A ditadura
que persiste
Países
vizinhos já julgaram seus comandantes ditatoriais. Aqui, continuamos pisando em
ovos
O golpe militar de 31 de março de 1964 completa 50
anos. Cada um lembrará a data segundo lhe convém. Uns poucos – ainda bem que
poucos – festejarão o crime contra a democracia como se fosse um ato de heroísmo.
Os demais criticarão sem piedade a quartelada que ganhou o apelido de
“redentora”. Estarão por aí em seminários acadêmicos, atos partidários, ou
simplesmente escrevendo a respeito, como é o caso deste colunista.
Passado meio século da página infeliz – que contou
com o apoio decisivo do empresariado, dos Estados Unidos, das ditas autoridades
eclesiásticas, da imensa maioria dos meios de comunicação e de um contingente
avassalador de professores de Direito em suas egrégias congregações –, ninguém
mais gosta de dizer que foi a favor. Há também quem declare arrependimento,
algo que não prejudica.
A ditadura militar irrompeu como sintoma e se fixou
como doença. Debilitou a saúde nacional em todos os campos (por favor, não
venha dizer que “a economia melhorou”, porque mesmo os índices do tal “milagre
econômico” foram vilipendiados, usurpados e destroçados por um custo
civilizatório superior a qualquer ganho contábil). Não temos o direito de
esquecê-la. Quanto mais nos lembramos, mais nos prevenimos contra atrocidades
semelhantes.
As viúvas do golpismo têm garantido seu direito de
adular a memória dos que tomaram de assalto a capital federal, mas não têm mais
a prerrogativa ilegítima de calar os que discordam deles. Nunca mais. O pior
presidente eleito é infinitamente melhor do que o mais competente e virtuoso
ditador. Em todos os sentidos.
Absolutamente todos.
O esforço de manter viva a memória do trauma também
ajuda a enxergar o que resta da ditadura em nossos dias. Essa é a parte mais
chata, mas talvez seja a mais imprescindível na efeméride que se aproxima. A
tortura, cujas técnicas ultramodernas foram aprendidas com obediência e
servilismo pelas forças de repressão já nos anos 1960, continua aí como um
impávido colosso.
Policiais intimidam ilegalmente, seviciam e matam gente
indefesa em todas as margens expandidas do Ipiranga. Depois, dão sumiço nos
cadáveres. Amarildo não é um só. Amarildo é o nome de uma multidão de
brasileiros.
A impunidade também continua incólume, como se
fosse cláusula pétrea da negociação que, dizem, permitiu a transição pacífica
para a democracia.
A impunidade dos torturadores – ou, digamos com mais
clareza, a impunidade dos civis e militares de alta patente que ordenaram ou
permitiram que a tortura acontecesse em instalações sob seus comandos – impera
ainda hoje sob o céu da pátria. Por meio da impunidade, o presente bate
continência eterna para o passado.
Países vizinhos já julgaram e condenaram à prisão
os comandantes ditatoriais. Enquanto isso, as instituições daqui seguem pisando
em ovos. Há coisa de duas semanas, a Comissão da Verdade divulgou o nome dos
oficiais responsáveis pela tortura e pelo assassinato (seguido de ocultação do
cadáver) do deputado Rubens Paiva. A acusação foi lançada, a nação ficou em
choque e... nada, nenhuma reação das Forças Armadas. Nenhuma esperança de
justiça.
Além da prática da tortura e da impunidade
perpétua, há uma face ainda mais perversa que se mantém fulgurante no florão da
América. Essa face é a herança mais caprichosa que a ditadura nos legou: a
propaganda ufanista.
É realmente incrível, mas os governos brasileiros não
aprenderam, até hoje, que o ufanismo é um recurso útil apenas aos regimes
autoritários, pois serve acima de tudo para inibir a divergência. Ora, a
democracia se alimenta de dissenso. Logo, a comunicação social de democracia
deveria estimulá-lo, pois um ambiente de obediência social favorece não a
liberdade, mas a tentação totalitária.
No tempo dos militares, tivemos aquele infame
“Brasil, ame-o ou deixe-o” (mal traduzido do slogan americano “Love it or leave
it”). Tínhamos também o “Este é um país que vai pra frente” e o “90 milhões em
ação”, uma espécie de “marcha soldado” futebolístico.
Agora, preste atenção.
Hoje é tudo igual. “Eu sou brasileiro e não desisto nunca.” Tem cabimento? Os
filipinos por acaso desistem logo? Os uruguaios? Os alemães? Será que estão
insinuando que o brasileiro tem mais fibra que os outros povos?
A propaganda ufanista afirma subliminarmente que o
governo é sinônimo do lábaro estrelado e que quem é contra ele é contra o
Brasil. Essa comunicação oficial – autoritária, ética e esteticamente
antidemocrática – prossegue imutável. É espantoso. É como se o imaginário da
ditadura habitasse os palácios.
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