NUNCA É TARDE
Estreia hoje na seção Homens de Segunda o jornalista capixaba Marcos
Sacramento, 35 anos, fã de esportes, livros e de um belo pôr do sol. Bom de
prosa, hoje ele fala de um personagem com dificuldades de se envolver.
Ele estava no bar com um amigo. Entre as tantas afinidades, a música era
a principal delas e por isso o assunto predominante nas raras vezes em que se
encontravam. O amigo, mais extrovertido e conversador que ele, falava e falava
do The Who. Ah, o The Who. Como o amigo conhecia o The Who. Dava gosto vê-lo
discorrer sobre as nuances sonoras de Quadrophenia, relatos de quebradeiras de
instrumentos e histórias que a Rolling Stone não contou. Ele escutava e só
comentava as obviedades que seu conhecimento sobre rock permitia.
Chegou a hora e os dois amigos se despediram do breve encontro. O amigo
chamou um táxi e Ele (vou chamá-lo assim, de Ele, sem que isso tenha qualquer
significado de divindade) seguiu a pé, já que morava perto dali.
Andava devagar, mãos nos bolsos e meio cabisbaixo. Sentia um
desconforto, um pequeno mal estar. Não, não era culpa das duas tulipas de chope
mal tiradas nem dos pastéis consumidos enquanto papeavam. O mal estar era na
alma. O que o incomodava era a intimidade do amigo com o The Who. Ele conhecia
bem o sujeito, e por isso sabia da relação dele com algumas dezenas de bandas
de rock. Uma relação maior que o simples conhecimento enciclopédico. O amigo,
naquela conversa de bar, não estava querendo mostrar conhecimento ou
impressionar. Não havia espaço para isso na amizade de anos e anos. Ele sabia
que o amigo comia, bebia, respirava e transpirava rock’n'roll e aquela conversa
cheia de minúcias era apenas a expressão da grande energia dedicada a escutar
as mesmas músicas repetidas vezes, ler biografias, debater com outros
entendedores, ir a shows e tudo mais que cabe no relacionamento entre um fã e
sua banda favorita.
Ele fora tocado, assim, de estalo, pela percepção de que não era
entendedor profundo de nenhum assunto. Assim como o amigo, era fã de rock,
conhecia centenas de grupos e artistas de épocas e estilos diferentes, mas
nunca se debruçou na história de uma banda, mergulhou de ponta a ponta nas
faixas de um álbum ou no estilo de um guitarrista a ponto de identificá-lo em
poucas notas. Sua relação com o futebol era parecida, pois apesar de ter seu
time do coração e gostar de chutar uma bola, não conhecia os recônditos da
história do clube e ignorava vergonhosamente a maioria das estrelas da
Champions League. Porém o que realmente o incomodava naquela noite de
terça-feira quente e ordinária era sentir que seu conhecimento não era
superficial apenas em relação a música ou futebol. Percebeu ali que nunca havia
conhecido de verdade uma mulher sequer.
Como arquivos de mp3, cds, discos de vinis e fitas cassete, Ele
colecionara durante a vida várias mulheres sem se aprofundar em nenhuma delas.
A intimidade do amigo com o The Who detonou nele algum mecanismo que o mostrou
como sua relação com o sexo feminino era superficial. Ele nunca penetrou na
alma, nos mistérios de uma mulher. Nunca criou códigos particulares com a
parceira ou foi capaz de dizer algo apenas com o olhar. Jamais baixou a guarda,
foi sincero e deixou a companheira do momento conhecer suas fraquezas. Nem
mesmo cultivou proximidade suficiente a ponto de escolher um presente sem
apelar para algo pouco pessoal. Ele percebia, agora, que construíra um muro
entre o sexo feminino, barreira transposta somente pelo contato animalesco
entre os corpos.
Lembrou de algumas moças que passaram por sua vida e lamentou o quanto
perdeu por não deixá-las entrar na sua torre de marfim. Quantas emoções foram
desperdiçadas por sua postura distante diante da Lilian da Fabiana, da Stefanie,
da Laura …
Sentia-se incompleto, como se tivesse deixado de cumprir um rito
fundamental na existência masculina, como as brigas de escola na quinta série,
o pavor de ser incorporado ao serviço militar ou os porres da faculdade.
Ele já estava em casa, debaixo de chuveiro, tomando um banho gelado para
aliviar o calor do corpo e a angústia do espírito. Banho tomado, partiu para
reverter a situação. Colocou um David Bowie para tocar, convicto a ser o melhor
entendedor de Bowie da sua turma, e ao som de Moonage Daydream, prometeu a si
mesmo que iria demolir a barreira e arrancar a cerca de arame farpado ao redor
do seu coração.
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