Maquiavel e a autonomia da política
O intelectual Nicolau Maquiavel tratou principalmente sobre política na
obra “O príncipe”, descrevendo como o governante deveria agir e quais virtudes
deveria ter a fim de se manter no poder e aumentar as conquistas.
Maquiavel ensinou como o governante deveria agir e quais virtudes
deveria ter a fim de se manter no poder e aumentar suas conquistas
Nicolau Maquiavel, nascido na segunda metade do século XV, em Florença,
na Itália, trata-se de um dos principais intelectuais do período chamado
Renascimento, inaugurando o pensamento político moderno. Ao escrever sua obra
mais famosa, “O Príncipe”, o contexto político da Península Itálica estava conturbado,
marcado por uma constante instabilidade, uma vez que eram muitas as disputas
políticas pelo controle e manutenção dos domínios territoriais das cidades e
estados.
Conhecer a trajetória como figura pública e intelectual é muito
importante para que as circunstâncias nas quais este pensador pensou e escreveu
tal obra sejam compreendidas. Maquiavel ingressou na carreira diplomática em um
período em que Florença vivia uma República após a destituição dos Médici do
poder. Contudo, com a retomada dessa dinastia, Maquiavel foi exilado, momento
em que se dedicou à produção de “O Príncipe”. Esta sua obra seria, na verdade,
uma espécie de manual político para governantes que almejassem não apenas se
manter no poder, mas ampliar suas conquistas. Em suas páginas, o governante
poderia aprender como planejar e meditar sobre seus atos para manter a
estabilidade do Estado, do governo, uma vez que Maquiavel conta sucessos e
fracassos de vários reis para ilustrar seus conselhos e opiniões. Além disso,
para autores especializados em sua vida e obra, Nicolau Maquiavel teria escrito
esse livro como uma tentativa de reaproximação do governo Médici, embora não
tenha logrado êxito num primeiro momento.
Outro fator fundamental para se estudar o pensamento maquiaveliano é o
pano de fundo da Europa naquele período, do ponto de vista das ideologias e do
pensamento humano. Ao final da Idade Média, retomava-se uma visão
antropocêntrica do mundo (que considera o homem como medida de todas as coisas)
presente outrora no pensamento das civilizações mais antigas como a Grécia, a
qual permitiu o despontar de uma outra ideia política, que não apenas aquela
predominante no período medieval. Em outras palavras, a retomada do humanismo
iria propor na política a “liberdade republicana contra o poder
teológico-político de papas e imperadores”, como afirma Marilena Chauí (2008).
Isso significaria a retomada do humanismo cívico, o que pressupõe a construção
de um diálogo político entre uma burguesia em ascensão desejosa por poder e uma
realeza detentora da coroa. É preciso lembrar que a formação do Estado moderno
se deu pela convergência de interesses entre reis e a burguesia, marcando-se um
momento importante para o desenvolvimento das práticas comerciais e do
capitalismo na Europa. Assim, Maquiavel assistia em seu tempo um maior
questionamento do poder absoluto dos reis ou de alguma dinastia, como os Médici
em Florência, uma vez que nascia uma elite burguesa com seus próprios
interesses, com a exacerbação da ideia de liberdade individual. Questionava-se
o poder teocêntrico e desejava-se a existência de um príncipe que, detentor das
qualidades necessárias, isto é, da virtú, poderia garantir a estabilidade e
defesa de sua cidade contra outras vizinhas.
Dessa forma, considerando esse cenário, Maquiavel produziu sua obra com
vistas à questão da legitimidade e exercício do poder pelo governante, pelo
príncipe. A legitimação do poder seria algo fundamental para a questão da
conquista e preservação do Estado, cabendo ao bom rei (ou bom príncipe) ser
dotado de virtú e fortuna, sabendo como bem articulá-las. Enquanto a virtú
dizia respeito às habilidades ou virtudes necessárias ao governante, a fortuna
tratava-se da sorte, do acaso, da condição dada pelas circunstâncias da vida.
Para Maquiavel “...quando um príncipe deixa tudo por conta da sorte, ele se
arruína logo que ela muda. Feliz é o príncipe que ajusta seu modo de proceder
aos tempos, e é infeliz aquele cujo proceder não se ajusta aos tempos.”
(MAQUIAVEL, 2002, p. 264). Conforme afirma Francisco Welffort (2001) sobre
Maquiavel, “a atividade política, tal como arquitetara, era uma prática do
homem livre de freios extraterrenos, do homem sujeito da história. Esta prática
exigia virtú, o domínio sobre a fortuna”. (WELFFORT, 2001, p. 21).
Contudo, a forma como a virtú seria colocada em prática em nome do bom
governo deveria passar ao largo dos valores cristãos, da moral social vigente,
dada a incompatibilidade entre esses valores e a política segundo Maquiavel.
Para Maquiavel, “não cabe nesta imagem a ideia da virtude cristã que prega uma
bondade angelical alcançada pela libertação das tentações terrenas, sempre à
espera de recompensas no céu. Ao contrário, o poder, a honra e a glória,
típicas tentações mundanas, são bens perseguidos e valorizados. O homem de
virtú pode consegui-los e por eles luta” (WELFFORT, 2006, pg. 22). Assim, essa
interpretação maquiaveliana da esfera política foi que permitiu surgir ideia de
que “os fins justificam os meios”, embora não se possa atribuir literalmente essa
frase a Maquiavel. Além disso, fez surgir no imaginário e no senso comum a
ideia de que Maquiavel seria alguém articuloso e sem escrúpulo, dando origem à
expressão “maquiavélico” para designar algo ou alguém dotado de certa maldade,
frio e calculista.
Maquiavel não era imoral (embora o livro tenha sido proibido pela
Igreja), mas colocava a ação política (construída pela soma da virtú e da
fortuna) em primeiro plano, como uma área de ação autônoma levando a um
rompimento com a moral social. A conduta moral e a ideia de virtude como valor
para bem viver na sociedade não poderiam ser limitadores da prática política. O
que se deve pensar é que o objetivo maior da política seria manter a
estabilidade social e do governo a todo custo, uma vez que o contexto europeu
era de guerras e disputas. Nas palavras de Welffort (2001), Maquiavel é
incisivo: há vícios que são virtudes, não devendo temer o príncipe que deseje
se manter no poder, nem esconder seus defeitos, se isso for indispensável para
salvar o Estado. “Um príncipe não deve, portanto, importar-se por ser
considerado cruel se isso for necessário para manter os seus súditos unidos e
com fé. Com raras exceções, um príncipe tido como cruel é mais piedoso do que
os que por muita clemência deixam acontecer desordens que podem resultar em
assassinatos e rapinagem, porque essas consequências prejudicam todo um povo,
ao passo que as execuções que provêm desse príncipe ofendem apenas alguns
indivíduos” (MAQUIAVEL, 2002, p. 208). Dessa forma, a soberania do príncipe dependeria
de sua prudência e coragem para romper com a conduta social vigente, a qual
seria incapaz de mudar a natureza dos defeitos humanos.
Assim, a originalidade de Maquiavel estaria em grande parte na forma
como lidou com essa questão moral e política, trazendo uma outra visão ao
exercício do poder outrora sacralizado por valores defendidos pela Igreja.
Considerado um dos pais da Ciência Política, sua obra, já no século XVI,
tratava de questões que ainda hoje se fazem importantes, a exemplo da legitimação
do poder, principalmente se considerarmos as características do solo arenoso
que é a vida política.
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