sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Viva a sabedoria...


O ensino da Filosofia1

O ensino da Filosofia não se tem livrado da ideia, propalada por espíritos pouco dados à reflexão, de que se resume a um estudo cronológico ou temático dos grandes filósofos, tendendo, por esta via, a transformar-se num saber mais enciclopédico que formativo. Pondo de parte esta ideia, por agora, quem, em consciência, duvidará que a familiaridade com os grandes filósofos e os temas por eles tratados é desejável para a aprendizagem da Filosofia?

Se não se reflectir sobre as grandes questões, que desde sempre preocuparam os homens, com a ajuda de Platão ou Aristóteles, Santo Agostinho ou Tomás de Aquino, Descartes ou Leibniz, Kant ou David Hume, Karl Jaspers ou Gabriel Marcel, sem ignorar as investigações sobre a significação e o sentido da acção com Paul Ricoeur, não se poderá nem pensar nem oferecer uma boa formação filosófica aos nossos alunos, ou, em geral, a todos aqueles que se interessam pelas coisas do pensamento.

Por isso, é aconselhável, logo no início do estudo, precisar o âmbito do mesmo, assinalando o que diferencia esta disciplina das restantes. Para tanto, o melhor caminho a seguir, após breve elucidação dos antecedentes históricos da Filosofia, será procurar esclarecer a seguinte questão: De que falamos quando nos referimos à Filosofia? E, a partir daqui, aprofundar os conteúdos a ela inerentes, susceptíveis de satisfazer os objectivos que a questão requer.

A ideia de escrever sobre «Para que serve a Filosofia», é um objectivo que invade o meu espírito desde cedo, quando percebi que os meus alunos tinham dificuldade em compreender o sentido da disciplina ou, melhor dito, os sentidos que o vocábulo Philosophia envolve.

Alguns dos meus alunos diziam-me que estudavam, estudavam… e que até «tiravam boas notas», mas que, mesmo assim, tinham dificuldades em explicar, com convicção, o significado da disciplina estudada. Sabiam o que é a Matemática e para que serve; sabiam que o estudo do Português lhes permitiria compreender melhor os textos que liam ou ouviam, ao mesmo tempo que lhes ensinava a desenvolver uma escrita mais compreensiva; enfim, sabiam que a Geografia permitir-lhes-ia conhecer diversas regiões, povos e culturas.

Mas saber o que é a Filosofia, para que serve, que nos ensina, era assunto que aqueles alunos, como os "meus", tinham dificuldade em compreender e, depois, esclarecer. Diziam eles que estavam habituados (até ao 9.º ano de escolaridade) a ler textos com conteúdos mais objectivos, não sendo preciso reflectir muito sobre os mesmos.

Ao lerem estas linhas, alguns leitores dirão: «Se alguns dos seus alunos tinham dificuldade em compreender o sentido da Filosofia, a responsabilidade é sua!» É possível que assim seja. Dirão então que eu não fui capaz de transmitir a dimensão do pensamento filosófico, o sentido da reflexão, o gosto pelo saber, etc. Talvez seja tudo isto. Mas também é verdade que esta disciplina é um pouco diferente das restantes. Não se aprende com uma breve leitura; requer análise, reflexão, questionamento; requer que se tome posição sobre a vida, os acontecimentos e o mundo. E é exactamente por isso que resolvi repensar a disciplina que leccionei, na sua relação com a vida, com as coisas do quotidiano, com as pessoas concretas, com a sociedade, enfim, com tudo aquilo que compromete a vida humana.

Dizem alguns pedagogos que as disciplinas que constituem os curricula do Ensino Secundário não oferecem grandes dificuldades de estudo, embora apontem a Matemática e o Português como sendo matérias mais difíceis. Talvez seja verdade, não questiono isso no âmbito deste trabalho. Os meus alunos diziam que estas disciplinas são mais delimitadas e concretas que a Filosofia. Ao lerem um livro ou um manual de uma daquelas disciplinas ficavam a saber de que conteúdo se tratava, logo à primeira. Já não era bem assim com a Filosofia, lamentavam-se!

«A Filosofia exige», verbalizavam, «que se leia muito, os textos são extensos e complicados, temos que conhecer grande número de conceitos, de definições…» Esta disciplina «obriga-nos a pensar sobre assuntos que antes não conhecíamos; temos que estar atentos às temáticas e reflectir sobre coisas que nos eram completamente alheias e que, talvez, não nos interessem… Como isso da ontologia, da metafísica, da fenomenologia, da lógica; temos que estudar os valores, como a ética, a estética, a religião, e temas como a liberdade, responsabilidade, o conhecimento, o ser e tantos outros assuntos que nunca estudámos antes. Que nos interessa tudo isto? Para que serve o seu estudo?», interrogavam-se.

E, prosseguiam: «sabemos, ainda, que a prática da educação física serve para educar o corpo, o estudo da Biologiapermite-nos conhecer o corpo humano, mas a Filosofia? Para que serve a Filosofia?» Tentar esclarecer estas e outras questões semelhantes é a tarefa que me proponho desenvolver nas páginas seguintes. Provavelmente, ficarão muitas dúvidas por elucidar, com a leitura desta reflexão surgirão outras que "obrigarão" o leitor a reflectir sobre o que lê e sobre as dúvidas que vão brotando no seu espírito.

A acrescentar às primeiras observações, no decurso do estudo da Filosofia, aperceber-se-á que esta disciplina deverá ser vivida, e não memorizada ou "cabulada". A vivência da Filosofia faz-se, primordialmente, em contacto com o professor da disciplina ou com as obras dos filósofos. Pouco vale memorizar meia dúzia de conceitos para impressionar o seu interlocutor – amigo, colega ou familiar – para mostrar que sabe. O saber constrói-se passo-a-passo, ouvindo, lendo, reflectindo, experimentando, debatendo, explicando, pondo à prova. Assim, para sedimentar e aprofundar os seus conhecimentos, leia textos de Filosofia indicados, sobretudo, em bibliografias específicas.

Parta à descoberta de uma disciplina (ou aprofundamento da mesma) que lhe será muito útil, que mais não seja, para compreender os meandros do pensamento filosófico, cujas raízes remontam ao século VI a.C., sendo um dos pilares primordiais da cultura Ocidental. Aliás, Karl Jaspers diz mesmo que a Filosofia é importante para todos, porque «todo o Homem enquanto homem filosofa», embora acrescente que, «o pensamento filosófico sistemático requer estudo».

Como deverá, então, iniciar-se o estudo do pensamento filosófico? Deverá o aprendiz de Filosofia estudar as ideias e concepções filosóficas dos grandes filósofos e considerá-las como suas? Deverá, antes, aprender (memorizar) conceitos e mostrar que os sabe quando solicitado? Ou, pelo contrário, deverá, o iniciado no estudo desta disciplina, tentar compreender os grandes temas que preocuparam e preocupam os filósofos, reflectindo sobre eles, a fim de lhe apreender o sentido e o valor?

António Sérgio, filósofo e ensaísta português, ensina, na sua qualidade de aprendiz mais velho, como ele próprio escreve, que o aprendiz de filósofo não se deve apressar a adoptar soluções, antes deverá procurar conhecer bem os problemas, habituando-se a ver as dificuldades reais que se deparam nas coisas que se afiguram fáceis ao simplismo e à superficialidade, característica do senso comum. 

Para uma boa aprendizagem da Filosofia, os conselhos dos filósofos António Sérgio e Karl Jaspers são de considerar. Quem seguir estas orientações, verificará que, ao contrário do que é vulgarmente dito, a Filosofia não é uma disciplina difícil de estudar. Todas as disciplinas têm as suas dificuldades próprias, e nenhuma se aprende se não for estudada. O que se diz é que a Filosofia não se memoriza como se faz com um número de telefone, uma fórmula química, um poema de Camões ou uma receita de culinária. A Filosofia estuda-se reflectindo sobre as ideias, as concepções, os princípios propostos pelos filósofos, pelos professores, pelas circunstâncias da vida, compreendendo e elucidando sentidos e amplitude.

Saber Filosofia e filosofar não é adoptar umas tantas ideias de autores consagrados e debitá-las como se fossem nossas; saber Filosofia e filosofar não é aprender apenas a História da Filosofia (o que já é muito importante) e descrever sistematicamente, a vida inteira, as ideias dos filósofos estudados. Não se diz que não é importante conhecer a História da Filosofia, o que se afirma é que o filósofo, para além do domínio da História da sua disciplina, por definição, faz filosofia. E fazer filosofia não é adoptar, tão só, as ideias dos outros, sem sair delas, mas é construir também as suas próprias ideias e concepções sobre a vida e as realidades que o envolvem.

Por isso, começar a penetrar no espírito filosófico significa compreender profundamente os problemas do Homem; apreender as dificuldades efectivas que nas coisas se afiguram fáceis; compreender e superar a superficialidade do que vulgarmente denominamos por senso comum.

No entanto, como qualquer outra actividade, também o iniciado nos assuntos da Filosofia parte de experiências que não são suas; todos aprendemos com as experiências dos nossos mestres, e isso não é nenhum defeito, nem actividade menor; no entanto, se pretendemos ir mais além no saber, depois de nos familiarizarmos com aquelas experiências, até que as tenhamos como coisa nossa, é preciso ter a capacidade suficiente para nos irmosafastando delas e a partir delas formarmos as nossas, como já fizera Aristóteles em relação ao seu mestre Platão.

Note-se que nenhum pensamento é genuíno, isto é, o nosso pensamento parte sempre do pensamento anterior ou contemporâneo. O que é genuíno é o modo como organizamos os nossos pensamentos; o que é original é a forma como vemos e concebemos o mundo, como propomos soluções, como resolvemos problemas. Mas, no limite, tudo está relacionado com as nossas aprendizagens anteriores, as nossas vivências e valores, a nossa educação e instrução, as nossas influências e cultura, enfim, como o nosso caminho que sempre nos marcará.

Sem a menor dúvida que o estudo da Filosofia, seguindo regras, capacita o estudioso a ser capaz de se distanciar da realidade imediata e empírica que até então contactou; de proceder a novas descobertas e a identificar novas perspectivas no seu conhecimento, a saber, na história, nas ciências, na literatura ou, simplesmente, no saber do quotidiano; de descobrir que, afinal, as questões filosóficas não são algo que transcenda o comum dos mortais, mas que emergem da interioridade e exterioridade humana; dos desejos e vontades e das frustrações; dos interesses e da incerteza; da capacidade de agir e das situações-limite; das provações e da esperança. Finalmente, se a leitura deste livro lhe sugerir algumas dúvidas ou desassossego intelectual, então o objectivo a que me propus será alcançado: inquietar as mentes para que sintam necessidade de reflectir sobre a problemática da vida. 

E lembre-se que a dúvida e a inquietação intelectual são caminhos possíveis para chegar ao conhecimento. Não fique preocupado se as dúvidas se apinham o seu espírito. Procure esclarecê-las por si, em primeiro lugar. É muito importante que o faça. Se ainda assim persistirem, valha-se da sua convivência direta ou experimente o contacto com as academias. Quer ler mais?

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1. Prefácio do livro Para que serve a Filosofia, de António A. B. Pinela
http://www.eurosophia.com/filosofia/acesso_livre/filosofia/ensino_da_filosofia.htm

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