Darcy Ribeiro e o povo brasileiro
Darcy Ribeiro, "homem de fé e de
partido", como confessou, talvez um dos mais eminentes
intelectuais-políticos do Brasil do após-guerra, ativista da cultura, fundador
de universidades, antropólogo de fama, teve reconhecimento internacional: Doutor
Honoris Causa pela Sorbone.
Um tanto antes de falecer, em fevereiro de 1997,
deixou uma esmerada síntese sobre a diversidade geo-étnica da população
brasileira no seu ensaio histórico-antropológico intitulado O Povo Brasileiro,
editado em 1995. Viu o país-continente fortemente empenhado "na construção
de uma civilização original: tropical, mestiça e humanista". Uma
"Nova Roma" como gostava de dizer.
Antropologia geral
A obra de Darcy Ribeiro pertence a uma
geração de antropólogos pós-coloniais. Os que, pós-Segunda Guerra Mundial,
desejavam romper com a antropologia eurocêntrica que via os habitantes de
outros continentes mais atrasados como naturalmente inferiores, vocacionados
para servir mais do que para mandar, sendo desqualificados para conduzir o
autogoverno.
Ao mesmo tempo, ele lançou-se à obra de
fazer inclinar o interesse pelas coisas do Brasil em favor do povo comum que
compõe esta imensa população miscigenada e muito pobre que se abriga no
país-continente.
No fluxo da época, aquela geração posicionava-se
de uma maneira crítica no tocante à politica das metrópoles colonialistas,
apontando sistematicamente seus defeitos e violações. Bem ao contrário dos
historiadores e ensaístas brasileiros-lusitanistas das épocas anteriores.
Em oposição a Gilberto Freyre (a quem ele
não deixou de devotar admiração apesar de lusófilo assumido, que viu a nação
brasileira de cima do olhar do patriciado nordestino, particularmente do
Pernambucano - Casa Grande e Senzala, 1933), Darcy esmerou-se em destacar o
crioulo, o indígena, o caboclo, o vaqueiro, o matuto, o caipira, e tanta gente
mais.
Esforçou-se a realçar, desde os tempos coloniais (1500-1822), a modesta
dignidade destes e sua contribuição na construção do país-nação. O livro dele,
como Darcy Ribeiro abertamente confessou, não é um tratado acadêmico, mas
procura a polêmica e a denúncia. É lavra de um intelectual engajado nas lutas
políticas e sociais do seu país.
A sociedade brasileira na colônia e império
A dualidade da sociedade brasileira,
resultado da expansão ultramarina lusitana do século 16, dava-se em dois
sentidos: na relação do reinol contra os nativos (as centenas e centenas de
tribos que habitavam o Brasil dos 1500), a quem a gente portuguesa tratou de
submeter e reduzir à escravidão e, quase que simultaneamente, na fundação de
uma unidade produtiva açucareira marcada pela relação do senhor de engenho
frente aos escravos africanos.
Nesta gigantesca obra de conquista e
dominação que se estendeu por mais de três séculos e meio, os reinóis contaram
não somente com o suporte da Corte portuguesa como também com a chegada de
diversas ordens religiosas (com destaque para a Companhia de Jesus) que vieram
missionadas para a catequese dos nativos e dos escravos.
Como integrante da intelectualidade
esquerdista que foi fortemente influenciada pelo marxismo (Evolução Política do
Brasil, de Caio Prado Junior, de 1933) e pelo nacional-populismo (Getulismo,
1930-1954), Darcy Ribeiro voltou-se para a denúncia da exploração do Brasil
Colônia e a sua continuidade no Império e República.
No topo, no mando de tudo, estava o
patriciado formado por descendentes de lusitanos (donos de terra, traficantes
de escravos, comerciantes, altos burocratas). Na base, uma multidão de
miseráveis ou semimiseráveis formada por negros, mestiços ou brancos
paupérrimos que "viviam por favor" nas bordas das propriedades.
A grande mácula do país, entre tantas mais,
havia sido a política de não integração da massa amestiçada no processo de
cidadania. O brasileiro pobre e racialmente miscigenado passou a ter uma vida à
margem do restante da sociedade urbana, habitando malocas nas periferias,
favelas no alto dos morros cariocas, choupanas de palha em vilarejos miseráveis
por todo interior do país. Situação que está longe, muito longe de vir a ser
atenuada algum dia.
A chave para a explicação da abismal desigualdade de
classes no Brasil residia numa palavra: exploração. A histórica: da metrópole
sobre a colônia; e a social: a do senhor sobre o escravo e, após a abolição, da
elite sobre o povo em geral.
Cedendo às teses eco-marxistas e
ambientalistas que então começaram a espocar, o autor vê o processo de
colonização praticamente como um ato de depredação da natureza e rapinagem das
riquezas e dos nativos. "Desmontam morrarias incomensuráveis (devastação
da floresta atlântica e dos picos de Minas Gerais). Erodem e arrasam terras sem
conta. Gastam gente em milhões". Nesta enorme operação destrutiva, em meio
a intensas transformações, apenas a classe dominante "permaneceu igual a
si mesma exercendo sua interminável hegemonia" (pág. 69).
O destino do Brasil Colônia já havia sido
traçado de modo irrevogável três séculos antes pelo Padre Antonil (Cultura e
opulência do Brasil, 1711), determinando que sua "vocação", por assim
dizer, era exportar seus produtos primários, principalmente aqueles forjados
nos engenhos, os quais ele detalhadamente estudou.
A Independência, obtida em 1822, não
significou a emancipação da mão de obra escravizada espalhada pelos eitos,
aldeias e cidades. Ao contrário, o fluxo do tráfico negreiro se estendeu ainda
até 1850 (lei Eusébio de Queirós) e a manumissão só foi alcançada em 13 de maio
de 1888. Enquanto a Grã-Bretanha tratava de ampliar a introdução do maquinário
movido por fornalhas a carvão, no Brasil queimava-se "carvão humano"
em "moinhos de gastar gente".
O Brasil foi o maior império escravista do
Mundo Ocidental em todos os tempos
Escravidão e imigração
A exploração nefanda durou mais de 350 anos
no Brasil, provavelmente mais tempo do que durante o império romano,
superando-o em número de escravos e em área dedicada ao trabalho servil. Neste
sentido, o país foi o maior império escravista do Mundo Ocidental em todos os
tempos.
A chegada dos imigrantes europeus que vieram
substituir os escravos acentuou ainda mais a marginalização do
"brasileiro", isto é, a "gente parda". Daí Darcy Ribeiro,
sem desconsiderar sua importância, não se mostra um entusiasta do translado dos
"brancarrões" vindos da Europa, pois eles aprofundavam o desinteresse
pela massa mestiça, mais pobre e mais abandonada.
As atenções governamentais do império e da
república se voltaram para atender as precisões dos recém-desembarcados
(subvenção de passagens, entrega de terras, ferramentais e sementes etc.). As
costas das autoridades voltaram-se ostensivamente contra os seus(*).
(*)
As motivações iniciais para a atração da
imigração europeia a fim de povoar áreas remotas e vazias do território
brasileiro (alemães e italianos no sul do país) foi feita com diversas
intenções: a primeira delas era a substituição da mão de obra escrava pela mão
de obra colonial ou mesmo assalariada para que o setor produtivo,
particularmente o café, não viesse a ser prejudicado. A isto se somou a
doutrina racista do branqueamento da população, constituída em sua maioria de
mestiços.
A formação de uma classe média dotada de
tecnologia de pequena escala, na forma de artesãos, profissionais mestres
(ferreiros, carpinteiros, marceneiros, moveleiros, moleiros, construtores
etc.).
Nos começos, era o próprio imigrante quem
assumia os gastos do translado para o Brasil, mas, desde 1882, em vista da
crescente concorrência com a Argentina é que foi adotada a imigração
subvencionada pelo governo.
O que é o brasileiro
O brasileiro de hoje é produto de três
etnias que foram gradativamente perdendo a identidade, afastando-se das suas
raízes. O nativo se desindianizou, o negro se desafricanizou e o branco se
deseuropeurizou, gestando o que ele denominou de PROTOCÉLULA ÉTNICA
NEOBRASILEIRA.
Para Darcy Ribeiro, isto é um sinal evidente
que neste subcontinente, racial e culturalmente desbastado, apesar de tudo, se
gestou um novo tipo de civilização: a Civilização Tropical Brasileira (que,
segundo Gilberto Freyre, era o grande legado da colonização lusitana), distante
da cultura nativa aqui existente antes da conquista e mais afastada ainda da
civilização europeia, apesar de importar sistematicamente tudo que surgia por
lá. Como afirmou Simon Bolívar em certa ocasião: "não somos índios nem
europeus".
Trata-se de algo singular, entre outras
razões, porque é uma civilização calcada na intensa miscigenação das etnias. O
país-nação em formação é um caldeirão de raças que convivem em relativa
harmonia, mas está longe de ser uma "democracia racial" como exaltou
Gilberto Freyre. Ainda que exista preconceito por parte dos brancos, jamais
alcançou a violência do ódio racial facilmente constatado na história dos
Estados Unidos. Todavia, esta "paz racial" bem pouco contribuiu para
minimizar o abismo social que aparta os ricos dos pobres, como qualquer
levantamento estatístico confere e a própria vista das cidades brasileiras
demonstra.
No momento de explicar quais motivos levaram
o Brasil a empacar depois de ter sido na época do açúcar e do ouro (1620-1820)
uma das maiores do mundo, enquanto a modesta América do Norte tornava-se uma
potência econômica e depois mundial, Darcy Ribeiro reduz tudo ao fato de haver
liberdade geral nos Estados Unidos, ao menos depois da Guerra de Secessão
(1861-1865), enquanto por aqui se vivia sob o escravagismo. O que fez com que o
país somasse apenas 10% do PIB norte- americano no transcorrer do século 19.
Enquanto lá, usando a linguagem de hoje,
difundia-se o empreendedorismo, o que proporcionava que cada homem ou mulher -
pelo menos entre os brancos vindos em massa da Europa - tivesse a mais ampla
autonomia para tocar a sua vida e decidir seus negócios (rurais ou urbanos) por
si mesmos. No Brasil, tal situação era prerrogativa de poucos - "os homens
livres da ordem escravocrata" -, e geralmente subordinada a serviço dos
poderosos (*). Assim, Darcy Ribeiro contorna as explicações raciais e de ordem
cultural e afirma o primado marxista da exploração do homem pelo homem
abertamente praticada no Brasil.
(*) HOMENS LIVRES NA ORDEM ESCRAVOCRATA
Tese de 1964, foi um ensaio inovador da
historiadora Maria Sylvia Carvalho Franco. Tendo por base a exploração cafeeira
do Vale do Paraíba, procurou deslocar a atenção à historiografia nacional do
enfoque do sistema "latifúndio-monocultura-escravidão" para aquela
miuçalha de gente mestiça ou branca pobre, mas laboriosa que vivia nas bordas
das propriedades e vilarejos. O que gerou "uma formação sui generis de
homens livres e expropriados, que não foram integrados à produção mercantil -
destituído de propriedade dos meios de produção, mas não de sua posse"
(pag. 14). Era composta por "sitiantes, vendeiros, tropeiros e diversas
outras categorias de homens livres, que não tinham a propriedade da terra, mas
o direito de uso, e que ocupassem o espaço para suprir as necessidades da
vizinhança com alimentos, animais para transporte, etc.".
Esta preocupação teve seguimento com os
trabalhos de Jorge Caldeira em seu intento em enfocar a atenção nos
"empreendedores" que desde os tempos colônias começam a formar o
mercado interno e a expandir a economia brasileira para outras direções (ver A
Nação Mercantilista e História do Brasil com empreendedores).
Caldeira inclina-se pela ênfase naqueles
homens livres com iniciativa que são colocados no "centro da história do
Brasil colonial, focando naquele que abandona a tradição e sociedade nativa e
busca o enriquecimento. Essa figura, ligada à produção independente e à pequena
propriedade, produziu uma economia dinâmica, que crescia em taxas mais elevadas
que a da Metrópole - mesmo tendo de lutar contra a ação do governo. Resultado:
a economia brasileira, em 1800, era maior que a de Portugal".
Arcaico e Moderno
Antes de se lançar na classificação dos
diversos brasis, Darcy Ribeiro atenta para outro tipo de luta que não se liga
diretamente ao conflito entre senhores e seus dependentes e que esteve presente
sistematicamente na maioria dos debates ideológicos e políticos do Brasil.
Aquele que envolve a presença do ARCAISMO sempre em guerra defensiva contra o
MODERNISMO ou o PROGRESSISMO, que em geral está circunscrito à elite política e
intelectual.
Como de fato o país nunca conseguiu
livrar-se da presença do patriciado, particularmente do de origem rural - que
sempre ocupou e continua ocupando posições estratégicas no Estado e na
burocracia -, a modernidade, para vingar, tem sempre de lutar vigorosamente
para poder se impor. Nem as leis eleitorais, nem as econômicas, nem as leis
previdenciárias e sociais foram obtidas sem fazer enormes concessões ao mundo
arcaico.
Trata-se de um peso morto, de um lastro
muito pesado que impede o país de decolar, daí Darcy Ribeiro e parte dos
intelectuais seus contemporâneos terem crescente simpatia por uma revolução
social como a única capaz de superar o contraste entre o arcaico e o moderno.
Certamente, jamais esperaram que a
modernidade pudesse vir a ser imposta pela aliança entre o público (governo
militar) a o privado (o empresariado brasileiro e as multinacionais),
hegemônica a partir do Golpe de 1964, ao tempo em que mantinha e reforçava o
arcaico (Estados de tradição oligárquica viram-se super-representados, enquanto
que os mais avançados foram despojados de representação proporcional) (*).
(*) Um dos melhores ensaios sobre o
relacionamento entre os militares conspiradores e os representantes das
federações patronais (unidos no IPES) continua sendo o de René Dreyfuss: 1964,
a conquista do Estado, de 1981.
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