A maioria
está errada
Uma
campanha na internet reage contra os 65% que apoiam o estupro - e mostra que o
país não pertence a eles
Aos trancos e barrancos, o Brasil vai se tornando
um país melhor para quem vive aqui. Um dia depois da pesquisa do IPEA que
mostrou que 65% dos homens e mulheres brasileiros acreditam que mulheres que
“usam roupa que mostra o corpo merecem ser atacadas” – quer dizer, sexualmente
violentadas, estupradas, abusadas – entrou no ar, nas redes sociais, uma reação
espontânea contra essa barbaridade.
O movimento chama-se “Não mereço ser estuprada”,
foi criado pela jornalista Nana Queiroz, de 28 anos, e tem a cara da internet:
quem apoia faz uma foto de si mesmo com uma placa repetindo o mote da campanha.
É um selfie com conteúdo. As mulheres aderiram em peso, muitos homens entraram
na onda e a página do Facebook do movimento conseguiu – além de centenas de
fotos - quase 53 mil apoios. No domingo, o Fantástico entrevistou Nana Queiroz,
falou da campanha e abriu as páginas do programa na internet para quem quisesse
apoiar o protesto. Valeu Fantástico! Curti!
Muita gente ficou compreensivelmente amargurada com
o resultado da pesquisa do IPEA. É duro descobrir que 58,5% das pessoas ao
nosso redor (inclusive as mulheres, que foram 66% das pessoas entrevistadas
pela pesquisa), acham que se as mulheres “soubessem se comportar” haveria menos
estupros. Essa lógica é fruto da mais profunda ignorância.
Na Arábia Saudita, talvez o país mais atrasado do
mundo em termos de costumes, onde as mulheres não podem guiar automóveis ou
andar sozinhas nas ruas, uma pesquisa entre homens concluiu que a culpa dos
estupros é da maquiagem. Como as mulheres sauditas andam cobertas dos pés à
cabeça, e os homens só lhes veem os olhos, disseram que elas são estupradas
porque usam rímel. Quer dizer: ao exibir apenas os olhos maquiados, elas não
estão se comportando, por isso são violentadas.
Faz sentido essa conversa de má fé? Faz sentido
atribuir às mulheres a culpa pela violência criminosa dos homens? Claro que
não. Nem lá, nem aqui. No mundo inteiro, sabe-se que as mulheres são estupradas
usando todo tipo de roupa - inclusive o uniforme militar, quando servem o
exército.
A alegação de que “a culpa do estupro é delas” -
por estarem usando saia curta, ou por estarem sozinhas na rua, ou por andarem
de trem, voltando do trabalho – é uma ladainha machista que serve de desculpa
para criminosos. No Brasil, os números do IPEA mostram que essa visão
distorcida da realidade prolifera sobretudo entre pessoas de pouca instrução,
assim como entre alguns grupos religiosos.
“Chama atenção o fato de que os católicos têm
chance 1,4 vez maior de concordarem total
ou parcialmente com essa afirmação (a culpabilização do comportamento feminino
pela violência sexual), e evangélicos 1,5 vez maior”, diz o estudo. Eu, que não
sou religioso, mas cresci entre uma família católica e outra batista, não
reconheço esse cristianismo do “estupro merecido”.
O que mais me chocou na pesquisa, porém, foi o
apoio das mulheres à ideias que vão contra elas mesmas. Devem ser mulheres
tristes, recalcadas, que foram ensinadas a difamar aquelas que agem com
liberdade em relação ao próprio corpo. Por exibir pernas e decote, as
“exibidas” mereceriam ser estupradas. O problema com essa ideia – além do
preconceito sem justificativa contra a roupa e o comportamento dos outros - é
que estuprador não escolhe assim.
Segundo o IPEA, 70% das vítimas de estupro são
crianças e adolescentes. E 11% são do sexo masculino, adultos ou meninos.
Diante desses números, como fica a conversa sobre roupas? Vamos esconder as
pernas dos nossos meninos de 10 anos ou seria melhor proibir as meninas de 12
anos de usarem vestidos? Da minha parte, acho mais produtivo denunciar à
polícia os caras que andam pelas ruas assediando mulheres e meninas. Ou
defendendo na internet o estupro e o encoxamento no transporte público. Esses
são os verdadeiros culpados. As mulheres, adolescentes e crianças são vítimas.
Um dos efeitos surpreendentes da campanha de Nana
Queiroz foi a reação direta dos grupos pró-estupro contra ela. Os amigos e
simpatizantes dos estupradores foram à página dela no Facebook (homens e
mulheres, vejam bem) para ameaçar, xingar e se gabar de já ter estuprado.
Formou-se uma corrente de baixaria e ignorância de dar asco, que teve a
resposta que merecia: mais apoio à atitude de Nana, mais repercussão na
imprensa (inclusive internacional) e mais gente, muito mais gente, postando
fotos e aderindo ao movimento.
É por isso que eu acho que o Brasil tem jeito.
No passado, uma pesquisa como essa do IPEA teria
ficado apenas na constatação de que a maioria dos brasileiros (inclusive as
mulheres) é moralmente a favor do estupro, desde que as mulheres estejam usando
saia curta. Não haveria uma voz para rebater esse absurdo. Os machistas, os
ignorantes e os moralistas teriam, por assim dizer, a última palavra. Agora,
não.
Uma moça valente ficou indignada, fez um post no
Facebook, e, de repente, abriu espaço para que milhares de pessoas mostrassem a
sua indignação com a barbaridade exibida pela pesquisa. E isso acabou na TV, em
horário nobre. Quer dizer, a turma do estupro pode ser maioria estatística, mas
eles foram acuados pela reação da minoria moral – que, neste caso, acima de
qualquer dúvida, representa não apenas a Lei, mas a Justiça e a Civilização
como nós a entendemos no século XXI. Tudo em letras maiúsculas.
ATUALIZAÇÃO:
Soube esta tarde, sexta-feira 4 de abril, que o
IPEA errou feio na pesquisa que deu origem à coluna desta semana, com o título
"A maioria está errada".
Agora, o órgão que fornece estatísticas para o governo diz que 26% dos
brasileiros acham que mulheres que "usam roupa que mostre o corpo merecem ser atacadas".
O
número ainda é alto, mas está longe dos aberrantes 65% divulgados antes. Mas o
IPEA insiste que o outro dado chocante - que 58,5% dos entrevistados acham que
se as mulheres "soubessem se comportar" haveria menos estupros -
continua válido. Eu acho incongruente: se "apenas" 26% culpam a roupa
das mulheres pelos estupros, por que 58,5% acreditam que o estupro é culpa do
comportamento das mulheres?
Talvez a pesquisa do IPEA não tenha um só erro, mas
vários. De qualquer forma, com a revisão do percentual de pessoas que acha que
as mulheres merecem ser atacadas, algumas coisas que eu disse na coluna
perderam a validade, a começar pelo título.
É a minoria que está errada, não a
maioria.
Ainda bem. O que permanece firme é o meu otimismo em relação à
capacidade de reação da parte saudável do país. Confrontada com um aparente
absurdo machista, pessoas de bem como a jornalista Nana Queiroz se mobilizaram
em defensa da decência, da liberdade e contra o obscurantismo. Isso demonstra
que o país melhorou. Isso mostra que o Brasil tem jeito.
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