexões sobre uma epidemia digital

Clique em qualquer notícia de um grande portal, vá à seção de comentários e faça sua aposta: quantas pessoas realmente leram todo o texto antes de comentar? Quando comecei no jornalismo, ingênuo acreditava que todos liam tudo. Os anos me tornaram cético. Hoje, tenho certeza de que o número é próximo de zero. Na internet, quase todos nós lemos muito mal.

Num universo de leitura fragmentada, os comentaristas conseguem se destacar negativamente. Ao contrário dos outros maus leitores, que prestam conta apenas às suas consciências, quem comenta deixa registrada, definitivamente, a sua falta de atenção. Só não morrem de vergonha disso porque sabem que ninguém notará suas falhas. Afinal, se quase ninguém lê as notícias, é seguro apostar que mesmo o mais absurdo dos comentários passará despercebido por todos. Exceto, é claro, por outros comentaristas.

Quanto maior a audiência de uma notícia, maior a chance de a caixa de comentários se transformar numa sala de bate-papo delirante, sem nenhuma relação com o assunto original. Não importa se o texto é sobre a Petrobras, sobre novas marcas de esmalte ou sobre o álbum da Copa: sempre haverá uma desculpa para transformá-lo em palco para brigas políticas. 

Quando a vontade de expressar uma opinião é irresistível, a lógica é o que menos importa. O Flamengo perdeu? A culpa é da Dilma. O vocalista do Muse perdeu a voz? A culpa é da Dilma. Pensei num terceiro exemplo, mas tive um branco momentâneo. A culpa disso, evidentemente, é da Dilma.

Sempre há um ou outro justiceiro que gasta seu tempo apontando incoerências nos comentários alheios. São criaturas exóticas: leem não só os textos, como também os comentários - e ainda se dão ao trabalho de notar quando não há qualquer relação entre uma coisa e outra. 

Os esforços desses bravos heróis são em vão: a horda de comentaristas enfurecidos imediatamente os descartará como lacaios de algum partido político ou, pior ainda, metidos a intelectuais. Bem feito. Quem mandou gastar seu tempo lendo um texto na internet?

Comentários em redes sociais são ainda piores. Lá, não é necessário nem mesmo clicar na notícia para palpitar sobre ela. Basta ler o título do post que um amigo compartilhou e o campo de comentários estará logo abaixo, com todos os seus encantos. Eu falei em ler o título? Bobagem. Não importa o que esteja escrito lá: a culpa sempre será da Dilma. Ou seria do PSDB?

No último primeiro de abril, o site da National Public Radio (NPR) aplicou uma pegadinha impiedosa em seus leitores: publicou, no Facebook, um texto com o título "Por que a América não lê". Centenas de pessoas comentaram o assunto. Algumas discordavam, indignadas. Outras concordavam e discorriam longamente sobre as causas desse fenômeno. 

O texto da notícia, que ninguém leu, explicava a piada e dizia algo como "os americanos leem, mas temos a impressão de que eles só olham o título antes de comentar". Eu não saberia dizer precisamente o que estava escrito lá: confesso que não li o texto da NPR. Vi o link no Facebook de um ou dois amigos e decidi comentar sobre o assunto mesmo assim.

Por muito tempo acreditei que a multidão que comenta sem ler era a escória da internet. Que o mundo seria melhor se lêssemos todos os textos antes de palpitar sobre eles. Eu estava errado. Hoje penso exatamente o contrário. 

A enorme maioria dos textos que circulam pela internet é inútil. Os comentaristas ensandecidos simplesmente decidiram parar de perder tempo com esse tipo de bobagem. São seres mais evoluídos do que nós. Basta aplicarem em algo útil todas as horas de leitura superficial que economizam e logo dominarão o mundo.

Saber comentar sem ler é uma habilidade indispensável para ser bem sucedido no mundo digital. Se você ainda não aderiu, pare de ler agora e junte-se a nós. Seja bem-vindo ao futuro.

O próximo passo rumo à iluminação digital é aprender a não ler e não comentar.

As discussões na internet, convenhamos, nunca mudaram a opinião de ninguém. Nos meus anos menos esclarecidos, li muitos debates em seções de comentários. Nunca vi um crítico do governo terminar uma discussão com "pensando bem, acho que a culpa não é da Dilma". 

Ou um ativista, após longas réplicas e tréplicas, decidir dar o braço a torcer: "diante de todos os argumentos aqui expostos, cheguei à conclusão de que #vaitercopa." As discussões virtuais são tão dispensáveis quanto às notícias que as antecedem. Abençoado seja quem guarda sua opinião para si e cultiva o silêncio digital. É o que vou fazer agora. Até a próxima semana.

Chatonildos em demasia..


Eu não mereço
O que fazer para se defender do assédio das mensagens invasivas nos celulares?

Enquanto nossa pátria-mãe, tão distraída, é subtraída em tenebrosas transações, nós, os honestos, que não temos contas conjuntas com doleiros, não andamos em jatos de bandidos nem mamamos nas tetas públicas somos assediados, atacados, invadidos. Não falo de assalto de colarinho sujo ou branco. É um lance prosaico, cotidiano e irritante. Não aguento mais receber mensagens em meu celular, muitas com meu nome, às vezes soando de madrugada, no almoço sábado ou no café domingo.

Umas tentam me vender objetos, outras buscam meus dados, algumas me prometem prêmios, outras me parabenizam, umas sugerem que eu evite multas e vire bandida... e ainda há as ameaçadoras. Selecionei algumas que entraram em meu celular, me acordaram, interromperam almoços, conversas, trabalho. Os ingleses chamam de “junk mail”. É lixo mesmo. O que fazer para se defender desse assédio? Trocar de linha o tempo todo? Multar? Muitas mensagens gritam,  em maiúsculas. Todos os erros de grafia e acentuação foram mantidos.

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Eu não mereço, você não merece, nós não merecemos. Perdemos tempo e paciência e acabamos resignados. Será que os empresários e comerciantes não têm vergonha? Lixo, meus senhores, é na lixeira.

Consequência do fatiamento africano pelos colonialistas europeus...


Ruanda relembra os 20 anos do genocídio que matou 1 milhão

Durante cerimônia, presidente do país acusou a França, a Bélgica e a Igreja Católica pelo colonialismo europeu na África
 O presidente de Ruanda, Paul Kagame, discursa durante cerimônia que relembra os 20 anos após o genocídio no país (Foto: Ben Curtis/AP)
O presidente de Ruanda, Paul Kagame, discursa durante cerimônia que relembra os 20 anos após o genocídio no país.

Há 20 anos, o assassinato do então presidente de Ruanda Juvénal Habyarimana em um atentado de avião desencadeou um dos piores massacres do século XX. Durante cem dias, homens da maioria étnica hutu mataram membros da minoria tutsi e hutus moderados. Estima-se que entre 800 mil a 1 milhão de pessoas morreram em cerca de três meses. Nesta segunda-feira (7), Ruanda começou uma série de cerimônias para relembrar o genocídio e honrar vítimas e familiares.

As principais homenagens estão sendo feitas no Tutsi Amahoro Stadium, em Kigali, capital de Ruanda. Nesse local, 12 mil pessoas se refugiaram durante o genocídio. O presidente de Ruanda, Paul Kagame, acendeu uma tocha que queimará durante cem dias e recebeu o nome de "Chama do Luto Nacional".

A cerimônia foi marcada por luto e choro por parte de uma multidão de pessoas presentes no estádio. Muitas passaram mal e tiveram que ser atendidas pelas equipes médicas. Ainda assim, os ruandeses compareceram em peso e assistiram aos discursos do presidente e do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon.

Em seu discurso, Kagame culpou a colonização europeia na África pelo genocídio. "O legado mais devastador do controle europeu em Ruanda foi a transformação das distinções sociais. Fomos classificados de acordo com um marco inventado em outro lugar", disse.
 Homem é carregado após passar mal por lembrança dos fatos ocorridos há 20 anos em Ruanda, quando um genocídio matou entre 800 mil a 1 milhão de pessoas no país (Foto: Ben Curtis/AP)
Homem é carregado após passar mal por lembrança dos fatos ocorridos há 20 anos em Ruanda, quando um genocídio matou entre 800 mil a 1 milhão de pessoas no país. 
Uma mulher entrou em desespero e precisou ser carregada para fora do estádio Amahoro, na cidade de Kigali, em Ruanda, durante a homenagem aos 20 anos do Genocídio vivido no país em 1994. Líderes de todo o mundo participaram da celebração à 800 mil vítimas (Foto: Chip Somodevilla/Getty Images)
Uma mulher entrou em desespero e precisou ser carregada para fora do estádio Amahoro, na cidade de Kigali, em Ruanda, durante a homenagem aos 20 anos do Genocídio vivido no país em 1994. Líderes de todo o mundo participaram da celebração à 800 mil vítimas.

Durante a cerimônia, Kagame disse que o país ainda busca "uma mais completa explicação" do genocídio, e se voltou contra as autoridades francesas. O governo acredita que a França, na época aliada dos hutus, teve participação no massacre. Em francês, Kagame disse que "nenhum país é tão poderoso que mude os fatos". Depois, continuou o discurso em inglês, e também criticou a Bélgica e a Igreja Católica pelo massacre.

No fim de semana, o embaixador da França em Ruanda foi informado pelas autoridades do governo que não poderia participar da cerimônia. Com as acusações, a França cancelou sua participação no evento.

Antes do genocídio, a França tinha boas relações com o governo da maioria hutu em Ruanda, inclusive com venda de armas ao governo. Com o início do massacre, as princpipais autoridades diplomáticas francesas deixaram o país, e em junho de 1994 uma força militar francesa foi enviada a Ruanda para impedir massacres. A França nega qualquer participação no genocídio.

Ban Ki-moon: "a ONU deveria ter feito mais"

O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, também participou da cerimônia em Kigali. Ban disse que o genocídio "pesa na consciência" da ONU, que fracassou em sua missão de proteger as pessoas na ocasião. "Muitos membros da ONU mostraram uma coragem extraordinária, mas poderíamos ter feito muito mais. Deveríamos ter feito muito mais", disse.

Antes do genocídio, a ONU tinha uma missão de paz no país, a Missão de Assistência das Nações Unidas para Ruanda, com soldados de vários países instruídos a observar o tratado de paz que encerrou a guerra civil um ano antes. Durante as primeiras hostilidades, dez soldados belgas da ONU foram mortos, o que fez a Bélgica retirar todas as suas tropas, seguida por demais países. No auge do genocídio, a ONU contava apenas com 200 homens, sem autorização para atirar ou qualquer condição de impedir o massacre que se seguiu.
 Ruandeses acendem velas durante cerimônia religiosa para relembrar os 20 anos do genocídio em Ruanda (Foto: Ben Curtis/AP)
Ruandeses acendem velas durante cerimônia religiosa para relembrar os 20 anos do genocídio em Ruanda.

Mais uma etapa superada...