terça-feira, 8 de abril de 2014

Mancha suja na história...

 

A ditadura que persiste

Países vizinhos já julgaram seus comandantes ditatoriais. Aqui, continuamos pisando em ovos

O golpe militar de 31 de março de 1964 completa 50 anos. Cada um lembrará a data segundo lhe convém. Uns poucos – ainda bem que poucos – festejarão o crime contra a democracia como se fosse um ato de heroísmo. Os demais criticarão sem piedade a quartelada que ganhou o apelido de “redentora”. Estarão por aí em seminários acadêmicos, atos partidários, ou simplesmente escrevendo a respeito, como é o caso deste colunista.

Passado meio século da página infeliz – que contou com o apoio decisivo do empresariado, dos Estados Unidos, das ditas autoridades eclesiásticas, da imensa maioria dos meios de comunicação e de um contingente avassalador de professores de Direito em suas egrégias congregações –, ninguém mais gosta de dizer que foi a favor. Há também quem declare arrependimento, algo que não prejudica.

A ditadura militar irrompeu como sintoma e se fixou como doença. Debilitou a saúde nacional em todos os campos (por favor, não venha dizer que “a economia melhorou”, porque mesmo os índices do tal “milagre econômico” foram vilipendiados, usurpados e destroçados por um custo civilizatório superior a qualquer ganho contábil). Não temos o direito de esquecê-la. Quanto mais nos lembramos, mais nos prevenimos contra atrocidades semelhantes.

As viúvas do golpismo têm garantido seu direito de adular a memória dos que tomaram de assalto a capital federal, mas não têm mais a prerrogativa ilegítima de calar os que discordam deles. Nunca mais. O pior presidente eleito é infinitamente melhor do que o mais competente e virtuoso ditador. Em todos os sentidos.

Absolutamente todos.

O esforço de manter viva a memória do trauma também ajuda a enxergar o que resta da ditadura em nossos dias. Essa é a parte mais chata, mas talvez seja a mais imprescindível na efeméride que se aproxima. A tortura, cujas técnicas ultramodernas foram aprendidas com obediência e servilismo pelas forças de repressão já nos anos 1960, continua aí como um impávido colosso. 

Policiais intimidam ilegalmente, seviciam e matam gente indefesa em todas as margens expandidas do Ipiranga. Depois, dão sumiço nos cadáveres. Amarildo não é um só. Amarildo é o nome de uma multidão de brasileiros.

A impunidade também continua incólume, como se fosse cláusula pétrea da negociação que, dizem, permitiu a transição pacífica para a democracia. 

A impunidade dos torturadores – ou, digamos com mais clareza, a impunidade dos civis e militares de alta patente que ordenaram ou permitiram que a tortura acontecesse em instalações sob seus comandos – impera ainda hoje sob o céu da pátria. Por meio da impunidade, o presente bate continência eterna para o passado.


Países vizinhos já julgaram e condenaram à prisão os comandantes ditatoriais. Enquanto isso, as instituições daqui seguem pisando em ovos. Há coisa de duas semanas, a Comissão da Verdade divulgou o nome dos oficiais responsáveis pela tortura e pelo assassinato (seguido de ocultação do cadáver) do deputado Rubens Paiva. A acusação foi lançada, a nação ficou em choque e... nada, nenhuma reação das Forças Armadas. Nenhuma esperança de justiça.

Além da prática da tortura e da impunidade perpétua, há uma face ainda mais perversa que se mantém fulgurante no florão da América. Essa face é a herança mais caprichosa que a ditadura nos legou: a propaganda ufanista. 

É realmente incrível, mas os governos brasileiros não aprenderam, até hoje, que o ufanismo é um recurso útil apenas aos regimes autoritários, pois serve acima de tudo para inibir a divergência. Ora, a democracia se alimenta de dissenso. Logo, a comunicação social de democracia deveria estimulá-lo, pois um ambiente de obediência social favorece não a liberdade, mas a tentação totalitária.

No tempo dos militares, tivemos aquele infame “Brasil, ame-o ou deixe-o” (mal traduzido do slogan americano “Love it or leave it”). Tínhamos também o “Este é um país que vai pra frente” e o “90 milhões em ação”, uma espécie de “marcha soldado” futebolístico. 

Agora, preste atenção. Hoje é tudo igual. “Eu sou brasileiro e não desisto nunca.” Tem cabimento? Os filipinos por acaso desistem logo? Os uruguaios? Os alemães? Será que estão insinuando que o brasileiro tem mais fibra que os outros povos?

A propaganda ufanista afirma subliminarmente que o governo é sinônimo do lábaro estrelado e que quem é contra ele é contra o Brasil. Essa comunicação oficial – autoritária, ética e esteticamente antidemocrática – prossegue imutável. É espantoso. É como se o imaginário da ditadura habitasse os palácios.

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