segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Será mesmo?


NUNCA É TARDE
Estreia hoje na seção Homens de Segunda o jornalista capixaba Marcos Sacramento, 35 anos, fã de esportes, livros e de um belo pôr do sol. Bom de prosa, hoje ele fala de um personagem com dificuldades de se envolver.
Ele estava no bar com um amigo. Entre as tantas afinidades, a música era a principal delas e por isso o assunto predominante nas raras vezes em que se encontravam. O amigo, mais extrovertido e conversador que ele, falava e falava do The Who. Ah, o The Who. Como o amigo conhecia o The Who. Dava gosto vê-lo discorrer sobre as nuances sonoras de Quadrophenia, relatos de quebradeiras de instrumentos e histórias que a Rolling Stone não contou. Ele escutava e só comentava as obviedades que seu conhecimento sobre rock permitia.
Chegou a hora e os dois amigos se despediram do breve encontro. O amigo chamou um táxi e Ele (vou chamá-lo assim, de Ele, sem que isso tenha qualquer significado de divindade) seguiu a pé, já que morava perto dali.
Andava devagar, mãos nos bolsos e meio cabisbaixo. Sentia um desconforto, um pequeno mal estar. Não, não era culpa das duas tulipas de chope mal tiradas nem dos pastéis consumidos enquanto papeavam. O mal estar era na alma. O que o incomodava era a intimidade do amigo com o The Who. Ele conhecia bem o sujeito, e por isso sabia da relação dele com algumas dezenas de bandas de rock. Uma relação maior que o simples conhecimento enciclopédico. O amigo, naquela conversa de bar, não estava querendo mostrar conhecimento ou impressionar. Não havia espaço para isso na amizade de anos e anos. Ele sabia que o amigo comia, bebia, respirava e transpirava rock’n'roll e aquela conversa cheia de minúcias era apenas a expressão da grande energia dedicada a escutar as mesmas músicas repetidas vezes, ler biografias, debater com outros entendedores, ir a shows e tudo mais que cabe no relacionamento entre um fã e sua banda favorita.
Ele fora tocado, assim, de estalo, pela percepção de que não era entendedor profundo de nenhum assunto. Assim como o amigo, era fã de rock, conhecia centenas de grupos e artistas de épocas e estilos diferentes, mas nunca se debruçou na história de uma banda, mergulhou de ponta a ponta nas faixas de um álbum ou no estilo de um guitarrista a ponto de identificá-lo em poucas notas. Sua relação com o futebol era parecida, pois apesar de ter seu time do coração e gostar de chutar uma bola, não conhecia os recônditos da história do clube e ignorava vergonhosamente a maioria das estrelas da Champions League. Porém o que realmente o incomodava naquela noite de terça-feira quente e ordinária era sentir que seu conhecimento não era superficial apenas em relação a música ou futebol. Percebeu ali que nunca havia conhecido de verdade uma mulher sequer.
Como arquivos de mp3, cds, discos de vinis e fitas cassete, Ele colecionara durante a vida várias mulheres sem se aprofundar em nenhuma delas. A intimidade do amigo com o The Who detonou nele algum mecanismo que o mostrou como sua relação com o sexo feminino era superficial. Ele nunca penetrou na alma, nos mistérios de uma mulher. Nunca criou códigos particulares com a parceira ou foi capaz de dizer algo apenas com o olhar. Jamais baixou a guarda, foi sincero e deixou a companheira do momento conhecer suas fraquezas. Nem mesmo cultivou proximidade suficiente a ponto de escolher um presente sem apelar para algo pouco pessoal. Ele percebia, agora, que construíra um muro entre o sexo feminino, barreira transposta somente pelo contato animalesco entre os corpos.
Lembrou de algumas moças que passaram por sua vida e lamentou o quanto perdeu por não deixá-las entrar na sua torre de marfim. Quantas emoções foram desperdiçadas por sua postura distante diante da Lilian  da Fabiana, da Stefanie, da Laura …
Sentia-se incompleto, como se tivesse deixado de cumprir um rito fundamental na existência masculina, como as brigas de escola na quinta série, o pavor de ser incorporado ao serviço militar ou os porres da faculdade.
Ele já estava em casa, debaixo de chuveiro, tomando um banho gelado para aliviar o calor do corpo e a angústia do espírito. Banho tomado, partiu para reverter a situação. Colocou um David Bowie para tocar, convicto a ser o melhor entendedor de Bowie da sua turma, e ao som de Moonage Daydream, prometeu a si mesmo que iria demolir a barreira e arrancar a cerca de arame farpado ao redor do seu coração.

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