René
Descartes e a dúvida hiperbólica
Para
Descartes, não há homens com mais e homens com menos razão
Viver em um ambiente onde todos os discursos
pretendem alcançar a verdade das coisas é compartilhar de um espetáculo
verborrágico onde as dúvidas e as certezas têm as mesmas possibilidades de
sucesso. A razão é a coisa mais bem distribuída entre os homens. E o é de tal
forma que ninguém se julga dela querer mais do que a que já possui. É assim que
o filósofo francês vai iniciar sua obra sobre o método.
Para Descartes, não há homens com mais e homens com
menos razão. Esta é uma característica inata inerente à espécie humana. Então
como pode haver o erro nos juízos? É preciso buscar um fundamento seguro e
definitivo em que a verdade possa ser universalizada.
Os gregos admitiam que ao observarem a natureza,
eles interpretariam, desvelariam a verdade contida na phýsis e a partir disso
guiariam seus destinos, seguindo os imperativos do cosmo. Os medievais (leia-se
os cristãos) entendiam que o fundamento da realidade era Deus e a verdade
revelada consistia nas leis que o homem deve conhecer para agir.
Ambas pensam
na perspectiva do objeto. Ambas imaginam poder deduzir a verdade, seja da
autoridade da natureza, seja de Deus, o que nos permite considerar tal
filosofia como realista (res = coisas). Assim, o homem, como sujeito, não passa
de um mero espectador da peça divina ou da maravilha do cosmo. É uma peça
determinada que apenas cumpre uma função sem ter nenhuma importância no papel
de descoberta da realidade.
Dessa forma, os discursos e as ações eram
realizadas sob a autoridade sempre externa das passivas marionetes humanas.
Todas as maravilhas bem como as desgraças eram causadas em nome de Deus ou em
prol do Todo. Com isso, vão surgindo contradições no real que despertam a
argúcia e inteligência daqueles que não veem o homem meramente como um agente
passivo no processo de conhecimento.
Essas contradições levaram os homens a descrerem de
Deus e dos próprios homens, suspendendo os juízos de realidade,
impossibilitando o conhecimento (ceticismo). Eis que surge um homem capaz de
salvar a verdade, atribuindo a responsabilidade desta ao construtor dos
argumentos.
Descartes utiliza-se do mesmo método daqueles
céticos que não acredita que o mundo possa ser conhecido. Assim, ele duvida de
tudo o que é possível duvidar (do corpo, das pessoas, de Deus, de si mesmo, do
mundo, etc.) até que chega um momento em que a dúvida cessa.
Pode-se duvidar de
qualquer coisa, mas jamais pode-se duvidar de que para duvidar é preciso
pensar. Cogito ergo sum (Penso, logo existo!) é a primeira e mais fundamental
evidência da verdade da qual se deve partir. Isso quer dizer que todo
conhecimento possível é humano, até mesmo as interpretações sobre Deus, o que
se diz dele. Então ele é uma mera criação de nossa fantasia? Talvez! Mas não
segundo Descartes, para quem Deus é um ser necessário como segunda verdade
devido à consciência do sujeito pensante de sua própria imperfeição.
Temos, portanto, uma divisão de duas substâncias,
já que o pensamento é real enquanto o resto depende deste: a Res extensa, que é
a matéria e a Res cogitans, que é o espírito, razão ou somente sujeito pensante
(em termos universais).
Esse dualismo psicofísico subordina o mundo à mente
humana de modo que somente pelas representações do espírito se conhece as
coisas, ou seja, elas só ganham sentido (leia-se existência) a partir de uma
abordagem que constrói argumentativamente o mundo através de princípios
puramente inteligíveis. E o caminho para se chegar a esses princípios é o que
Descartes escreve no seu Discurso do método:
1. Evidência: segundo Descartes é a regra que nos permite
ter clareza e distinção dos princípios inteligíveis. Por serem simples ideias,
são a fonte de toda construção teórica do saber;
2. Análise: é o processo pelo qual decompomos
nossas representações imediatas em representações mais simples a fim de organizar
e ordenar os dados de forma a compreender o objeto;
3. Síntese: momento ao qual se chega depois da
decomposição; significa que o todo desorganizado de uma representação é
sintetizado numa ordenação de suas partes, compondo-o em um todo, agora, organizado;
4. Enumeração: como há possibilidades de falhas,
trata-se de uma verificação geral do processo com a finalidade de garantir que
foi feita correta e devidamente a análise do objeto.
Em outras palavras, Descartes submete os dados dos
sentidos (fonte de erro) ao jugo da razão humana (fonte de verdade). Para
entender melhor do que se trata, bem como para se entender o funcionamento do
método, vamos ver como Descarte considera as ideias ou representações humanas:
- Ideias adventícias: são as representações
oriundas dos sentidos (advém = vem de fora). Nestas estão a fonte de erros dos
juízos, pois um juízo não é feito sobre coisas e sim sobre o modo como
compreendemos coisas. Assim, juízos que são baseados nestas ideias, segundo
Descartes, são fontes do erro, pois nos dizem como a coisa aparece e não o que
ela é;
- Ideias fictícias: ficção é o nome para o que não
existe. Significa dizer que nossa imaginação pode, a partir de ideias
adventícias, formar seres que não têm nenhuma correspondência com a realidade
(cavalo alado, por exemplo, que é a ideia de cavalo com asas). Jamais nos
instruem sobre algo;
- Ideias inatas: são princípios simples por si
mesmos e de índole matemática. Só é possível representar ao espírito por uma
intuição (ou seja, não são coisas). Por exemplo, o círculo, o triângulo, a
perfeição, etc. São a marca do criador em nosso espírito e que nos permite
conhecer os objetos particulares. São deduzidas e demonstradas apenas
racionalmente.
Logo, é com esses critérios que, segundo Descartes,
pode haver ciência absoluta e universal entendida como uma construção de um
sujeito pensante e, por isso, ativo no processo do conhecer. As consequências e
responsabilidades são sempre humanas. Se Deus ajuda, é devido a uma intervenção
que não pode ser evidenciada (ou seja, seus projetos não podem ser conhecidos).
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