Os animais cometem suicídio?
Cães certamente
sentem emoções
Em 1845, uma
história curiosa apareceu nas páginas do Illustrated London News, um jornal da
capital britânica.
Um cachorro preto,
descrito como "fino, bonito e valioso", teria "se jogado na
água", em uma provável tentativa de suicídio. Suas pernas e patas estavam
"perfeitamente imóveis" - algo incomum para um cão em um rio.
Mais estranho ainda:
após ser retirado da água, o cachorro "rapidamente correu para a água e
tentou afundar mais uma vez".
O cão acabou
morrendo.
A julgar pelos
relatos da imprensa da época, ele estava longe de ser o único nessas
tentativas. Pouco tempo depois, outros dois casos apareceram em jornais
populares: um pato que teria se afogado de propósito e uma gata que se enforcou
em um galho após seus filhotes morrerem.
O que há de verdade
nesses episódios?
Sabemos que animais
podem sofrer problemas de saúde mental como humanos: sobretudo estresse e
depressão, mas animais realmente tentam suicídio?
Alguns cães morrem logo após os donos
Pergunta antiga
A questão não é
nova: os gregos antigos também a consideravam. Há mais de 2 mil anos,
Aristóteles citou um cavalo que se jogara num abismo após a revelação de que,
como Édipo, ele teria se relacionado com a própria mãe, sem saber.
No século 2º D.C., o
estudioso grego Claudius Aelian dedicou um livro inteiro ao tema. Citou 21
supostos casos de suicídio animais, incluindo um golfinho que se deixou
capturar, diversos cães que morreram de fome após a morte dos donos e uma águia
que "se sacrificou por combustão na pira de seu falecido dono".
Como o "cão
bonito" que se afogou, a ideia de suicídio animal continuou popular no
século 19. O psiquiatra William Lauder Lindsay disse que animais nessa condição
sofriam de "melancolia suicida" e descreveu como poderiam ser
"literalmente estimulados à fúria e paranoia" antes de um suicídio.
Naquela época, essas
ideias eram acolhidas por grupos de direitos dos animais. Ativistas buscavam
humanizar as emoções dos bichos, explica o historiador da medicina Duncan
Wilson, da Universidade de Manchester, na Inglaterra, que analisou referências
históricas ao suicídio animal em um artigo em 2014.
Os ativistas faziam
isso, afirma o especialista, para mostrar que os animais "compartilhavam a
capacidade de autoreflexão e intencionalidade, que incluía a possibilidade de
tentar tirar a própria vida por sofrimento ou fúria."
Um exemplo: uma
edição de 1875 da publicação científica Animal World trazia na capa um cervo
selvagem saltando para um provável suicídio. O texto dizia que "um cervo
selvagem, para não ser capturado por seus perseguidores, irá cair nas garras de
uma morte terrível."
Ciência e cultura
Contudo, com o
avanço da medicina no século 20, a atitude humana diante do suicídio se tornou
mais científica, e esse tipo de retrato "heroico" de animais suicidas
perdeu espaço.
O foco mudou para
suicídios que afetariam populações maiores, como resultado de pressão social,
diz Wilson. O suicídio se tornou algo como um mal social. Pegue os exemplos de
lemingues que aparentemente marcharam para se jogar de penhascos ou encalhes
coletivos de baleias.
Wilson não procurou
responder se os animais realmente tentam suicídio. Em vez disso, sua pesquisa
revelou que mudanças nas atitudes diante do suicídio humano se refletiram em
nossas histórias sobre bichos.
Apesar de relatos
nesse sentido, lemingues não se jogam de morros em suicídios coletivos.
Mas outro
pesquisador tentou encontrar essa resposta.
Antonio Petri,
psiquiatra na Universidade de Cagliari, na Itália, revisou a literatura sobre suicídio
animal e concluiu que histórias como as dos jornais do século 19 não devem nos
iludir.
Ele analisou cerca
de mil estudos publicados em 40 anos e não encontrou provas de que um animal
selvagem conscientemente pratique suicídio. Casos como o do livro do grego
Claudius Aelian são "fábulas antropomórficas (cuja forma aparente evoca
seres humanos)", diz ele.
Pesquisadores hoje
sabem que a morte coletiva de lemingues são um consequência triste de uma
população densa de criaturas emigrando juntas ao mesmo tempo.
Nos casos em que um
animal de estimação morre após o dono, isso se explica pela interrupção de um
laço social, afirma Preti. O animal não toma uma decisão consciente de morrer -
ele era tão acostumado ao dono que passa a não aceitar mais comida de ninguém.
"Pensar que o animal
morreu de suicídio como uma pessoa é apenas uma projeção de um estilo de
interpretação (romântica) humana."
Estresse animal
Esse exemplo chama a
atenção a um fato importante: o estresse pode alterar o comportamento de um
animal de modo a ameaçar sua vida.
Isso ocorreu no
parque SeaWorld de Tenerife, na Espanha, em maio de 2016.
Um vídeo que se
tornou viral mostra uma orca selvagem aparentemente tentando se manter fora do
tanque por cerca de dez minutos. Dezenas de reportagens afirmaram que o
mamífero tentara suicídio.
Sabemos que orcas se
comportam de maneira diferente em cativeiro do que em liberdade, o que não
surpreende, já que um tanque representa uma fração ínfima de um oceano.
Ambientes
artificiais costumam estressar orcas, desencadeando comportamento repetitivos
como ranger de dentes.
Quando essas
situações ocorrem, afirma Barbara King, do William & Mary College (EUA), é
importante entender quão profundamente esses animais vivenciam emoções. Isso
pode revelar por que eles podem agir de maneira tão autodestrutiva.
Baleias não estão
tentando suicídio quando encalham.
"Até onde sei,
a maioria desses casos tem algum tipo de intervenção humana, seja caça ou
confinamento", afirma King, que já escreveu muito sobre sofrimento animal
e suicídio.
Vários animais
mantidos em condições traumáticas também vivenciam situações similares ao
estresse, transtorno de estresse pós-traumático e depressão.
Um urso mantido em
uma fazenda na China sufocou seu filhote e depois se matou. Isso ocorreu depois
de uma dolorosa injeção de um cateter no abdome do filhote para extrair bile,
que às vezes é usada em remédios na medicina chinesa. Relatos na imprensa
sugeriram que ele teria matado o filhote e cometido suicídio para evitar mais
anos de tortura.
Esse talvez seja
outro exemplo de um comportamento não natural desencadeado pelo estresse e pelo
confinamento por longo período. Também pode ser visto como reflexo de "um
animal tentando fugir de seu cativeiro", diz Preti.
Destino conjunto
Outros animais que
costumam ser citados como suicidas são baleias que encalham em conjunto.
A causa de encalhe
não é clara até hoje. Uma hipótese é que possam ser causados por indivíduo
doente buscando segurança em águas mais rasas. Como baleias formam grupos
sociais, outros seguem esse indivíduo e também encalham. A ideia é conhecida
como "hipótese do integrante doente", mas não é considerada suicídio.
Uma explicação ainda
mais sutil sobre aquilo que parece ser comportamento autodestrutivo também pode
ser facilmente levantada. Há certos parasitas que infestam o cérebro dos
hospedeiros, causando atitudes incomuns que ajudam os parasitas a sobreviver. O
hospedeiro costuma morrer nesses casos.
Por exemplo, o
parasita Toxoplasma gondii infesta ratos e "desliga" o medo inato que
possuem de gatos. Se o gato comer o rato, o parasita se reproduz. Um estudo de
2013 indicou que uma infecção por T. gondii acaba com esse medo de maneira
permanente, mesmo se o parasita for eliminado.
Do mesmo modo, o
fungo parasita Ophiocordyceps unilateralis pode controlar a mente de formigas,
deixando-as como zumbis. Os insetos acabam sendo levados a morrer em locais
mais propícios ao desenvolvimento desses fungos.
Orca no SeaWorld
vivem em ambientes reduzidos e pequenos.
Há ainda o caso de
aranhas que deixam os filhotes comê-las. Embora elas morram no processo, esse
sacrifício não é um suicídio, mas um ato extremo de cuidado materno. A mãe
aranha fornece seu próprio corpo como uma importante e nutritiva primeira
refeição, que garante a sobrevivência do filhote.
Definindo suicídio
Para afirmar que tal
comportamento não se enquadra como suicídio é preciso ter uma definição de
suicídio. O ato costuma ser definido como "ação de se matar
intencionalmente ".
Sabemos que alguns
animais se matam. A questão é saber se tiveram essa intenção. A mãe aranha, por
exemplo, pode se comportar dessa forma para prover comida, não para morrer. A
ursa pode ter agido por estresse, não com o propósito de matar a si e ao
filhote.
Alguns especialistas
acreditam que essa pergunta seja impossível de responder.
Assim como
subestimamos a cognição animal por muito tempo, nós ainda não conseguimos ler a
mente dos animais. "Não estou convencido de que (suicídio animal) seja uma
questão que a ciência possa responder", afirma King. "Podemos
analisar seu comportamento visível, como fazemos quando sofrem, mas não podemos
saber se é algo intencional ou não."
Outros discordam.
Afirmam que algumas pessoas tentam se matar, mas animais não, por diferenças
nas habilidades cognitivas. A diferença-chave, afirma, é nossa habilidade de
pensar bem à frente, no futuro.
Muitos animais podem
fazer planejamentos. Alguns pássaros juntam alimentos para comer depois.
Primatas como orangotangos e bonobos armazenam ferramentas para uso no futuro.
Mas isso não demanda consiciência sobre o que significa estar vivo.
Planejar um suicídio
demanda um entendimento detalhado sobre nosso lugar no mundo e uma habilidade
para imaginar a própria ausência. Isso exige imaginação.
O que podemos
aprender com o inemuri, o costume japonês de dormir em qualquer lugar.
Em 1875, um cervo
teria se lançado em um penhasco para evitar ser caçado por cães.
"Humanos têm a
capacidade de imaginar cenários, refletir sobre eles e associá-los a narrativas
mais amplas", afirma Thomas Suddendorf, psicólogo evolucionista na
Universidade de Queensland, na Austrália.
A maioria de nós
supera essas preocupações. Temos um viés otimista inato, que nos dá uma visão
mais positiva sobre o futuro, mas isso não ocorre com quem tem depressão - para
essas pessoas, o futuro parece sombrio.
Pessoas deprimidas
apreciam verdadeiramente a realidade, diz Ajit Varki, da Universidade da
Califórnia, que tem escrito sobre a singularidade humana e nossa capacidade de
negar a morte.
"Uma das
realidades é que você vai morrer." O resto de nós tem uma habilidade
extraordinária para ignorar esta eventualidade, algo que Varki classifica como
"um capricho evolucionário".
Varki sugere que
todos os possíveis casos de suicídio animal possam ser explicados por outros
meios. Animais choram, reconhecem seus mortos e têm medo de cadáveres, por
exemplo, mas não temem a morte "como uma realidade".
"É um medo de
situações perigosas que potencialmente podem levar à morte", avalia Varki.
Pensar assim faz
mais sentido. Se animais negassem os riscos de morte como fazem muitos humanos,
zebras iriam passear perto de leões, peixes nadariam ao lado de crocodilos e
ratos encarariam cobras.
Se fossem tão
autoconscientes como nós, talvez parassem de defender seus territórios ou
buscar comida. Eles possuem uma resposta inata ao medo por uma boa razão: ficar
vivo.
Somos o único animal
capaz de entender e lidar com nossa própria mortalidade, diz Varki,
precisamente porque somos essas criaturas otimistas com um nível sofisticado de
autoconsciência.
"O que é
suicídio?", questiona o pesquisador. "É induzir a própria
mortalidade, mas como você pode induzi-la se não sabe que é mortal? É
(portanto) bem lógico que o suicídio seja algo unicamente humano."
http://www.bbc.com/portuguese/vert-earth-37082946
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